A OPINIÃO QUE FAZ A DIFERENÇA
   

São Paulo, segunda-feira, 25 de maio de 2009

Visão Crítica


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É Simonal

Nas últimas semanas tenho andado ocupado demais para escrever crônicas, mas nesta tirei uma folga e vou meter minha colher velha na história de Simonal, cuja memória é resgatada em documentário badalado que, pelas resenhas, não confirma nem desmente a triste fama que se abateu sobre o cantor mais popular do país na virada dos anos 1960 para os 70. Ele era tão famoso que teve programa próprio na TV Tupi (se não me engano) apresentado num cenário imitando o teto de um prédio, com antenas de televisão e caixa de máquinas de elevador. Não me lembro do nome, mas era uma das atrações típicas da época, apresentadas por cantores, como também foi “O fino da bossa”, da dupla Elis Regina e Jair Rodrigues.

Wilson Simonal era um sujeito simpático, tinha um vozeirão e criava empatia com qualquer público. Chegou a “reger” o coro de 35 mil pessoas no Maracanazinho, em “Meu limão, meu limoeiro”, como registra a história da MPB. Convivia bem com a turma da bossa-nova e da jovem guarda, o que não era pouco naquela época em que as guitarras elétricas entronizavam o tropicalismo no gosto  popular da rapaziada. “Sá Marina”, “Nem vem que não tem”, “País tropical” e o citado limoeiro foram alguns dos grandes sucessos do sorridente Simonal, negro no meio dos brancos, o outro lado da moeda do sisudo Milton Nascimento, que despontou na época e preserva seu lugar até os dias atuais, como também Jair Rodrigues.

Mas Wilson Simonal era o máximo, tinha um quê de Roberto e Erasmo na alienação política, no descompromisso com a juventude que peitava a ditadura, levava porrada e eventualmente se exilava – Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré etc etc etc. Ocupava espaço generoso no cenário musical pelo valor próprio e pelo absoluto conformismo com o que se passava no Brasil de Médici, do slogan “Ame-o ou deixe-o” a empurrar para o exterior os insatisfeitos e os perseguidos. Simonal era um “menino bom”, como Ivan Lins, que não tentava influenciar a juventude com ideias exóticas, como Gonzaguinha, por exemplo.

Eu era repórter do “Correio da Manhã” quando recebi a pauta para uma entrevista coletiva de Simonal, num amplo apartamento na Zona Sul carioca. Estava no começo da carreira, cobria os festivais internacionais da canção dirigidos por Augusto Marzagão e tinha estado no Maracanazinho na célebre noite do coro dos 35 mil espectadores. Como todo carioca daquele período, conhecia e era fã de Wilson Simonal, por isso rumei feliz e contente para a coletiva.

Na espaçosa sala do apartamento os repórteres encontraram toda a parafernália característica das filmagens: refletores, rebatedores, microfones suspensos, câmeras bem posicionadas. Acomodamo-nos onde nos indicaram e entrou na sala o cineasta Domingos de Oliveira, para nos explicar que a entrevista seria para o filme “É Simonal”, que dirigia e seria lançado ainda naquele semestre. Dito isto, saiu de cena e entrou o astro, sorridente, braços abertos, saudando “a imprensa livre do Brasil”. Era deboche, claro, mas soava falso demais na voz de Simonal, que nunca abrira a boca para comentários como aquele. Todos rimos e fizemos a entrevista, filmada por duas ou três câmeras e enriquecida por atores menores no papel de repórteres também.

Foi a única vez que estive frente a frente com Wilson Simonal e confesso que sua declaração fora de propósito na filmagem abalou a simpatia que tinha por sua incomparável figura. Nenhum artista, fosse cantor, ator, atriz, compositor, brincava com política naquele tempo. Ou era ou não era, não havia espaço para dubiedades. Por isso não senti como traição a denúncia de que Simonal havia mandado torturar seu contador, como estourou na imprensa censurada que transformou o caso em denúncia de tortura dentro do Dops carioca, coisa jamais admitida pela polícia e pelos militares.

Na sequência, surgiram as ligações de Simonal com agentes policiais e suspeitas de colaboração com a ditadura, através da delação. Relações escusas entre artistas e a repressão política não eram propriamente uma novidade: desde os tempos de César de Alencar na Rádio Nacional falava-se de colaboração entre o Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo e o mundo artístico. O contador que trabalhava para Wilson Simonal contou o sequestro por agentes civis e a confissão de roubo sob tortura no prédio do Dops e os jornais deitaram e rolaram, até porque os censores, estranhamente, não cortaram uma linha, uma vírgula. A ditadura mostrou o caso como questão pessoal e não institucional.

Assim, Wilson Simonal viu ruir, em semanas, todo o prestígio construído em anos e anos de trabalho sério, dedicado e plenamente aceito pelo público. Diz a voz das ruas que delação é covardia que não se perdoa. Delação e tortura, menos ainda. E em tempos de perseguição política nem pensar. Como era possível Chico, Caetano, Vandré, Gil terem de sair do país e Simonal compactuar com os procedimentos de que eles foram ou seriam vítimas? Uma coisa é cantar “o amor é o meu país”, como Ivan Lins, notório alienado, outra bem diferente é ser amigo dos canas e usá-los para torturar um chefe de família pobre como a imensa maioria dos admiradores de Simonal.

O público se identificou com o contador, ninguém deu razão a Simonal. A imprensa viu no episódio a chance de denunciar que havia tortura na ditadura, o regime usou a mídia para fingir que não admitia esse tipo de comportamento. Mas nenhum policial foi punido, o contador não foi indenizado e só Wilson Simonal saiu perdendo. Perdeu por sua própria falta de sensibilidade política, por se congregar com torturadores, por não se arrepender em público do incrível deslize que cometeu.

Alguns anos mais tarde, já sobrevivendo em São Paulo e em precária situação profissional e pessoal, Wilson Simonal deu entrevista a José Trajano, hoje na ESPN Brasil, e atacou a imprensa, o público, muita gente, menos o Dops. O repórter registrou a presença de homens mal encarados na sala e, à saída, percebeu que estivera trancado a chave durante toda a conversa. A publicação da entrevista era prova de que o Brasil, lentamente, mudava. Simonal, infelizmente, não.

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Luiz Augusto Gollo é jornalista e escritor, escreve nesta coluna aos sábados e mantém o Blog Visão Crítica
    



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