O Mais Velho dos Velhos


Atenas, Grécia - cerca de 500 a 400 a.C.

A vida dos irmãos Imortais começou a complicar-se com o passar dos séculos. Tendo vivido em tantos lugares diferentes, eles agora não sentiam-se mais parte de nenhuma nação e viam-se encurralados no Peloponeso. O Egito, sua pátria, chegou até a ser dominada por uma dinastia de faraós núbios, que os micenos chamavam pejorativamente de etíopes (1), e agora arrastava-se sob o domínio dos persas. A Babilônia e a Assíria tinham sucumbido às constantes invasões nos últimos séculos, e não havia paz em lugar nenhum.

A cultura micênica evoluiu para outra mais ampla, chamada helenística, e várias cidadelas importantes surgiram ao norte da península, entrando continente adentro. Porém essa cultura, apesar de rica e empreendedora, estava tornando-se muito diferente de tudo o que os irmãos imaginaram. Os helenos agrupavam-se em cidadelas que chamavam de polis (2), que eram como reinos independentes, muitas vezes rivais entre si, e o povo que ali vivia dividira-se com o tempo em classes sociais definidas, cada vez mais cheias de preconceitos e regras. Para os helenos, mulheres, escravos e estrangeiros eram criaturas menores na sociedade, e isso os irmãos jamais admitiriam.

Eksamat rebelava-se por ser visto como estrangeiro numa região onde já vivia há séculos, e onde antes seria recebido nas melhores casas de família. Agora, se não chegava a ser tratado como um criado qualquer, era porque ainda possuía uma bela fortuna pessoal e intelecto acima da média. Do contrário, seria-lhe impossível até comprar roupas no mercado ou assistir aos jogos públicos sem que alguém reparasse em seu leve sotaque e passasse a olhá-lo de soslaio.

Para Aka, educada como mulher livre e em igualdade de direitos com qualquer homem, as coisas estavam ainda piores do que para Eksamat. Os helenos, com o passar do tempo, foram alijando as mulheres do convívio social, tachando-as de incapazes, até que finalmente privaram-nas de seus direitos elementares. As mulheres das altas camadas sociais eram as mais cerceadas, vivendo sob um código moral e social aberrante - perto delas, as escravas e prostitutas tinham até maior liberdade, pois pelo menos podiam sair à rua sozinhas e ter negócios próprios (3). Em mais de uma ocasião, para preservar a irmã, Eksamat foi obrigado a mentir que ela era sua esposa, caso contrário Aka teria sido tomada por uma hetaira (4) ou uma das muitas prostitutas estrangeiras que trabalhavam oficialmente nas dicterias (5).

Sem saber mais onde estabelecer-se, já que os odiosos persas dominavam ou influenciavam o resto do Mediterrâneo que os helenos não alcançavam, os dois Imortais viram-se muitas vezes em desespero. Ambos exilavam-se com frequência em suas propriedades rurais, longe das ágoras, porém de tempos em tempos eram forçados a voltar às cidades, empurrados por guerras que ameaçavam sua tranquilidade.

Após uma temporada na região de Esparta, onde os costumes eram ainda mais rígidos e a belicosidade mais valorizada, os irmãos mudaram-se para as proximidades de Atenas, na região da Ática, onde havia um regime de governo mais maleável, que os helenos chamavam de democracia. Atenas estava longe de ser realmente democrática, mas pelo menos ali concentrava-se um número maior de sábios e artistas, e as escolas eram provavelmente as melhores do mundo helênico. Na realidade Esparta e Atenas tinham transformado-se nas principais cidades da época, e rivalizavam cada vez mais entre si, ambas aglomerando sob sua influência um grande número de outras polis importantes. De vez em quando ambas uniam-se contra tentativas de invasões persas, mas na maioria do tempo as duas estranhavam-se e declaravam guerra uma à outra, arrastando consigo o resto do mundo helênico. Em todo caso, os irmãos sentiam-se mais à vontade tendo que abrigar-se na ágora de Atenas do que na de Esparta.

Sem direitos políticos, apesar de sua reconhecida fortuna, o máximo que Eksamat podia fazer era participar de alguns eventos públicos e confraternizar com os sábios, que davam a maioria das aulas ao ar livre ou em templos, para alunos de diversas idades ao mesmo tempo. Um de seus primeiros amigos intelectuais foi o jovem Eurípides. Ambos conheceram-se nos jogos públicos, onde Eurípides destacou-se como atleta, chegando a ganhar alguns prêmios. Talvez por sua mãe ter vindo de origens humildes, uma simples vendedora de ervas no mercado, Eurípides não era tão preconceituoso quanto outros de seus colegas de estudos.

- Tens uma resistência impressionante, meu caro! - elogiou um dia Eksamat, após uma tarde de treinos de combate com o jovem amigo, em 457 a.C. - Quase me derrubaste desta vez!

- Agradeço-te o elogio, Eksamat! - ofegou Eurípides, banhado em suor - Mas ainda estou longe de superar-te, e para minha sorte tu não te inscreves nos jogos, senão eu estaria perdido!

- Acho sinceramente um desperdício que tu não tenhas o mesmo gosto pela vida pública!

Eksamat referia-se à preferência do amigo pelos manuscritos de sua vasta biblioteca e pelo tempo que passava isolado, compondo obras literárias ou pintando. Aos vinte e quatro anos e divulgando sua primeira peça teatral, Eurípides ainda gostava de frequentar as aulas dos sábios Anaxágoras, Protágoras e Pródicus, sendo amigo íntimo do governador Péricles.

- Ah, meu caro, tu sabes que sou tímido! - replicou Eurípides, dando um tapinha nas costas de Eksamat - Nosso amigo Cabeça-de-Cebola (6) até tenta explicar-me as idéias de seu governo, mas a mim não interessam esses assuntos do poder! Sonho em um dia ter meus textos declamados nos teatros, isso sim!

- Pois eu acredito que Péricles ainda vai dar trabalho! - criticou Eksamat, franzindo a testa - Não gostei muito de certas idéias que ele expôs uma vez, quando conversávamos com mestre Pródicus! Também me desagradou o fato de ele espichar os olhos para Aka, tratando-a com intimidades que ela não lhe permitiu!

- Tua irmã é de uma beleza interessante! - comentou Eurípides, corando - Péricles leva uma vida um tanto desregrada para meu gosto, não creio sequer que ele perceba sua grosseria! Mas ouvi dizer que os irmãos Paneno e Fídias andam trocando tapas pelo privilégio de ter Aka como modelo de alguma de suas obras...

Eksamat soltou uma gostosa gargalhada ao lembrar-se de como Paneno, o pintor, e Fídias, o escultor, andavam de beiços esticados nas últimas semanas. Os irmãos artistas, com efeito, não confessavam publicamente, mas tinham pedido mais de uma vez a Aka que posasse para eles. Ela nunca aceitava, porém também não negava, receosa de magoá-los. O resultado foi que ambos agora estavam às turras entre si, para ver quem conseguia primeiro os favores da "pequena Afrodite da Ática", como eles a chamavam em segredo. O que os dois artistas não sabiam era que Aka estava interessada num jovem e promissor político, com quem andava trocando olhares há alguns meses.

E em verdade, enquanto Eksamat e Eurípides treinavam, Aka tinha saído acompanhada de uma criada para passear, justamente tentando avistar-se com seu pretendente. O rapaz tinha-lhe enviado uma respeitosa carta, saudando-a com amabilidade e tratando de futilidades, mas a experiência de Aka fazia-a ler nas entrelinhas que o jovem esperava a chance de cortejá-la. E naquela mesma tarde conseguiu encontrá-lo, cumprimentando-o com um belo sorriso quando cruzaram-se na rua. Para as conveniências da época, aquele era um claro sinal de que ela aceitava ser cortejada, e o rapaz sentiu-se nas nuvens, indo em seguida ao encontro de Eksamat para, mesmo diante de Eurípides, pedir-lhe licença para visitar Aka em casa.

Pelos costumes, Eksamat seria o tutor da irmã, e a ele competiria decidir a época em que ela deveria casar-se (7). Como ele nunca manifestava-se a respeito e Aka, mesmo supostamente solteira, já tinha passado da adolescência, nenhum homem atrevia-se a tomar a iniciativa de cortejá-la seriamente. Aquele jovem e ambicioso político, que Eksamat tinha em grande apreço, fora o primeiro com coragem suficiente para pedi-la como esposa, e o Imortal logo pressentiu que Aka estaria por trás daquilo, dando-lhe portanto seu imediato consentimento.

O namorico ocorreu discretamente, diante das vistas de Eksamat e dos amigos que frequentavam-lhe a casa, como convinha. Alguns rapazes, percebendo a chance de casar com uma mulher tão rica, tentaram colocar-se na disputa pela mão de Aka e praticamente viviam à sua porta, oferecendo-lhe presentes, declamando-lhe versos e dedicando-lhe músicas. Porém ela queria mesmo era seu jovem político, que em poucos dias era nomeado para o cargo de magistrado, com mandato válido por um ano. Após as cerimônias de posse na elevada função, o rapaz foi enfim aceito formalmente por Aka, para decepção de seus outros pretendentes, e Eksamat teve quase que botar alguns inconformados para fora de sua casa a pontapés, fazendo valer a decisão da irmã.

Contudo, o jovem magistrado, ousado demais em suas opiniões, acabou angariando alguns terríveis desafetos políticos e, poucos meses depois de ter sido aceito por Aka, foi assassinado a punhaladas num beco. Ao saber que o crime ocorreu justamente numa noite em que seu noivo demorou-se em sua casa para recitar-lhe um belo poema de amor, Aka quase enlouqueceu de dor e ódio. Apesar de ela ter ido pessoalmente até Péricles, demandando uma providência, o próprio governador nada podia fazer sobre o assunto além de exigir amplas investigações. Pelas confidências que o noivo lhe fazia, para Aka era fácil adivinhar quem seriam os principais suspeitos do assassinato, porém a política complicada da época impediu que qualquer um fosse punido. Eksamat bem que quis fazer justiça pelas próprias mãos, entretanto os amigos e mestres eruditos convenceram-no, a custo de muito palavrório e filosofia, que nada adiantaria uma atitude impensada contra os poderosos. Revoltada e desgostosa, Aka passou meses trancada em casa, sem ver ninguém além do irmão e dos criados.

- Eu deveria mesmo virar hetaira! - gritava ela, em seus desabafos sofridos, para Eksamat - Assim pelo menos ficaria livre de uma vez por todas! De que me adiantou esperar e acalentar tantos sonhos, se meu noivo morreu antes sequer de trocar pouco mais que uns beijos comigo? Ele tinha apenas vinte e oito anos, e ninguém foi punido! Eu odeio essa sociedade hipócrita!

Eksamat enfim conseguiu acalmá-la e, aos poucos, Aka voltou ao convívio dos amigos de antes, aceitando até posar secretamente para uma estátua que Fídias lhe dedicou. Novamente os pretendentes bateram à sua porta, porém ela os dispensou de pronto, decidida a continuar livre apesar dos preconceitos.

Em poucos anos Fídias foi convidado por Péricles para coordenar as obras de um templo monumental em homenagem à deusa Palas Atena, padroeira da cidade, e que seria chamado de Partenon. Vários artistas mobilizaram-se para ajudar Fídias no trabalho e, mesmo entendendo pouco de arte propriamente dita, Eksamat acorreu em socorro do amigo dando palpites sobre arquitetura, resgatando do fundo da memória o que tinha aprendido com Imhotep em Saqqara, há milênios. Apesar da poeira e da azáfama ao redor do grande canteiro de obras, muitos sábios visitavam o local para apreciar os trabalhos, e não raro aproveitavam para levar uma penca de discípulos atrás de si, explicando-lhes teorias matemáticas e geométricas com exemplos práticos. Quase sempre era Eksamat quem ficava atento a esses grupos de visitantes, mantendo-os longe de ferramentas ou de locais perigosos para que não causassem acidentes com sua distração.

Foi durante uma dessas visitas que um jovem chamado Sócrates, enviado por Eurípides, decidiu atazanar com certas idéias filosóficas. Fídias já tinha perdido a paciência com o rapaz e sobrara para Eksamat dar-lhe atenção, enquanto passeavam entre enormes blocos de mármore e escravos seminus. Olhando a paisagem do alto da colina, quase sem escutar o que o teimoso Sócrates tagarelava a seu lado, Eksamat praguejava contra Eurípides pela idéia inoportuna de mandar-lhe um jovem rico e mimado para fuçar as obras, quando foi surpreendido pela aproximação de um Imortal.

A sensação tomou-o desprevenido e, reconhecendo que não era Aka quem estava por perto, Eksamat empalideceu. Há muito tempo não encontrava outro de sua espécie, o último de que tivera notícia fora o desgraçado que invadiu a casa de sua irmã há mais de mil anos e tivera o merecido fim. Esse que aproximava-se devia ser uma criatura poderosa, pois Eksamat nem sequer conseguia vê-lo, onde quer que estivesse, mas sua presença era avassaladora.

- Sócrates, peço-te que deixes por ora tuas teorias! - exclamou Eksamat de repente, tentando livrar-se do companheiro - Não sinto-me tão bem disposto quanto antes, gostaria que tu voltasses amanhã para continuar nosso passeio!

O rapaz ainda tentou objetar mas, divisando um vulto que caminhava lentamente por uma alameda de arbustos ao longe, no pé da colina, Eksamat fez um gesto imperioso para que Sócrates fosse embora. Adivinhava que aquele que vinha em sua direção era alguém dotado de força extraordinária, e um suor frio brotou-lhe da testa enquanto raciocinava sobre o que fazer. Sabendo que a proximidade dos operários era sua garantia de vida, Eksamat decidiu permanecer onde estava, enquanto o vulto prosseguia a passos lentos em sua caminhada, olhando às vezes ao redor por baixo de um amplo manto jogado por sobre sua cabeça, como se fosse um capuz de viajante. Eksamat não podia ver-lhe o rosto porém reconhecia tratar-se de um homem, com ombros largos e a estrutura sólida de um atleta. O mais irritante era que, mesmo tendo erguido a cabeça algumas vezes para fitar Eksamat, indicando que era em sua direção que ele subia, o outro Imortal parecia mais disposto a apreciar as belezas da paisagem, parando por alguns instantes aqui e ali como quem tenta reencontrar um caminho perdido nas lembranças.

Quando afinal o outro encontrava-se próximo o suficiente para ouvir sua voz, Eksamat gritou-lhe com ironia:

- Estamos em obras por aqui, homem! Se acaso perdeste teu caminho, sugiro que tomes a alameda à tua direita, por onde poderás alcançar a ágora!

O outro parou, espiando-o por debaixo do manto, e olhou para o caminho que Eksamat apontava. De repente, o homem ergueu a mão e puxou o capuz, revelando a cabeleira e a barba escuras, e um semblante maduro, porém sereno. Voltando-se novamente para Eksamat e percebendo como ele o encarava, com a mão visivelmente no cabo da espada, semi-oculta sob a longa túnica, os olhos do estranho ensombreceram-se. Sem saber por que, Eksamat foi invadido por uma sensação de culpa, arrependendo-se de suas palavras ásperas. Mesmo assim forçou-se a permanecer impassível, não querendo dar ao outro a mínima demonstração de medo ou fraqueza. Subitamente a voz do estranho chegou até ele, carregada de recriminação:

- Eu tencionava pedir-te um pouco de água e alguns minutos de descanso à sombra, mas vejo que errei em aproximar-me de ti! Julgava os egípcios mais amistosos, mesmo perdidos nestas terras distantes...

Os cabelos de Eksamat arrepiaram-se na nuca e seus olhos chisparam.

- Quem acaso te falou que sou egípcio? - gritou de volta, empertigando-se - Se queres abrigo, decerto encontrarás paragens mais acolhedoras do que estas obras, se prosseguires teu caminho em paz!

O estranho limitou-se a sorrir e sacudir a cabeça ironicamente. Eksamat tinha ganas de desafiá-lo logo de uma vez, porém seu medo era maior, mesclado com um pressentimento de que o mais correto era permanecer onde estava. O outro Imortal voltou a encará-lo, desta vez arrancando o manto de sobre os ombros com um gesto rápido, desvendando as vestes empoeiradas de quem fez uma longa jornada à pé. Dobrando o manto com pouco caso, o estranho começou novamente a subir, indo diretamente até onde Eksamat estava parado. Quando estavam a apenas alguns passos de distância, o outro sorriu despreocupadamente, falando em egípcio antigo:

- Teu sotaque não enganaria nem uma velha surda, meu filho! Agora respeita os mais velhos e dá-me um pouco de água, pois que há dias tenho andado sob este sol terrível!

Eksamat tomou um choque. O estranho não só falava uma língua que ele próprio já começava a esquecer, como ainda tratava-o descaradamente como a um moleque! Lembrando-se de repente que acabara de tratar Sócrates quase no mesmo tom, Eksamat corou, sem conseguir fazer sequer um gesto, tamanha a sua confusão. O outro Imortal, a esta altura, sentava-se sem a menor cerimônia sobre uma pedra, abanando-se com calor e analisando as próprias sandálias, gastas pela longa viagem. Vendo que Eksamat continuava a fitá-lo com desconfiança, o estranho pareceu amolecer, falando-lhe com brandura, ainda em egípcio:

- Meu jovem, sei que tu és como eu e compreendo teus receios, mas asseguro-te que nada tenho contra ti! Não vim aqui por tua cabeça e, ao que parece, tu também não pretendes desafiar-me pela minha. Agora, por favor, faze-me a gentileza de arranjar-me algo de beber, e ser-te-ei muito agradecido!

Ainda sem entender quem poderia ser aquele homem, Eksamat afastou-se cautelosamente, indo buscar água numa imensa tina de madeira perto das obras. Voltando com uma caneca de metal cheia, entregou-a ao estranho e observou-o beber sofregamente. Só agora notava como os pés do outro estavam sujos de barro seco e poeira, e em vários pontos sua túnica estava manchada, amarrotada e puída. Era evidente que o homem tinha mesmo andado muito nos últimos dias, sem sequer ter tido tempo de banhar-se ou trocar de roupa. Seus braços estavam ornados com exóticos braceletes em prata envelhecida, em forma de serpentes aladas, e Eksamat percebeu também, com curiosidade, furos de brincos em ambas as orelhas do outro. Seu porte era atlético e vigoroso, e suas feições eram de um homem de cerca de quarenta anos, a julgar pelas leves rugas ao redor de seus olhos e por alguns fios brancos brilhando em sua farta barba.

Vendo como Eksamat analisava-o detidamente, o estranho devolveu-lhe a caneca com um gesto de agradecimento, perguntando:

- Qual é o teu nome, meu jovem? Quero dizer, qual é o nome pelo qual és conhecido aqui?

- Como sabes que eu uso um nome diferente do que me foi dado? - resmungou Eksamat, tentando lutar contra o impulso de ser amável com o recém-chegado. Já tinha quase perdido a cabeça uma vez para um fenício que fingiu ser seu amigo e, desde então, jurou nunca mais confiar em outro Imortal que não fosse Aka.

- Porque duvido que alguém aqui compreenda o idioma no qual estamos conversando! - riu o estranho, parecendo-lhe que aquilo era óbvio - Se tu usasses o nome que te deram naqueles tempos, decerto o povo daqui não saberia pronunciá-lo!

Eksamat corou diante da lógica da resposta, porém decidiu manter-se firme.

- Eu sou Heka Ma'At de Abtu, mas aqui todos conhecem-me como Eksamat! Agora dize-me teu nome e explica-me como ousas tratar-me como criança, afinal já deves ter percebido que carrego alguns milênios nas contas de minha idade...

O viajante encarou-o por alguns segundos com os olhos castanhos e límpidos, parecendo cansado e perdido em remotas lembranças. Quando falou, seu tom era o de um pai paciente tentando ensinar algo a um menino birrento:

- Milênios... Pois eu asseguro-te que teus poucos milênios nada são diante da minha história! Folgo por saber que sobreviveste tanto tempo, porém para mim tu não passas mesmo de uma criança... Estou neste mundo há mais tempo do que sonha a tua filosofia! Nasci numa época em que não havia calendários nem letras, nem números ou o conforto das casas. A humanidade então nada mais era que um bando de animais selvagens tremendo diante do sol e das estrelas! Meu nome, meu filho, perdeu-se para a língua dos homens, e nem tu conseguirias pronunciá-lo em teu idioma milenar... Hoje chamam-me apenas de Emrys, e é o que me basta!

Eksamat sentiu o chão fugir-lhe dos pés e precisou de toda sua presença de espírito para não sair correndo. Quando andou pelos vazios da Ásia, tinha ouvido histórias de uma criatura que vagava pelo mundo desde a época em que os homens moravam em cavernas. Eram lendas fantásticas sobre um ser poderoso e bom, quase um deus, que tinha sobrevivido a várias catástrofes e sabia tudo o que havia para saber, capaz até de fazer milagres. Eksamat julgava que tudo não passava de superstições, como algumas que envolviam seu próprio passado, até que conheceu o maldito Imortal fenício que depois tentou decapitá-lo. O fenício contou-lhe que provavelmente haveria mesmo um Imortal muito antigo, talvez o mais velho de todos, e cujo paradeiro era desconhecido, sabendo-se apenas alguns de seus nomes, que mudavam com as civilizações, mas tinham basicamente o mesmo significado - Emrys, "O Mais Velho Dos Velhos", o Eterno, o Imortal (8)!

- Agora entendo a força que senti quando tu te aproximastes! - conseguiu dizer Eksamat - Tua vibração alcançou-me antes mesmo que eu pudesse enxergar-te na paisagem! Percebi imediatamente que teu poder era muito maior do que qualquer outro que eu já encontrei!

- E folgo em saber que tens um bom coração a ponto de não teres vindo a meu encontro, para desafiar-me! - Emrys sorriu com certa tristeza, voltando-se novamente para a bela paisagem e fingindo não ver o espanto que surgia novamente nos olhos de Eksamat - Sim, eu sou capaz de sentir tais coisas! Com o tempo tu também aprenderás a identificar as intenções e o poder dos de nossa espécie, e eu percebi que tu não és do tipo que gosta de matar... Tens uma vibração poderosa, contudo percebo que ela é mais resultado de tua idade do que do número de cabeças que arrancaste!

- Tu já mataste muitos de nós? - Eksamat tentava permanecer na defensiva, porém sua curiosidade estava vencendo - Eu na verdade encontrei poucos até hoje!

- Eu matei muitos, infelizmente! - Emrys recolheu o manto que havia largado ao pé da pedra onde estava sentado, sacudindo-o com veemência, e Eksamat enfim percebeu a espada oculta entre as dobras do pesado tecido - Matei mais do que gostaria ou do que seria necessário, se queres saber! E também vi muitos morrerem, vítimas da própria cobiça e estupidez... Pois eu torço para que tu, e quem quer mais de nós que viva nesta cidade, seja inteligente o bastante para não vir atrás de minha cabeça, pois não pretendo criar problemas, mas também sei defender-me quando preciso!

- Como sabes que há outro de nós em Atenas? - Eksamat pulou para trás, arrepiando-se diante da idéia de que Emrys tivesse percebido a presença de Aka - Não há ninguém por perto!

- És um tolo! - Emrys riu, enfiando o manto dobrado com a espada embaixo do braço e levantando-se para partir - Tu mesmo confessaste que sentiste minha aproximação antes de sequer poder ver-me! Acreditas que não posso sentir outro de nós, vivendo nesta cidade? E sei que é alguém tão velho quanto tu, apesar de causar-me estranheza encontrar dois Imortais quase com o mesmo poder, vivendo juntos... Enfim, agradeço-te pela água e pela conversa, porém agora preciso encontrar uma pousada para passar a noite! Até breve, meu caro!

Sem preocupar-se por dar as costas a Eksamat, Emrys desceu agilmente a colina até alcançar a alameda que levava à ágora, parando para um leve aceno antes de retomar seu rumo. Mesmo tendo perdido-o de vista na curva do caminho, Eksamat não conseguia desvencilhar-se da forte vibração do outro, como se ele ainda estivesse a seu lado. Sem saber mais o que fazer, despediu-se de Fídias pretextando um mal estar súbito, e correu para casa a fim de colocar a irmã ao corrente do acontecido.

Eksamat não ficou surpreso quando encontrou as janelas do casarão fechadas àquela hora do dia, sinal evidente que Aka tinha pressentido o recém-chegado. Mal Eksamat aproximou-se da entrada e Aka em pessoa assomou à porta, pálida, escondendo a espada entre os longos saiotes. A vibração de Emrys chegava até ali em ondas suaves, indicando sua constante proximidade.

- Meu irmão, graças aos deuses ainda vives! - ela fez-lhe um gesto para que entrasse depressa - Despachei um moleque de recados atrás de ti, porém decerto o malandro entreteu-se pelo caminho! Estava tão agoniada à tua espera!

- Imagino, Aka, mas sossega! - Eksamat fechou a porta atrás de si e abraçou-a com força antes de comentar, tentando parecer casual - Outro de nós está em Atenas, acabo de conversar com ele junto ao Partenon de Fídias...

- Conversaste com ele? - Aka estava surpresa - Acaso é alguém amigável?

- Ainda não sei! - confessou Eksamat - Só posso dizer-te que é alguém cujo poder mete-me medo, e cuja inteligência devemos respeitar! Ele parece-me mais velho do que nós... Para minha sorte ele foi cordial! Ele sabe de tua presença, e avisou que não veio a Atenas atrás de nós!

Evitando exagerar nas histórias que tinha ouvido sobre Emrys, Eksamat contou à irmã o que sabia e o que tinha-se passado na colina ainda há pouco.

- Será possível que trate-se mesmo deste Imortal? - Aka continuava apreensiva - Acreditas que ele seja quem diz, e que essas histórias sejam reais?

- Não posso afirmar com certeza, porém a presença dele é algo como jamais imaginei! - Eksamat andava de um lado para outro no amplo salão de mármore - Eu pude senti-lo a uma enorme distância, e ele também sentiu-te de lá do Partenon, inclusive comentou que temos o mesmo poder, provavelmente porque percebeu que temos a mesma idade... Ele não especificou que sabia que és mulher, mas o simples fato de ele adivinhar tua presença de tão longe é algo impressionante! Nem eu podia sentir-te de lá!

- E se ele não quiser mesmo desafiar-nos, acreditas que ele poderá procurar-nos como amigo?

Eksamat deteve-se por alguns instantes, pensativo. Se Emrys permanecesse em Atenas, os três acabariam forçosamente por encontrar-se, ou no mínimo continuariam sentindo a presença uns dos outros o tempo inteiro. Evitar aquele estranho seria quase impraticável, talvez o melhor seria tentar observá-lo e verificar suas verdadeiras intenções.

- Acho que nós deveríamos permanecer juntos o máximo possível! - sentenciou Aka - Mesmo sendo poderoso, duvido que esse homem ouse enfrentar-nos se estivermos sempre próximos! No mínimo, devemos evitar ficar desacompanhados em público, andando de preferência cercados por amigos. Amanhã irei contigo ao Partenon, há dias não vejo Fídias e tenho portanto uma desculpa para visitá-lo!

Conversando ainda por algum tempo, os irmãos traçaram um complicado plano de prevenção. Fosse quem fosse, Emrys era acima de tudo um Imortal poderoso, e precisavam ter cuidado.

*************

Notas explicativas:

1 - Etíope significaria "cara-queimada", em referência à cor negra dos núbios. Na verdade os egípcios também chamavam os núbios de "nehesius", que quer dizer exatamente "negros".

2 - Cada polis grega consistia basicamente de uma vila fortificada central, a ágora, ao redor da qual espalhavam-se propriedades agrícolas e outras vilas menores. Em caso de guerras, e estas eram quase uma constante, os moradores da área rural acorriam à fortaleza em busca de defesa. Na ágora encontravam-se os principais templos e prédios administrativos, bem como as escolas públicas, o mercado central, o ginásio militar, os grandes armazéns, os palacetes dos ricos e tudo o mais que cada polis julgasse necessário.

3 - Na época, as mulheres helenas das altas camadas sociais não saíam à rua desacompanhadas, não compareciam às grandes festas, não expressavam opiniões políticas, não podiam receber heranças ou queixar-se em tribunais, não deveriam jamais contrariar um homem e, assim que entravam na adolescência, padeciam em casamentos arranjados segundo os interesses familiares - em resumo, estavam reduzidas à função de procriadoras domésticas, como mais tarde voltou a ocorrer, durante a Idade Média. Já as mulheres humildes e prostitutas gozavam de relativa liberdade, pois não estavam sujeitas ao mesmo padrão de comportamento imposto às mulheres ricas.

4 - Hetairas eram as prostitutas de luxo. Em geral eram mulheres cultas e ricas, que estipulavam o próprio preço e tinham liberdade para escolher seus clientes. Algumas ficaram famosas e chegaram a casar-se com amantes, como Aspásia, que tornou-se esposa do governador Péricles.

5 - Dicterias eram os prostíbulos oficiais. Durante o século VI a.C. o governador Sólon recrutou um grande número de mulheres estrangeiras e instalou-as nesses bordéis, gerenciados por funcionários do governo e onde pagava-se em geral um óbolo (a sexta parte de uma dracma de prata) pela companhia de uma prostituta. Com o tempo, mulheres gregas de baixa classe social também passaram a trabalhar nas dicterias.

6 - O governador Péricles, colega de estudos de Eurípides, tinha o apelido de "cabeça de cebola" por causa do crânio avantajado.

7 - Em geral, quando um pai ou tutor tencionava casar uma jovem solteira, ou mesmo uma viúva, fazia-se correr a notícia de que a mulher estaria "disponível". Os pretendentes então passariam a visitá-la com assiduidade, ou mesmo hospedavam-se na casa da família da mulher, esperando que um dentre eles fosse escolhido.

8 - Emrys é o personagem citado em "Highlander: The Series" como "O Velho", um dos mais antigos Imortais de que se tem notícia. Ele teria sido decapitado por Darius às portas de Paris em cerca de 410 d.C., e a bondade de Emrys transformou o general bárbaro, levando-o a tornar-se um padre pacifista. O nome Emrys surgiu oficialmente no livro "Shadow of Obsession", de Rebecca Neason, e significa "O Mais Velho dos Velhos", "O Eterno", "O Grande Ancião" ou, em resumo, "O Imortal".
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