Boletim Mensal * Ano VI * Setembro de 2007 * Número 54

           

   FADO TAMBÉM É CULTURA

     Alfredo Antunes

 

  
Amigos. Gostei de ter falado da Severa e da Mouraria, em minha última “coluna”. Só me esqueci de dizer que o “Há festa na Mouraria” costuma ser cantado em várias toadas corridas. A mais comum é a toada “mouraria” de Alfredo Duarte. A Amália criou, desta, uma versão lenta e dramática que, a meu ver, jamais foi igualada. Em estilo corrido e muito gostoso, a Mariza tem, também, uma belíssima versão que apresentou na lendária “Saint Jhon’s Chapel” de Londres (inclusive com uma discreta insinuação de “posar” de Severa...). Não percam nenhuma das duas versões.
      Mas hoje vou, de novo, falar da Severa, mas desde um outro ângulo: o ângulo da pintura. O pintor português José Malhoa (o nosso maior pintor de Costumes) pintou um quadro, chamado “FADO”, no qual retrata a Severa, em posição lânguida e sensual, “oferecendo-se” para um certo “Zé”, seu amante,que toca guitarra, entre sombras e vinho. Creio que Malhoa, neste extraordinário quadro, tocou, com genialidade, as profundidades humanas do Fado. Para quem quiser visitá-lo, o “FADO” encontra-se no Museu da Cidade, em Lisboa. Este museu – um palácio já com detalhes néo-clássicos – fica em Campo Grande, logo abaixo do estádio do Sporting. Se algum Compadre torce pelo “Porto” ou pelo “Benfica”, esqueça a orientação que dou, e siga como quem vai para a Universidade Clássica de Lisboa. Fica logo antes, do mesmo lado. Mas não deixe de ir. O “FADO” é considerado o mais famoso, entre as centenas de quadros, deste enorme artista.            
Por ser de um pintor famoso e respeitadíssimo,  o seu quadro -  o “FADO” -  veio dar nobreza ao gênero. Como que ajudou a “limpar” da marginalidade o próprio Fado cantado. E, em reconhecimento disso, José Galhardo e Frederico Valério compuseram o celebérrimo “Fado Malhoa”, expressamente para a Amália Rodrigues cantar na (se não me engano) opereta “Rosa Cantadeira”, no Teatro Apolo, ali pelos idos de 1944. Foi um estrondoso sucesso. Aqui vai o fado: Alguém que Deus já lá tem/ Pintor consagrado/ Que foi bem grande, e nos dói/ Já ser do passado./ Subiu a um quarto que viu/ E à luz do petróleo/ Fez o mais português/ Dos quadros a óleo./ Um Zé de samarra /Com a amante a seu lado/ C’os dedos agarra/ Percorre a guitarra/ E ali vê-se o FADO./  Há vozes de Alfama/ Naquela pintura/ E a banza derrama/ Canções de amargura/ Dali vos digo o que eu  vi:/ A voz que se esmera/ Dançando a faia banal,/Cantando a Severa. Se contemplarem a pintura, Compadres, verão que os autores do fado estavam certos. E eu, desde pequeno, me deixava transportar na voz duma Amália de 25 anos. E ficava , doidinho, como disse, lá no canto do muro da minha escola. Doidinhos ficavam, também, os espectadores do Teatro Apolo, os quais, segundo crônicas da época, deixavam o Parque Mayer, às três da madrugada, trauteando, em coro, por toda a “Avenida”, o refrão final que dizia: Aquilo é bairrista/ Aquilo é Lisboa/ Boêmia e fadista/ Aquilo é de artista/ Aquilo é...Malhoa!.
      Querem saber mais sobre Malhoa? Aí vai. Nasceu (1855) e morreu (1933) em Caldas da Rainha. Mas só fez nascer e morrer lá. Ele se criou e viveu a vida inteira (sabem onde?!) em Figueiró dos Vinhos – a minha terra. Não creio que tenha sido grande motivo de orgulho para ele, mas é, de vaidade, para mim! Desde criança eu passava ao lado do lindo chalet, onde sempre viveu, no meio de um jardim bonito. Ainda lá continua. Chama-se O Casulo. Hoje é um pequeno museu. Toda a casa, por dentro, estava pintada por ele. Coisa linda. Figueiró dos Vinhos tem obras famosas de Malhoa, na Igreja matriz – um monumento do Séc.XVI. Grande parte da obra está no “Museu Malhoa” de Caldas da Rainha, e na famosa “Casa dos Patudos” (hoje museu), em Alpiarça, no Ribatejo. Como Malhoa era íntimo desta nobre família rural, doou  parte da sua obra para ela. São várias salas, só com obras de Malhoa. E só mais um detalhe: Malhoa, no ano da sua morte, expôs 55 telas suas no “Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro”. Boa parte dessas obras continua no Brasil, em  instituições e coleções particulares.
      E vou terminar com uma pequena história sobre Malhoa. Um dia, passava Malhoa por uma viela de Lisboa, quando viu uma menina de cinco anos, sozinha, maltratada e com fome. Perguntou onde era sua casa e quem era sua mãe. A menina levou o Pintor até lá. Malhoa, ao ver a situação geral daquela família pobre, e de muitos filhos, perguntou à mãe da menina se deixava levá-la, para a criar como filha. A mãe aceitou. E no dia seguinte, acompanhado da esposa, Malhoa foi buscar a criança. Tomaram o combóio até à estação de Paialvo (perto de Fátima) e, ali, os esperava a charrete que os levou para Figueiró dos Vinhos. A menina cresceu, foi educada e, com uns 18 anos, foi para Lisboa começar uma carreira artística de sucesso. Contracenou, em vários filmes, com Vasco Santana e com todos os grandes artistas da época. Venceu o concurso de marchas populares de 1935, com a chamada Grande Marcha de Lisboa, e tornou-se a primeira grande vedete portuguesa. Passou os últimos 30 anos num apartamento do hotel Tivoli de Lisboa. Morreu há poucos anos. Seu nome: Beatriz Costa. Se algum Compadre, um dia, for jantar no Tivoli de Lisboa, forçosamente irá fazê-lo no Restaurante Beatriz Costa. E pronto por hoje. Com, ou sem jantar de luxo, não esqueçamos que “Fado também é Cultura”. Até à próxima!
 
Hosted by www.Geocities.ws

1