A Aposta Errada


Roma - Península Itálica - 133 a.C.

Gaicus enviara algumas cartas aos amigos durante sua viagem com Emrys para Numantia (1), mas depois ninguém mais teve notícia deles. A situação na Hispânia tornou-se preocupante, com a distante província declarando guerra contra o governo central de Roma e Publius Cornelius Scipio Aemilianus, o Africanus, militar que comandara a destruição de Cartago, conseguindo o feito inédito de reeleger-se cônsul (2) justamente para acabar com a rebelião.

- A ordem é arrasar Numantia como arrasaram Cartago, até a cidade virar pó! - avisou Marconus - Precisamos saber se Gaicus e Emrys ainda estão lá e ajudá-los a voltar!

- Se eu conheço Emrys, ele sabia que essa guerra iria acontecer! - Eksamus respondeu, sombrio - Foi a mesma coisa quando Esparta atacou Atenas... Ninguém vai conseguir tirá-lo de Numantia agora, se ele cismar de ficar para ajudar os feridos e doentes.

- Mas desta vez Gaicus está com ele! - insistiu Marconus - Emrys não colocaria a vida de um amigo em risco!

- Essa porcaria de revolta dos escravos complica tudo (3), as comunicações estão truncadas! - resmungou Methos - Não posso mandar nenhum mensageiro viajar agora, ou prenderão o infeliz como fugitivo. Acho melhor eu ir buscar os dois pessoalmente!

- Não é boa idéia, podes acabar metido em confusões por lá também! - retrucou Eksamus.

- O melhor é acreditar que Emrys usou o bom senso e saiu daquela região, ou pelo menos mandou Gaicus de volta para nós! - Aka argumentou - Talvez eles já estejam vindo para cá e não puderam avisar... Esperemos mais alguns meses antes de tomar qualquer atitude precipitada!

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Roma - Península Itálica - 132 a 130 a.C.

Com o fim da revolta dos escravos os Imortais em Roma despacharam mensageiros para a Hispânia, mas sem sucesso. Após dois anos de pesquisas infrutíferas, Methos decidiu ir até lá. A terrível premonição ainda não lhe saíra da cabeça.

- Cansei de depender de mensageiros! - teimou ele, sem dar ouvidos aos amigos que lhe pediam cautela - Gaicus e Emrys podem ter mudado de nome e aparência... Somente um de nós será capaz de sentir-lhes a vibração, e alguém precisa localizá-los antes que algo pior aconteça!

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Roma - Península Itálica - 119 a.C.

Methos enviara a Roma cartas curtas porém frequentes, contando seus progressos. Numantia não existia mais e nem havia para quem perguntar sobre possíveis desaparecidos, então ele circulou pela Hispania por três anos, até descobrir que Emrys e Gaicus tinham rumado para a África ainda antes da guerra. Methos tomou então um navio para Utica (4) e passou quase dois anos na região, mas só o que conseguiu foi encontrar um Imortal desconhecido e com más intenções. Irritado, Methos fugiu num navio que ia para a Sicília, onde por acaso encontrou sinais da passagem de Emrys e Gaicus por Agrigentum (5). Após mais um ano pulando de cidade em cidade, Methos enviou uma carta cheia de esperanças, avisando que iria para o Oriente cruzando o norte da Macedônia (6), acompanhando uma rota de mercadores que Emrys e Gaicus teriam seguido há pouco tempo. O grupo na capital imaginou que as buscas estavam próximas de um final feliz, porém desde então Methos nunca mais escreveu.

Depois de esperar em vão por quase quatro anos, Eksamus viajou para procurá-lo e por um longo ano seguiu a rota de mercadores que Methos mencionara em sua última carta, percorrendo inúmeras vilas e cidades do norte da Macedônia. No fim, sem encontrar também qualquer indício de que algo fatal tivesse acontecido aos amigos, Eksamus voltou a Roma sozinho.

- Perdi minhas esperanças! - comentou ele desanimadamente ao chegar - Emrys e Gaicus sumiram em algum lugar da Macedônia e Methos perdeu-se procurando por eles, não há dúvida! Sinto muito por regressar de mãos vazias...

- Fizeste bem em desistir, meu irmão. Após tantos anos não adiantaria nada continuar procurando!

Aka não desgrudara de Eksamus desde que ele entrara finalmente pela porta e cobria-o de carinho. Ela obviamente sentia muito pelo fracasso do irmão, porém também estava imensamente aliviada por tê-lo novamente a seu lado. Durante o almoço, após deixar o cunhado contar um resumo dos incidentes da viagem, Marconus achou melhor tocar logo em outro assunto que vinha preocupando-o ultimamente.

- Devemos agora rever nossa situação aqui, pois começaram a fazer perguntas sobre nós! - avisou - Durante tua ausência nós compramos uma casa em Sinuessa, e acho que seria uma boa idéia passar um tempo lá. O que pensas?

- Se estão a fazer perguntas, então é melhor sair logo daqui! - Eksamus suspirou - Isso significa perder qualquer chance de contato...

- Nós tivemos uma idéia que poderá ajudar! - exclamou Aka, tentando animá-lo - Espalharemos a notícia de que estou finalmente esperando um filho, e que tu arrumaste uma noiva em Sinuessa. Viajaremos juntos como se fôssemos para teu casamento e depois diremos que minha gravidez complicada impediu nossa volta. Manteremos contato por carta com alguns patrícios daqui nos próximos anos, fingindo que eu e Titus tivemos um casal de filhos, e que tu também tiveste um herdeiro. Mais tarde eu e Titus voltaremos como irmãos, e tu serás nosso primo!

- É uma trama complicada, porém é preciso inventar um novo grau de parentesco para o caso de voltarmos a Roma um dia! - Marconus sorriu - Se mantivermos contatos por aqui, eles servirão como testemunhas de nossas novas histórias e ainda poderão avisar-nos caso os outros reapareçam!

- É complicado, concordo, mas também inteligente! - aprovou Eksamus, cansado - Partamos então logo para Sinuessa, e tomara que tudo saia de acordo com o planejado!

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Sinuessa - Península Itálica - 76 a.C.

- Conseguiste nossa documentação? - perguntou Eksamus, logo que Marconus voltou da capital - Acreditaram em tua história?

- Foi fácil, estamos tão diferentes que ninguém sequer duvidou! - respondeu Titus, empolgado, acenando com rolos de documentos - Mas o melhor ainda não sabes... Methos e Gaicus podem estar em Tarracina!

Eksamus arregalou os olhos e gritou chamando pela irmã. Seus cabelos longos agora estavam louros, assim como os de Marconus e Aka, e Titus tinha ido a Roma providenciar alguns documentos usando suas novas identidades, mas nem imaginavam que com isso descobririam o paradeiro dos amigos.

- No forum avisaram-me que dois irmãos, Firmus Remus e Petrus Iolaus, estão requerindo oficialmente a devolução de suas heranças, perdidas nas mãos de procuradores há décadas! - explicou Marconus assim que a Aka chegou - E eles alegam ser filhos de Peter Pridianus Gaicus, que casou-se com uma herdeira de Methos Adamantinus Remus na Hispânia!

- Não há dúvida, são eles! - Eksamus riu, enquanto Aka chorava de alegria - E nós somos os descendentes dos procuradores, e teremos que dar satisfações a eles sobre as tais heranças!

- Foi um jeito de forçar-nos a fazer contato! - Marconus sorriu.

- E Emrys? - perguntou Aka, enxugando o rosto - Acaso soubeste algo sobre ele? - Não, mas é provável que estejam todos juntos... Amanhã mesmo enviaremos um mensageiro até lá! - Marconus chamou um criado e pediu-lhe o melhor vinho da casa - Vamos comemorar, logo seremos uma família novamente!

Só que Emrys não estava com Methos e Gaicus. Eram realmente eles os irmãos Firmus e Petrus, que viviam numa fazenda perto de Tarracina, porém há muito tempo ambos não tinham notícias do mestre. A chegada do mensageiro de Marconus colocou-os em polvorosa, pois o requerimento das heranças tinha sido seu último recurso para localizar o resto do antigo grupo - após tantos anos, só através da burocracia do Forum central obteriam informações sobre os novos nomes que eles poderiam estar usando e onde estariam morando agora. E foi sem demora que os dois partiram rumo a Sinuessa, deixando escravos de confiança tomando conta da fazenda. Gaicus sequer permitiu que o mensageiro de Marconus voltasse antes deles - queria acompanhá-lo e fazer uma surpresa aos amigos.

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- Dois Imortais! - Aka exclamou, enquanto Marconus pulava prontamente da escrivaninha, no outro canto da sala - Só podem ser Methos e Gaicus!

- Emrys não está com eles, ou está disfarçando a própria presença! - Eksamus sorriu - Eles vieram sem avisar, os malandros!

Os três correram ao átrio, onde alguém já chamava da rua, e receberam os amigos de braços abertos. O reencontro foi um festival de risadas, emoção e novidades contadas aos trancos, enquanto os criados traziam a bagagem dos hóspedes para dentro e apressavam-se em arrumar aposentos para recebê-los. Methos e Gaicus ostentavam cavanhaques e bigodes bem aparados, a única coisa que dava-lhes o mínimo de semelhança para que passassem por irmãos.

- Onde está Emrys, por que ele não veio? - perguntou Marconus, deixando que Methos bagunçasse seu cabelo louro.

- Eu o perdi há muito tempo na Macedônia! - respondeu Gaicus - Ele foi com um carregador até uma vila próxima de onde estávamos acampados, para comprar comida, e nisso um bando de mercenários atacou nossa caravana! Acabei arrastado como escravo e desde então não o vi mais... Pensei que ele estivesse convosco!

- Estamos há três décadas fora de Roma! - explicou Aka, emocionada - Se ele foi para lá, não nos encontrou... É tão bom ver-vos de volta!

- Eu procurei por vós, mas desisti por falta de pistas! - Eksamus apertou Methos num forte abraço, chegando a levantá-lo do chão - Senti tua falta... Desapareceste feito fumaça, pensei que algo ruim tivesse acontecido!

- Ruim? Ruim foi acabar escravo junto com esse aí, e pior ainda, tendo ele como meu mestre numa olaria! - resmungou Methos, apontando para Gaicus - Roubaram minha bolsa numa hospedaria e acabei preso por não pagar a conta, imagina, então levaram-me a leilão por causa da dívida e esse infeliz apareceu para comprar-me!

- Devíeis ter visto como ele estava, com uma barba de semanas e um cabelo deste tamanho! - Gaicus gargalhou - Eu era o encarregado da olaria e tive sorte em encontrá-lo indo a leilão justamente no dia em que um de nossos operários quebrou o braço!

- Tu mesmo quebraste o braço do infeliz, não mintas! - Methos fez-se de zangado - Correste a derrubar uma prateleira de tijolos na cabeça do pobre homem só para ter um pretexto para comprar-me!

- Então sois agora os tais irmãos com quem temos que nos haver sobre certas heranças? - perguntou Eksamus - Isso nos custará uma bela dor de cabeça no forum, explicando o que foi feito das vossas propriedades!

- Resolveremos isso juntos! - Methos ergueu as sobrancelhas - Alguém pode oferecer-me um vinho? Por Júpiter, onde está a vossa hospitalidade?

Aka chamou uma das escravas que passava perto e ordenou que trouxessem bebidas. Enquanto Gaicus tagarelava com Marconus e Aka, Eksamus puxou Methos a um canto:

- Nem sinal dele? - perguntou, sombrio - Emrys evaporou-se por completo?

- Não deixou nem um fio de cabelo para trás! - respondeu Methos - Ele pode ter ido para qualquer lado, os homens que levaram Gaicus circularam muito antes de vendê-lo e nem ele sabe por onde andou. Se Emrys o procurou, com certeza perdeu-se no caminho ou acabou escravo, como nós. Aquilo anda uma bagunça, não fazes idéia!

- Nós pensamos em voltar a Roma mas a cidade está um caos, há confrontos políticos demais por lá... - Eksamus abaixou ainda mais a voz - Não há a mínima segurança, crimes acontecem por todo lado à luz do dia!

- Eu sei, por isso eu e Gaicus estamos numa fazenda perto de Tarracina, e seria melhor se todos fôssemos para lá! - Methos assumiu um tom confidencial - A propósito, alguém já disse que ficas ridículo com esse cabelo descolorido?

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Tarracina - Península Itálica - 74 a.C.

- Vamos passar só uns dias em Roma, não te preocupes!

Marconus tentava a todo custo amansar a esposa, mas Aka continuava resmungando e Methos estava impaciente. Na verdade todos andavam estranhando-se desde o reencontro e Methos arrependia-se de ter sugerido que viessem viver juntos ali. Antes, em Roma, tinham morado sempre em duas ou mais casas separadas, a capital oferecia uma enorme variedade de entretenimento e eles andavam cada qual para seu lado. Agora, ao contrário, estavam todos diariamente confinados à mesma residência, não tinham uma vizinhança interessante e um acabava intrometendo-se na vida do outro por pura falta do que fazer. A convivência forçada começava a desgastá-los e a única coisa que distraía-os atualmente eram as viagens de negócios ou à praia, no verão.

Desta vez Methos, Marconus e Gaicus iriam a Roma, e Eksamus ficaria com a irmã, porém Aka implicara na última hora. Ela parecia esquecer-se que todos tinham propriedades e negócios na capital, e que aquela infeliz vida de senhor de terras era a coisa mais aborrecida do mundo para quem tivesse morado tantos anos em Roma - em especial tratando-se de homens solteiros e saudáveis, que de vez em quando apreciariam uma companhia feminina diferente. Roma estava cada dia pior, com gente demais, sujeira por todo lado e violência em excesso, mas o que eles poderiam fazer? Era lá que estava empenhada grande parte de suas fortunas, e eles precisavam manter-se informados sobre o que acontecia no coração da República!

- Traremos Titus de volta inteiro! - espicaçou Methos, tentando apressar a partida - Vamos apenas levá-lo para uma orgia, o que há de mal nisso?

Aka fuzilou-o com o olhar e Marconus derreteu-se em dengos para acalmá-la, até que os três puderam enfim montar em seus cavalos, enquanto os escravos apertavam-se numa quádriga com a bagagem.

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Roma - Península Itálica - 74 a.C.

A estadia na capital foi proveitosa para os três amigos Imortais, que resolveram rapidamente seus negócios e ainda tiveram tempo de participar de alguns eventos. Um deles foi um jantar durante sua última noite na cidade, e ao qual Marconus compareceu apenas por insistência dos amigos.

- Por mim eu dormiria mais cedo! - resmungou ele, reprimindo um bocejo - Amanhã teremos que enfrentar a estrada!

- Logo voltarás aos braços eternos de tua esposa! - brincou Gaicus, empurrando-o porta afora - Aproveita tuas poucas horas de liberdade, homem!

Gaicus já não bebia como antes, por causa dos tempos que passara com Emrys, e Marconus sempre fora o mais comedido do grupo, mas Methos aproveitou para descontar o tédio da fazenda e logo embebedou-se, sumindo no jardim com uma dançarina. Marconus entreteu-se jogando com um grupo de patrícios, enquanto Gaicus despejava galanteios sobre uma jovem de trejeitos sedutores. Quando Methos enfim voltou, com os cabelos desgrenhados e a roupa amarrotada, Gaicus tinha desaparecido com a garota, levando a quádriga em que tinham chegado, mas deixara seu escravo para trás. Marconus ressonava num divã, rodeado por seu escravo pessoal e os dos amigos. Já era alta madrugada e os últimos convivas também dormiam pelos cantos, bêbados, ou partiam tropeçando para casa. Methos acordou Marconus gentilmente e cutucou os escravos no chão. Sem condução, os Imortais resolveram encurtar caminho seguindo à pé pela avenida ao longo do Circus Maximus. Não era uma região segura, mas pelo menos chegariam mais rápido à hospedaria.

Contudo, ao aproximarem-se da frente do circo, sentiram a presença de um Imortal. Marconus estacou de repente, olhando em volta com desconfiança, e Methos logo sacou a espada. Os archotes da iluminação pública espalhavam luzes trêmulas pelas fachadas dos prédios ao redor. No interior do circo, mais uns poucos archotes permaneciam acesos nos corredores que levavam aos vomitoria (7), mas não havia ninguém lá dentro agora, nem tampouco nas ruas próximas. Não se ouvia nem o som dos cavalos da ronda noturna, o que não era um bom sinal.

- Não é Gaicus! - murmurou Methos.

Marconus mandou que os escravos fossem para a hospedaria e aguardassem lá. Os três rapazes atravessaram a rua correndo e logo desapareceram. Methos foi o primeiro a distinguir o vulto que esgueirava-se pelas colunas da entrada do circo.

- Ora, se não é Marcus Aediles! - bradou com ironia, forçando o outro a sair das sombras - Pensei que estivesses até hoje correndo dos cobradores de impostos!

- Ave, Remus e Marconus! - saudou Aediles, igualmente irônico - Ainda juntos? Não pensei que vosso romance duraria tanto!

- Continuas um verme! - riu Methos - Aproveita que a rua está deserta, ninguém verá tua fuga!

- E quem disse que pretendo partir tão cedo? - Aediles fez a lâmina de sua espada brilhar sob a luz dos archotes - Vim buscar uma lembrança de Roma... Tua cabeça, por exemplo, seria excelente!

- Somos dois deste lado, não vês? - Marconus sorriu, afastando-se de Methos e também sacando a espada - Apesar que, para dar cabo de ti, apenas meio já bastaria...

- Apenas um contra um, é a Regra! - Aediles riu com malícia - Então, quem será o primeiro?

- És um pretensioso! - Marconus colocou-se perto das colunas do circo e assumiu posição de combate - Quanto vale a cabeça deste cretino, Methos?

- Estás brincando? - Methos repousou a ponta da espada no chão e apoiou-se despreocupadamente na arma com ambas as mãos - Nem um açougueiro iria querer essa porcaria! Deixa-me pegá-lo, Titus, tu estás com sono!

- E tu bebeste demais! Darei cabo dele num instante, queres apostar? - sem tirar os olhos de Aediles, Marconus soltou uma volumosa bolsa do cinturão e atirou-a para o lado do amigo - Isso contra tua parte na fazenda, pelo privilégio de fatiar esse bastardo. O que achas?

Methos caminhou lentamente para apanhar a bolsa, que caíra ao chão com um tilintar de moedas. Aediles estava ficando impaciente mas não disse nada, aproveitando o tempo para medir suas possibilidades contra os dois.

- Ora, ganhaste bem no jogo esta noite... Dá até para comprar uma casa com isso! - comentou Methos, analisando o conteúdo da bolsa - Estou cansado daquela fazenda, acho que vou passar meu próximo verão em Herculânia!

- Alea jacta est (8)! - Marconus avançou para Aediles - Estou numa ótima noite e quero aproveitá-la até o fim!

- Que aposta é essa? - protestou Aediles, aparando os primeiros golpes - Eu vencerei os dois, mas quem me pagará por isso?

- Se escapares vivo já estarás lucrando, não? - zombou Methos, por cima do ruído das espadas - Acaba logo com ele, Titus!

Marconus tentou prensar Aediles de encontro a uma coluna, porém ele desviou e os dois passaram a lutar na penumbra da entrada do circo. Methos ia aproximar-se para observar quando sentiu outro Imortal à distância, e colocou-se em alerta. Poderia ser Gaicus, mas também poderia ser algum amigo de Aediles - o patife era traiçoeiro, dele esperava-se qualquer coisa, e Methos começou a arrepender-se por ter bebido tanto no jantar. Agora sentia-se sóbrio, porém seus reflexos ainda estavam prejudicados. Sua aposta com Marconus fora só para assustar Aediles e fazê-lo fugir, porque na verdade não tencionava duelar com ninguém.

Marconus forçou Aediles para dentro do circo, provocando-o com impropérios. Confiando que o amigo logo daria conta do problema, Methos permaneceu observando a rua e concentrando-se para a possibilidade de enfrentar o Imortal que chegava. De repente outro Imortal, alguém poderoso, entrou em seu campo vibratório, vindo do lado oposto, e Methos praguejou por entre os dentes. Se um deles fosse Gaicus, quem seria o outro? O ruído das espadas ficava cada vez mais distante conforme Marconus embrenhava-se com Aediles pelo prédio vazio. Methos já não podia vê-los, mas não ousava ir atrás deles sem saber quem se aproximava. Um suor frio começou a brotar por todo o seu corpo. Lembrou-se da infeliz premonição, e por um minuto imaginou se não seria ele próprio quem morreria naquela noite.

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Os escravos encontraram Gaicus alguns quarteirões à frente e avisaram que seus patrões tinham ficado perto do Circus Maximus, em atitudes estranhas. Sentindo três Imortais reunidos, Gaicus imediatamente mandou os rapazes irem embora na quádriga e aguardarem na hospedaria. Algo estava errado, pois não sabia de mais ninguém na cidade. Conforme avançou à pé, Gaicus distinguiu o som distante das espadas - pelo jeito seus amigos tinham mesmo encontrado um desafiante, porém mais um Imortal aproximava-se, vindo da direção contrária. O problema era que agora seu carro já ia longe com os escravos e, se quisesse chegar a algum lugar, Gaicus teria que correr.

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Eksamus quase matou vários cavalos de exaustão em sua corrida até Roma, não dando um minuto de descanso aos animais. Aka tinha acordado aos gritos a seu lado de madrugada, e por pouco não derrubara-o da cama. Ela vinha dormir com ele sempre que Marconus ausentava-se, e muitas vezes ambos passavam horas conversando antes de pegar no sono. Desta vez não tinha sido diferente e os dois adormeceram abraçados, porém Eksamus logo mergulhou num sonho ruim, que deixou-o banhado em suor. Seu susto foi enorme ao ouvir os berros da irmã, e ele precisou de alguns segundos para entender que ela também estava tendo um pesadelo. Aka começara a chorar, afirmando que em seu sonho alguém do grupo estava morrendo em Roma, e Eksamus arrepiou-se inteiro - estivera sonhado praticamente a mesma coisa.

Imediatamente Eksamus aprontou-se para correr até a capital. Sua irmã estava desesperada e ele também não conseguiria mais dormir enquanto não visse os amigos vivos. Aka quis ir junto, mas Eksamus não poderia levá-la naquele estado e ordenou que os escravos a mantivessem em segurança até sua volta, impedindo que qualquer estranho se aproximasse da fazenda. Ele viajaria mais rápido se fosse sozinho, a cavalo, e não levaria nem bagagem. Se estivessem errados, ele provavelmente encontraria os amigos em Roma, e voltaria em seguida com eles. Se estivessem certos, a única coisa que Eksamus precisaria seria de uma espada para vingar aqueles que amava.

Trocando as montarias extenuadas a cada vila, posto de mensageiros ou estalagem que encontrou ao longo da Via Appia, Eksamus chegou a Roma no meio da noite seguinte. Estava cansado e com fome, mas não pararia enquanto não encontrasse os amigos. Só que o grupo não estava na hospedaria combinada, e o sonolento hospedeiro não sabia informar sobre eles. Deixando seu último cavalo mais morto do que vivo nas mãos do homem, Eksamus saiu por Roma à pé, contando apenas com sua vibração para encontrá-los. Não tinha cruzado com nenhum deles na estrada, então eles teriam que estar em algum lugar da cidade.

Uma hora mais tarde, vagando perto do rio, Eksamus sentiu vibrações reunidas para o lado do circo. Correndo naquela direção, percebeu com alívio que eram mesmo três Imortais. Só que havia mais um aproximando-se deles. Eksamus não sabia quem poderia ser, e achou melhor acelerar o passo.

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Alguém gritou dentro do circo e Methos decidiu entrar. Enveredando pelo corredor mal iluminado de onde vinha o som, de repente ele congelou-se em seus passos, prisioneiro de indescritível terror - atravessado pela espada de seu oponente, Marconus começava a perder as forças, enquanto Aediles, tomando rapidamente a arma que ele deixara cair, decepava-lhe a cabeça com um golpe certeiro. Methos não percebeu que o grito alucinado que ecoou pelo prédio era seu e viu, paralisado, o corpo e a cabeça de Marconus caírem ao chão.

Vendo Methos e sabendo que mais Imortais chegavam, Aediles largou a arma de Marconus, recuperou sua espada do corpo com um puxão e fugiu. Methos não conseguia mover-se, petrificado pelo choque, e outro grito inumano saiu de sua garganta. Titus estava morto!

Um vento súbito apagou parte dos archotes e uma poeira fina ergueu-se do piso. Raios pularam do corpo de Marconus e serpentearam pelas paredes, chispando em perseguição ao assassino. Methos ouviu os gemidos distantes do desgraçado e a fúria cresceu tanto em seu peito que imaginou-se capaz de explodir. Ia correr atrás de Aediles quando um raio mais forte estremeceu o prédio, forçando-o a parar. Mais archotes apagaram-se e o corredor mergulhou numa escuridão quase completa. Methos não conseguia passar pelo corpo de Marconus, que emitia fagulhas e raios. Os dois outros Imortais que estavam na rua aproximavam-se depressa. Finalmente a tormenta cessou e o triste cadáver repousou imóvel no chão.

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Eksamus ouviu um som estranho quando atravessava o mercado deserto, e em seguida raios cortaram o céu limpo, convergindo para o Circus Maximus. Aquilo só poderia significar uma coisa. Sentindo seu estômago contrair-se, Eksamus murmurou instintivamente uma prece em seu idioma ancestral, uma prece há muito esquecida, para que nenhum de seus amigos estivesse ferido. Senão, aqueles não seriam os únicos raios que assombrariam Roma naquela noite.

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Quando Gaicus chegou à frente do circo, ofegante, não encontrou ninguém à vista. Subitamente gritos medonhos reboaram dentro do prédio e Gaicus arrepiou-se, sacando imediatamente a espada. Uma forte ventania levantou a poeira da rua, apagando alguns archotes próximos. Raios iluminaram os céus, enquanto o gigantesco vulto do Circus Maximus parecia tremer de cima a baixo. Gaicus entrou no prédio temendo que ele desabasse. Um Imortal afastava-se, um permanecia dentro do circo e outro chegava cada vez mais perto. Um pesado silêncio baixou nos corredores quando os raios cessaram.

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Lançando um último olhar ao corpo de Marconus, Methos cerrou os dentes e pulou sobre ele. Entretanto, a vingança não estava mais a seu alcance. Um Imortal afastava-se do prédio, e deveria ser Aediles em fuga, mas outro estava entrando e o próximo não tardaria a chegar. Methos precisava sair dali. Lembrava-se de ter visto, em outros tempos, algumas passagens usadas pela milícia para invadir o circo mais rapidamente em caso de tumultos, e que portanto deveriam abrir direto para a rua. Mas onde ficavam as portas?

Correndo com a mão ao longo das paredes, Methos sentiu finalmente um portão de ferro e tentou forçá-lo. Estava trancado. Ao encontrar o cadeado, Methos começou a golpeá-lo com a espada, praguejando contra a escuridão. O velho cadeado logo cedeu mas, assim que deu o primeiro passo através da passagem, Methos perdeu o equilíbrio e viu-se pairando no vácuo. Pareceu-lhe ouvir uma voz conhecida, então sentiu seu ombro sendo torcido e sua cabeça bateu em algo. Ao chegar ao pé da escada, com uma costela quebrada perfurando seu pulmão, Methos apagou.

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Ouvindo o som de pancadas de metal contra metal, Gaicus disparou naquela direção chamando pelos amigos, mas alguma coisa no caminho fez com que caísse numa grande poça viscosa. Rolando para o lado com uma imprecação, o rapaz tateou na penumbra até encontrar uma cabeça separada do corpo e, mantendo-a à distância do braço esticado, cheio de aversão, virou-a para descobrir de quem era. Quando os olhos vítreos de Marconus fitaram-no, Gaicus começou a berrar como um possesso e, tremendo violentamente, afastou-se do grande volume que agora distinguia no chão. Era o corpo de Titus! Um Imortal sumia na distância. E os outros, quem eram? A vibração de um deles tinha cessado de repente. Gaicus não conseguia raciocinar direito por causa do choque. Uma coisa era decapitar um inimigo, a outra era segurar a cabeça decepada de alguém que amava! Sentia-se preso num pesadelo medonho, do qual daria tudo para escapar.

Localizando um archote ainda acesso, correu até lá e arrancou-o do suporte com um tranco. Ao aproximar-se novamente do corpo do mestre, ainda tremendo, Gaicus viu Eksamus surgir diante de si.

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Correndo como louco, Eksamus entrou no circo seguindo gritos de um homem. A escuridão era quase total e apenas um Imortal parecia estar agora no prédio. Sacando a espada, Eksamus teve que tatear ao longo das paredes até divisar uma luz. O que viu ao aproximar-se foi o horror dos horrores - Gaicus trazia as roupas e a espada sujas de sangue e Marconus jazia decapitado a seus pés.

- Onde está Methos? - murmurou Eksamus automaticamente.

- Eu... - Gaicus estava mais confuso ainda por vê-lo - O que fazes aqui?

- Foste tu que fizeste isso? - os olhos de Eksamus encheram-se de lágrimas raivosas.

- NÃO! Claro que não! - só então Gaicus deu-se conta que estava coberto de sangue - Oh, por Júpiter, é... Oh, não...

Deixando cair o archote, Gaicus deu dois passos para trás, como se isso pudesse afastá-lo do sangue em suas mãos. Vendo que sua espada também estava suja, seu estômago revirou-se e ele teve que engolir em seco para não vomitar. Voltou-se em desespero para Eksamus, mas este encarava-o com tanta fúria que seu coração saltou no peito

- Não pensas mesmo que eu... - murmurou Gaicus - Não, isso é loucura, eu...

- Tu mataste teu próprio mestre! - gritou Eksamus - Maldição, Gaicus, jamais vou perdoar-te por ISSO!

Num salto ele passou por cima do corpo de Marconus e atacou o rapaz com ferocidade.

- Estás louco? - gritou Gaicus, aparando instintivamente os golpes - Havia mais alguém aqui... Ele já estava morto quando cheguei!

- Onde está Methos, tu o mataste também? - Eksamus sentiu um Imortal surgir em algum lugar do prédio, e sua distração permitiu que Gaicus o acertasse no ombro esquerdo - Desgraçado! Quem mais está aqui, é teu cúmplice?

- EU NÃO SEI! Não matei ninguém! - Gaicus recuava pelo corredor para não lutar - Eu não queria ferir-te...

- Pela última vez, fala! - Eksamus avançou, levantando novamente a espada - ONDE ESTÁ METHOS?

- Pára ou vamos nos matar, será que não me ouves?! - Gaicus sentiu um nó na garganta e uma terrível vontade de chorar - Céus, como fui emporcalhar-me com esse sangue? Isso é um pesadelo...

Sons no fim do corredor fizeram Eksamus retroceder, apurando os ouvidos. Gaicus encostou-se à parede, fitando as mãos sujas com agonia. Um soluço sacudiu-o e ele deixou a espada cair - Marconus morreu, Methos sumiu, Eksamus estava atacando-o sem razão e outro Imortal aproximava-se. Não havia escapatória, era melhor morrer logo do que tentar entender aquilo. Por que o chão não se abria e tragava-o vivo? Gaicus agachou-se, chorando como criança.

- Eksamus? - Methos apareceu mancando, a espada numa mão e a outra segurando o ombro - O que fazes aqui? Gaicus!

- Methos! - Eksamus ficou aliviado ao vê-lo, mas ainda mantinha a atenção em Gaicus - Esse desgraçado matou Titus!

Methos relanceou os olhos pela triste figura do rapaz que soluçava alto, com a cabeça enfiada entre os joelhos e os braços cruzados na nuca, e compreendeu o que Eksamus imaginou. Com um suspiro, Methos apoiou-se na espada para disfarçar a dor dos ossos quebrados que se recompunham.

- Não foi ele, foi Marcus Aediles! - murmurou, muito pálido - Nós o encontramos lá fora, Titus aceitou enfrentá-lo e... E eu não impedi!

- Mas e ele? - Eksamus engoliu em seco, apontando para Gaicus com a ponta da espada.

- Gaicus não estava conosco, eu senti vossa aproximação e pensei que fossem amigos de Aediles... - Methos tentou manter a voz firme - Quando entrei, já era tarde! Tentei pegar Aediles mas ele fugiu, e eu caí numa maldita escada!

Methos encostou-se contra a parede e, com uma careta, levou a mão livre às costelas. Eksamus passou por Gaicus e amparou Methos para que pudesse sentar-se.

- Gaicus é inocente! - falou Methos entre dentes - Se alguém teve culpa fui eu!

Agachado diante dele, Eksamus olhou para Gaicus com arrependimento sincero. O rapaz não conseguia parar de soluçar, e logo Eksamus chorava também. Estendeu um braço e puxou Gaicus para perto, abraçando-o e murmurando pedidos de perdão. O rapaz não resistiu, agarrando-se a ao amigo com abandono.

- Ele nem queria sair hoje! - exclamou Gaicus - Agora ele está morto, e eu o amava... Ele era meu irmão, meu pai!

Methos abaixou a cabeça e apertou os olhos para mantê-los secos, porém sua mão resvalou na bolsa que Titus lhe dera há pouco, quando fingiram aquela aposta idiota, e ele não conseguiu mais controlar-se - a premonição estava cumprida.

*************

Notas explicativas:

1 - Numantia seria Numancia, no norte da Espanha.

2 - Por lei os cônsules romanos só poderiam ocupar o cargo uma vez na vida, mas Publius Cornelius Scipio Aemilianus, já tendo sido cônsul e comandante militar na África em 147 a.C. (daí seu apelido de Scipio Africanus), quando apagou Cartago do mapa, e censor do patriciado em 142 a.C., ainda assim obteve unanimidade de votos em 134 a.C. na assembléia tribal, a Comitia Tributa, e contava com tamanho apoio popular que não houve como contestar seu direito de reassumir o cargo de cônsul.

3 - A primeira rebelião de escravos da República Romana iniciou-se em 135 a.C. na ilha de Sicília e espalhou-se pelo sul da Península Itálica, numa onda de fugas, massacres e selvageria. A revolta só foi controlada em 132 a.C..

4 - África na época era uma província romana que compreendia apenas a região da atual Tunísia, onde antes ficava Cartago, no norte do continente africano. Utica hoje é somente um sítio arqueológico próximo ao litoral da Tunísia.

5 - Agrigentum é a atual Agrigento, na Sicília.

6 - Na época toda a região da antiga Grécia recebera o nome genérico de Macedônia.

7 - Vomitória é o plural latino de vomitorium. Ao contrário do que Methos afirmou num episódio de "Highlander: A Série", o vomitorium não era um lugar onde os romanos aliviavam seus estômagos após comer e beber em excesso. Os vomitoria eram túneis que davam acesso à platéia dos grandes circos romanos, e por onde o público podia entrar e sair das arquibancadas. O Circus Maximus não existe mais, mas alguns vomitoria do Coliseu permanecem inteiros e esse sistema de túneis é usado até hoje em estádios esportivos.

8 - "A sorte está lançada!"
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