São Paulo, segunda-feira, 1º de junho de 2009
Visão Crítica
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Guaranis ganham apoio político na luta pela autopreservação cultural
São 57 guaranis ao todo, a maioria mulheres
e crianças ou adolescentes, todos da mesma família e ocupando área aproximada de
dois mil metros quadrados na extremidade dos quase três quilômetros da praia de
Camboinhas, bairro exclusivo na costa oceânica de Niterói. Pontilhada por
luxuosos condomínios e amplas casas de veraneio, Camboinhas exibe índice de mais
de 95% de residências com água encanada e esgotamento sanitário, entre os mais
altos do país, e uma população fixa e flutuante que é a clientela única do
artesanato indígena, principal fonte de renda da pequena aldeia guarani, cujo
faturamento oscila entre 300 e 500 reais por semana.
Há cerca de ano e meio instalados no final da praia, os índios sempre sofreram
discriminação e ameaças, mas convivem com as adversidades sem medo, apoiados nos
espíritos evocados no início de cada noite em rituais por proteção divina. Sabem
que não são bem vindos, mas confiam na liderança da pajé Lídia, mãe do cacique
Darci e de dois outros expoentes da etnia: Amarildo, professor na escolinha para
as crianças, e Tonico Benites, mestre e doutorando em antropologia social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A pajé Lídia é a responsável pela migração do grupo para Niterói, pois entre os
guaranis cabe aos líderes espirituais escolher o lugar onde devem habitar. E ela
optou por Camboinhas por ser local de um grande sambaqui, ou cemitério indígena,
ancestral na região. Os opositores à presença deles não gostam sequer de ouvir
falar desta história e nos dois primeiros meses estiveram várias vezes no final
da praia ameaçando-os de dia e de noite, como Lídia se lembra bem.
“Um dia, aí pelas dez e meia da manhã, chegaram gritando para sair, expulsando
mesmo a gente. Às onze, tacaram fogo em tudo, queimaram as oito ocas, com
documentos, roupas, coisas da gente, da história guarani, tudo foi embora”, diz
a pajé. Seu filho Tonico Benites acrescenta que o crime, por afetar indígenas,
caiu nas mãos da Polícia Federal, o que possivelmente assustou seus autores, mas
provocou uma reação inesperada:
“Logo depois apareceram funcionários do instituto que cuida das florestas no
governo estadual dizendo que a gente não podia mais continuar aqui, que tínhamos
que sair. Nós batemos pé que não, e eles foram embora falando que a
responsabilidade era toda nossa”.
Desde então, e por mais de um ano, os guaranis de Camboinhas têm convivido com
narizes torcidos, caretas, eventuais ofensas e xingamentos e também a
indiferença de boa parte da gente que freqüenta a praia e compra seu artesanato
simples de palha colorida trançada, sementes, penas e plumas. As oito ocas,
reerguidas com palha de sapê colhida ali mesmo, permanecem até hoje de pé, como
afirmação maior da confiança na proteção espiritual.
Nenhum guarani acredita no sucesso da investigação da Polícia Federal sobre o
incêndio das ocas, até porque não foram capazes de identificar os autores, nem
os que apareceram durante a reconstrução mandando interromper o trabalho. Para
os guaranis, há pouca diferença entre um branco e outro, por isto até para fazer
esta reportagem foi necessário o acompanhamento de gente de Maricá para
apresentar a equipe da Agência Brasil.
Neste momento, Lídia e seu grupo familiar depositam suas expectativas na ação da
prefeitura de Maricá, cidade vizinha a Niterói cujo titular, Washington Quaquá,
está decidido a transferi-los para uma Área de Proteção Ambiental da União na
Barra da Maricá, onde a pajé escolheu um sítio entre as praias de Itaipuaçu e
São José. “Terra boa pra plantar, não é areia, como aqui”, Lídia adianta,
confiante de que em breve voltará ao cultivo de milho, mandioca, feijão e outros
produtos ancestrais da agricultura guarani.
Se o terreno em Camboinhas é impróprio ao plantio, por que foi escolhido pela
pajé quando saiu de Parati? Primeiro, porque era urgente a mudança, segundo ela:
“Não tinha mais espaço para todo mundo em Parati, não dava pra plantar muito, eu
não aguentava ver criança chorando com fome, tinha que sair. Depois, aqui era
terra de sambaqui, da proteção dos espíritos”.
Lídia não fala mal dos que estão em Parati, até porque pelo menos um filho seu
ficou, mas a identidade comum parece perdida. Os guaranis de lá vivem outra
realidade, em casas de alvenaria, preferem o mercado ao cultivo próprio,
incorporam a cultura branca, até imitam seu comportamento consumista. Esta
dicotomia aflora com clareza no discurso de Tonico Benitez no projeto de criação
do “Centro de Exposições de Culturas Materiais e Imateriais do Guarani Mbya” –
ramo da etnia guarani ao qual sua família pertence:
“Os líderes praticantes do xamanismo ou pajés Guarani mbya mantêm relação
estreita com os espíritos/guardiões responsáveis pelos animais, plantas, terra e
ser humano. Deles recebem o conhecimento para diagnosticar e tratar os enfermos,
bem como sobre fórmulas de medicamentos, além de purificar o espaço/tempo mal.
Os espíritos/dono do ser Guarani protetores vivem em certos patamares mais
elevados do cosmo extraterrenal, segundo a religião do Guarani Mbya, os
guardiões como os donos do mar e da floresta vivem e realizam monitoramentos de
formas invisíveis a água, o ar, a mata e a terra, os quais são temidos, portanto
extremamente respeitados pelo Guarani”.
A determinação de Lídia e seu grupo na preservação da cultura guarani legítima e
genuína sensibilizou a tal ponto a prefeitura da cidade de Maricá que foram
designados vários secretários e subsecretários da área social para atuar junto
aos índios: Marcos de Dios, Maria Cristina Lima, Leonardo Nóbrega e Rosângela
Zeidan tratam desde a burocracia junto à União para a desapropriação da área a
ser ocupada na APA, até o cadastramento da família de Lídia no Bolsa-Família e
outros programas sociais. No último Dia do Trabalho, em solenidade comandada
pelo prefeito, foi instalada uma oca na praça central da cidade, em homenagem (e
desagravo) aos guaranis. Dias depois, vândalos a incendiaram, no que parecia ser
a repetição do crime de Camboinhas. Tonico Benites, no entanto, aponta outra
razão:
“Como em toda parte, há uma disputa política em Maricá. O prefeito tem a sua
oposição, os que são contra esta ação em favor da gente. Isso existe em qualquer
lugar, não tem nada a ver diretamente com os guaranis, é uma ação contra o
prefeito”.
A comprovar as palavras
do antropólogo guarani, um artigo assinado por Rodovaldo Coutinho no jornal “A
Voz de Maricá” enumera uma série de carências urbanas da cidade que reclamam
ação e dinheiro da prefeitura e termina com a pergunta: “Não seria melhor deixar
os guaranis onde estão?” A prefeitura, por sua vez, acredita que a ação em
defesa da pequena comunidade ameaçada representa o passo essencial para a
solução de um caso inédito no século XXI, com as características deste dos
guaranis em Camboinhas.
[email protected]
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Luiz Augusto Gollo é jornalista e
escritor, escreve nesta coluna aos sábados
e mantém o
Blog Visão Crítica
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