Imhotep


Saqqara, Baixo Egito - 2638 a 2630 a.C.

Após a primeira noite, Imhotep tomou enorme amizade pelos outros dois Imortais.

Seu mestre fora um andarilho, um homem de poucas palavras, fechado e seco. Nem Imhotep sabia por que o outro havia poupado sua vida e perdido tempo em ensiná-lo sobre sua Imortalidade. O fato foi que seu mestre nunca revelou-lhe seu nome, quem era ou de onde vinha. Assim como surgiu, desapareceu sem deixar pistas logo depois que decapitou outro Imortal desconhecido, um beduíno sciasu do oriente (1).

Foi com grande medo que Imhotep viu o Arrebatamento, quando o Kah do beduíno passou para o corpo de seu mestre, e fugiu horrorizado. Ao voltar para ver se o mestre estava bem, encontrou apenas suas pegadas na areia, perdendo-se na direção das tribos sciasu, enquanto o corpo do beduíno decapitado já estava sendo destroçado pelos chacais. Imhotep voltou triste para casa, acreditando que o mestre voltaria para buscá-lo. Um ano depois, desiludido, desistiu de esperar e resolveu prosseguir seu caminho sozinho.

Aproveitou sua longa vida para viajar, conhecer coisas novas e aprender tudo o que podia. Ficou rico em expedições mineradoras ao Uauat e ao Kush (2), bem ao sul, depois dobrou sua fortuna comerciando com os Lobu e as tribos do Tenehu (3), a noroeste do delta do Nilo. Fez enorme sucesso ao codificar por escrito um complicado calendário com datas precisas, e era ainda um excelente médico e matemático (4).

Suas capacidades levaram-no enfim ao palácio real, acabando por cair nas graças do rei. Quando Netjerikhet Djoser decidiu construir sua tumba no deserto a oeste de Mênfis, Imhotep foi encarregado de supervisionar as obras, e aproveitou para apresentar ao rei algumas idéias arquitetônicas que havia desenvolvido. Foi o bastante para que Djoser elevasse-o ao cargo de arquiteto real e ministro, e Imhotep tornou-se o braço direito do soberano.

Essas e outras histórias Imhotep foi contando aos poucos ao casal de irmãos, entre jantares e passeios que faziam juntos por Saqqara. Havia tanto o que dizer, tanto o que perguntar e ensinar! Sentia-se bem ao lado deles, eram pessoas com quem podia falar de sua vida. E sobretudo, eram seus heróis de infância, criaturas que embalaram seus anos de inocência. Pensava conhecê-los bem por tudo o que havia pesquisado de suas histórias e agora via que, em carne e osso, eram mais interessantes do que imaginara.

Os irmãos também apreciavam sua companhia. Imhotep era um homem inteligente, viajado, falante e criativo. Faltava-lhe a paixão e a impetuosidade dos irmãos, é claro, mas sobrava-lhe coragem e franqueza. Gostavam principalmente da facilidade com que ele contava suas histórias, carregando-as com as doses certas de emoção e humor, fazendo com que os três às vezes dividissem gostosas gargalhadas. Imhotep aprendera a ver a vida com uma malícia deliciosamente zombeteira, sem contudo ter-se tornado cínico. Tinha uma mente aberta, rápida e prática, aliada a um enorme coração. Também não era apaixonado pelo clero, pois sua infância triste ensinou-lhe a verdade sobre a vida nos templos. A única coisa que parecia entediá-lo profundamente era a bajulação dos subordinados - desprezava-os pela subserviência calculada e pelos elogios desonestos. Sabia que não era tudo o que diziam, conhecia as próprias limitações e, ainda que gostasse de ser obedecido e exigisse respeito, a adulação soava-lhe como um insulto a sua inteligência.

Talvez fosse por isso que sentia-se à vontade ao lado dos outros dois. Eles nunca o temeram, nem mesmo por ser um Imortal mais preparado do que eles. Ao contrário, eram sinceros em suas opiniões, cobriam-no de perguntas e não deixavam de criticá-lo, quando discordavam sobre alguma coisa.

Sem perceber, os três puseram de lado a possível precaução com que deveriam tratar-se. Afinal, se só poderia haver um, provavelmente chegaria o dia em que teriam que enfrentar-se. Ao invés disso, uniram-se como se, juntos, pudessem adiar a decisão ou, melhor ainda, evitá-la para sempre.

Os três passaram a encontrar-se diariamente e, após alguns meses, Imhotep achou por bem nomear Heka Ma'At como um de seus assistentes, a fim de mantê-lo perto por mais tempo. Akh Kheper-Apet participava com eles de algumas reuniões e vistorias às obras, agora em franco desenvolvimento. Quando tinham tempo livre, Imhotep ensinava os irmãos a calcular, ler e escrever em outros idiomas, e aprendia com eles a rústica medicina do deserto, astronomia e magia.

Imhotep confessou que nunca pensou que mulheres também poderiam ser Imortais, até o dia em que cruzou com Heka na rua e encontrou Akh. Explicou também seu desejo de tranformar a tumba real de Saqqara num símbolo da própria Imortalidade, um monumento que durasse através dos séculos.

- Homens comuns plantam árvores em seus quintais - costumava dizer - e após algumas décadas seus netos colhem os frutos, admirados da previdência dos avós. Pois eu quero que, daqui a muito tempo, todos olhem para Saqqara com admiração ainda maior! Quero deixar monumentos que resistam a tudo, como nós resistimos... Se não podemos dizer ao mundo quem somos, ao menos semearei lembranças mudas de nossa existência!

Seu projeto, coisa inédita, era construir mastabas sobrepostas, formando uma gigantesca escadaria de pedra em direção ao céu - um símbolo de todos os Imortais que ficariam pelo caminho, para que só um chegasse ao topo. Akh e Heka admiravam a poesia de suas idéias.

- Mesmo que eu morra antes do fim disso tudo - dizia, referindo-se ao dia em que o último Imortal venceria - e meu nome desapareça nas areias deste deserto, Saqqara permanecerá para lembrar aos mortais sobre coisas que não viram, um passado que não viveram, povos que não conheceram. Isso os fará pensar sobre suas próprias vidas, tão curtas, e quem sabe os levará a aproveitá-las melhor...

Eram essas e outras frases que tocavam o coração dos irmãos e, com o tempo, mais ainda o coração de Akh. Às vezes Heka percebia como ela repetia sem notar as palavras de Imhotep, ou ficava a olhá-lo com admiração. A princípio sentiu um pouco de ciúme, mas logo reconheceu que Imhotep era digno de respeito, e parou de implicar.

*************

Numa tarde em que os dois homens decidiram tomar banho no canal junto ao porto, para refrescar-se após um dia especialmente extenuante, duas moças da casa da alegria pararam para olhá-los, trocando cochichos e risadas maliciosas. Heka demorou a percebê-las e foi Imhotep quem viu, com espanto, que era justamente para o distraído Imortal que elas olhavam com insistência. Acostumado a frequentar a casa delas e a ser paparicado por seu cargo, Imhotep ficou desconcertado. Em pé estava e em pé continuou, completamente nu, tentando chamar a atenção.

As duas o viram e acenaram com sorrisos convidativos. Só então Heka percebeu para onde Imhotep olhava. Um tanto sem graça, afundou imediatamente na água até o peito, e seu rosto cobriu-se de um vermelho intenso. Imhotep percebeu mas não entendeu, afinal era mais do que normal para aquelas moças ver homens nus, e elas mesmas por vezes tomavam banho ali. A nudez nunca foi um tabu nas cidades ao longo do Nilo.

- Qual o teu problema, Heka? - lascou Imhotep, uma pontada de inveja na voz - Sei que tenho uma cara bem comum e não sou lá um exemplo de atleta, mas nunca tive do que reclamar de minha capacidade como homem. Já andei reparando e tu, mesmo sendo um belo rapaz, não me pareces ser melhor do que eu em... Em certos aspectos de tua masculinidade! Diga-me lá, qual é teu segredo com as mulheres, para que até as moças da alegria fiquem assim assanhadas por tua causa?

Heka ficou ainda mais ruborizado e fechou a cara, chegando ao cúmulo de dar as costas às garotas, o que provocou novas risadinhas e cochichos. Colocando comicamente as mãos na cintura, Imhotep encarou-o à espera de uma resposta. Heka desviou o olhar e fingiu-se ocupado em desembaraçar as pontas dos longos cabelos. Da margem, as moças gritaram convites para que Imhotep fosse visitá-las mais tarde.

- E leveis vosso amigo, senhor! - gracejou uma delas - Garanto-vos que ele vai gostar de conhecer-nos!

Imhotep demorou alguns segundos para entender a indireta. Ficou acenando para as garotas que partiam e, de repente, parou com a mão em pleno ar. Virou-se para Heka, ainda meio de costas, e ficou a olhá-lo com curiosidade.

- Heka Ma'At de Abtu - perguntou lentamente -, há quanto tempo vives em Saqqara?

Heka logo sentiu, pela forma como o amigo chamava-o pelo nome, que havia algo por trás da pergunta.

- Há mais de cinco anos, tu o sabes! - respondeu, tentando fingir despreocupação - Por quê?

Com a mão no queixo, Imhotep tentou puxar pela memória e concluiu que não podia haver erro.

- Por acaso tu és... Virgem?! - disparou sem piedade.

Heka desta vez conseguiu ficar ainda mais vermelho do que antes. Após uma breve hesitação, balançou a cabeça em sinal afirmativo, sem coragem de enfrentar o amigo com o olhar. Imhotep caiu numa gargalhada tão desenfreada que chegou a engasgar.

- Como podes?! - perguntou, sem conseguir conter-se - Tu tens mais de três séculos e meio de idade! Tens dez vezes mais anos de existência do que aparentas, e ainda és VIRGEM?!?

- Isso, grita para todos ouvirem! - enfezou-se Heka, a cara fechada - Agora Saqqara inteira sabe!

Com um supremo esforço, Imhotep segurou enfim o riso. Acabou por sentir uma certa pena do amigo.

- Heka Ma'At, perdoa-me! - pediu num tom conciliatório - É que teu segredo pegou-me de surpresa! Jamais imaginei... Na verdade fui um tolo, só agora percebo que nunca mencionaste mulher nenhuma em tua vida além de tua mãe e tua irmã, nem jamais li ou ouvi nada a respeito em Abtu! Sinto muito por ter-te ofendido, irmão... Como conseguiste isso?

Heka deu de ombros, sem saber o que responder. Sua infância fora dividida entre o pai ocupado, a irmã pequena e as brigas constantes com os colegas. Aos quinze anos, assumiu na marra um dos cargos mais importantes do templo e sua vida transformou-se numa politicagem infernal. No deserto acostumou-se a passar por marido da irmã, com medo de dividir seus segredos com mais alguém em grupos onde a vida de todos era praticamente coletiva, e aquelas mulheres simplórias e sofridas dos masciauash jamais despertaram-lhe o mínimo interesse. Às vezes tinha seus fogos, mas o pânico de deitar-se com uma mulher e descobrir que estava mesmo morto, como temia, suplantava seu desejo. Só agora, em Saqqara, foi que viu-se realmente perturbado pelos olhares e sorrisos de mulheres diferentes, lindas, cobertas com belas roupas e penteados, emanando perfumes exóticos e falando em línguas tão incompreensíveis quanto sedutoras. Algumas chegavam a provocar-lhe comichões e sonhos confusos, fazendo-o transpirar mesmo sob a brisa fresca da madrugada. Pensou mais de uma vez em aventurar-se na casa da alegria e Akh inclusive fizera-o prometer por todos os deuses que depois lhe contaria tudo nos mínimos detalhes, porém sempre algo o tirava de seu caminho, como no dia em que cruzou com Imhotep na rua, ou quando um pedreiro fraturou as duas pernas ao cair de uma escada e precisou ser atendido com urgência.

Imhotep ouviu as explicações do amigo, mas ainda assim não se conformou. Decidiu tomar imediatamente um atitude e levá-lo no mesmo dia à casa da alegria. Heka ainda tentou fugir inventando desculpas, sua incapacidade de mentir denunciando-o a cada palavra.

- Tu vais comigo nem que seja preciso amarrar-te! - sentenciou Imhotep - Não é saudável para um homem passar muito tempo sem uma mulher, que dizer de séculos! Vamos agora mesmo barbear-nos com esmero e perfumar-nos com os óleos mais caros! Tu és meu convidado de honra!

Obviamente todo aquele aparato não escapou à curiosidade de Akh e os dois confessaram seus planos. Ela a princípio pulou de excitação pelo irmão, mas logo demonstrou que o fato de Imhotep ir com ele a decepcionava.

- Os dois vão divertir-se e eu ficarei sozinha aqui, morrendo de curiosidade! - embirrou - Se houvesse uma casa da alegria para mulheres, eu também queria ir! Quanta injustiça!

Quando descobriu que Heka era virgem, Imhotep logo desconfiou que Akh também deveria sê-lo. Agora, ouvindo-a falar sobre isso com tamanho despudor, sentiu o sangue correr mais rápido. Como ela havia conseguido escapar à sanha dos homens por tanto tempo, linda e passional como era?

Heka percebeu o calor nos olhares que Imhotep dirigia a Akh e deu-lhe um cutucão de advertência. Sua irmã não era como as mulheres que iriam visitar, não permitiria que ninguém a ofendesse! Se Akh quisesse dormir com alguém, que o fizesse por escolha própria e com consciência, não pela influência maliciosa de um sedutor, mesmo que esse sedutor fosse Imhotep!

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Os dois voltaram tarde naquela noite, acordando Akh com gargalhadas e falando em voz alta.

- Vós estais bêbados! - indignou-se ela, vendo-os desabar abraçados sobre as almofadas da sala. Heka começou a entoar uma canção erótica que havia aprendido, e Imhotep acompanhou-o batucando num banquinho - Calai-vos, ou os vizinhos reclamarão! Farei um chá para curar-vos e colocarei os dois na cama agora!

Heka calou-se com um soluço, o olhar embaçado pela bebida e um sorriso estúpido na cara. Imhotep continuou batucando enquanto Akh esquentava água e separava ervas na cozinha. Podia vê-la de onde estava, o cabelo solto e desgrenhado, a camisola visivelmente vestida às pressas. Num lampejo de lucidez, deduziu que ela deveria dormir nua, e sentiu que a desejava. Disfarçou colocando uma almofada entre as pernas, e Heka recomeçou a cantoria.

Akh logo trouxe o chá e mandou-os beber o máximo que podiam. Heka ria e dizia obscenidades, contando por alto tudo o que havia visto e feito. Mais acostumado à bebida forte servida na casa da alegria, Imhotep permaneceu quieto, olhando enquanto Akh obrigava o irmão a tomar o chá e dava-lhe tapas para que falasse mais baixo. Logo as ervas fizeram efeito e tiveram que arrastar Heka para o quintal, onde ele vomitou até quase perder a consciência. Akh forçou-lhe uma colherada de mel pela goela, despiu-o e lavou-o com toalhas úmidas, colocando-o depois na cama com a ajuda de Imhotep.

Heka logo mergulhou no sono dos ébrios, roncando alto. Foi a vez de Imhotep vomitar por causa do chá, de joelhos, enquanto Akh segurava-o pelos ombros. Com a cabeça rodando, tomou sem resistência o mel que ela ofereceu e bebeu água aos montes. Só não permitiu que ela o tocasse para despi-lo e limpá-lo, ou perderia a cabeça e acabaria por desrespeitá-la. Insistiu em lavar-se sozinho, num esforço para permanecer consciente, enquanto ela preparava-lhe uma cama extra onde pudesse passar a noite. Contra a vontade, Imhotep acabou por adormecer, num sono agitado por sonhos eróticos.

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Os dois homens acordaram tarde no dia seguinte, reclamando de dores de cabeça. Criados e assistentes já haviam procurado por ambos, mas Akh dispensou todos com firmeza. Era melhor deixá-los dormir para curar a ressaca, e preparou-lhes um desjejum leve.

- Que sede! - reclamou Heka, desacostumado a sentir-se daquele jeito - Ainda estou tonto... Acho que envenenaram nosso vinho...

- Não digas asneiras! - criticou Imhotep, num raro mau humor - Tu bebeste como um porco, isso sim! Foste na conversa daquelas garotas e quiseste dar uma de valente... Agarraste três mulheres de uma vez, metendo-lhes a mão onde podias! Nem sei como conseguiste domar aquela... aquela...

Imhotep calou-se diante do olhar severo de Akh.

- Já chega de obscenidades! - censurou ela - Os DOIS ontem estavam em estado deprimente! Tu também, Imhotep, chegaste embriagado! Imagino muito bem o que ambos aprontaram, senhor ministro!

Se Imhotep estivesse em condições de raciocinar, teria percebido que Akh estava com ciúmes, e não era só de Heka. De cara feia, ela forçou-os a beber outro chá, para que melhorassem depressa, e mandou-os logo para o trabalho, antes que mais alguém aparecesse para procurá-los.

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Nos meses que seguiram-se àquela noite, Imhotep evitou ficar muito tempo a sós com Akh. Envergonhava-se tanto pelo vexame que deu quanto pelo fato de tê-la desejado tanto num momento de fraqueza, e agora tinha receio de ser repudiado, caso tentasse cortejá-la. Havia ainda Heka Ma'At, que contara tudo sobre aquela noite à irmã, ou pelo menos aquilo de que conseguia se lembrar, expondo não só sua intimidade como também a do próprio Imhotep. Só de pensar nisso, o arquiteto corava da cabeça aos pés.

Akh, por sua vez, guardara um certo despeito por ele ter procurado as moças da alegria, e também o evitava. Ela nem sequer dava-se conta de por que sentia-se magoada com aquilo - preferia que ele não tivesse ido, e isso lhe bastava. Era óbvio que Imhotep, como qualquer homem solteiro de Saqqara, frequentava a casa da alegria com certa regularidade, mas Akh nunca nem sequer pensou a respeito. Foi só ao vê-lo voltar naquela noite, embriagado e feliz, que ela teve que encarar o fato de que havia outras mulheres no mundo para ele, mesmo que fossem mortais e ele as procurasse por diversão.

Heka demorou a perceber como os dois andavam distantes, e pensou que Akh talvez estivesse ofendida com o comportamento impróprio de Imhotep naquela noite. Ela às vezes ficava quieta quando o outro Imortal estava por perto, e Heka prometeu a si mesmo que tomaria mais cuidado nas próximas vezes que saíssem para a farra. Mesmo assim, voltou outras vezes à casa da alegria com o amigo, pois descobrira um mundo novo de prazeres e sensações que não pretendia abandonar tão cedo.

Enquanto isso a vida em Saqqara seguia o ritmo das cheias do Nilo. Quando as águas subiam, facilitavam o transporte das pedras para a obra e tudo girava em torno da construção. Quando as águas baixavam e a quantidade de pedras diminuía, os trabalhadores aproveitavam para dedicar-se à lavoura, ao comércio, ao artesanato. Arrumavam suas casas, estocavam alimento, divertiam-se. No período mais seco, todos colaboravam com a colheita e precisavam andar mais para pescar, buscar água ou tomar banho. Perfuravam poços, recuperavam canais de irrigação, reformavam depósitos, preparavam-se para a próxima temporada de construções.

Mesmo tendo há anos uma casa em Saqqara, Imhotep por vezes viajava até Mênfis a fim de dar satisfações do andamento das obras ao rei, e permanecia fora por semanas quando tinha algo maior a resolver na capital, ou obras para vistoriar em outros lugares. Heka sentia falta de sua companhia, aprendera a confiar no outro Imortal como um amigo de verdade. Por insistência de Imhotep, tanto Heka quanto Akh agora andavam sempre com longas adagas, que levavam ocultas na roupa, pois andar armado não era comum para cidadãos que não estivessem engajados em milícias. Os dois inclusive aprenderam em segredo a lutar com as adagas, afinal nunca saberiam quando outro Imortal poderia aparecer e precisavam estar preparados, e Heka era grato a Imhotep por isso.

Os anos passaram lentamente, e aos poucos Akh deixou de implicar com Imhotep. Ela continuava intocada, disso ele tinha certeza, pois nenhum outro homem fazia parte importante de seu círculo fechado de amizades e ele vigiava-a sempre. Mesmo assim não tinha coragem de cortejá-la, tanto em respeito à amizade que nutria por Heka quanto por medo de ofender Akh, ao manifestar seu interesse. Não queria tê-la como tinha as moças fáceis da casa da alegria - desejava-a tanto que chegava a doer! Mas Akh merecia mais, era uma Imortal como ele e era digna de um amor à altura de seu potencial. E quem seria mais digno dela do que outro Imortal? - Imhotep perguntava-se, temendo sinceramente que um dia Akh encontrasse alguém e decidisse casar-se. Sentia que seria capaz de morrer para evitar que isso acontecesse!

Enquanto isso, por seu lado, Akh não conseguia interessar-se por homem nenhum. As histórias picantes que Heka contava-lhe sobre as moças da alegria deixavam seu corpo em brasa, mas não sabia como resolver sua situação. Sabia que muitos rapazes de Saqqara a desejavam, e notava até que a presença quase constante de Imhotep em sua casa os espantava, porém no fundo sentia-se melhor assim. Já vira tantas pessoas morrerem, homens e mulheres, deixando seus parceiros viúvos e seus filhos órfãos, que a idéia de unir-se a um mortal causava-lhe temor. Não queria entregar-se a alguém que logo morresse e deixasse-a sozinha novamente, tendo que recomeçar tudo de novo. Às vezes imaginava o que Imhotep fazia quando saía com Heka, e tinha vontade de gritar...

Passando um dia pela casa dos amigos durante a tarde, após procurar Heka em vão pelas obras, Imhotep sentiu apenas a vibração de Akh. Logo ela assomava à porta, obviamente tendo percebido que ele estava por perto, e convidou-o a entrar. Akh estava lavando os cabelos e, ao sair com eles molhados para recebê-lo, sua túnica ficara úmida e transparente, revelando o cortorno de seus seios. Imhotep não conseguiu evitar que seu corpo reagisse àquilo e sentiu o sangue latejando incontrolavelmente nas veias. Tentou encontrar uma desculpa para voltar depois, mas a tentação foi maior e acabou entrando.

- Que tens? - perguntou Akh, notando como ele estava perturbado - Aconteceu algo a meu irmão? Estás tremendo, Imhotep!

- Não, não é nada! - ele esforçava-se para desviar os olhos dela, a roupa molhada funcionando como um ímã - Precisava da opinião dele para um serviço, mas não pude encontrá-lo e achei que porventura estivesse contigo...

- Não vejo meu irmão desde cedo, nem tampouco senti-o por perto... - ela respondeu distraidamente, secando os cabelos com uma toalha - Entra e senta-te, fiz suco de frutas com mel e comprei tâmaras no mercado! Estou a assar um bolo, se tu queres esperar...

- Akh, eu... Acho melhor voltar depois! Não é conveniente que eu fique hoje... Eu...

- Que tens, Imhotep? Estás a esconder-me algo?

Só então ela percebeu que ele olhava para seus seios e notou-lhe o volume sob o saiote. Seu corpo arrepiou-se involuntariamente, provocando-o ainda mais. Imhotep virou-se para sair e ela deteve-o num gesto impulsivo, segurando-o pelo braço. Ele não atrevia-se a encará-la, o rosto quente de vergonha. Os dois permaneceram parados por alguns segundos, até que Akh rompeu o silêncio.

- Perdoa-me, eu... Não sei quando Heka irá voltar, posso avisá-lo de que tu estás a procurá-lo... Mesmo assim eu queria... Eu queria que tu ficasses...

Imhotep levantou a cabeça e sentiu-se desmoronar - havia fogo nos olhos dela, um fogo de desejo tão grande quanto o dele, um ardor que jamais pensou existir!

A súbita vibração anunciando a chegada de Heka assaltou-os, rompendo completamente o encanto.

- Imhotep, meu irmão! - gritou Heka, antes mesmo de chegar à porta - Soube que tu estavas à minha procura!

Akh subiu correndo a escadaria para os quartos, incapaz de enfrentar Heka depois de tudo o que viu nos olhos de Imhotep. Seu corpo tremia violentamente, seu rosto ardia como se estivesse com febre. Trocou de roupa e, só após acalmar-se o suficiente, atreveu-se a descer.

Heka percebeu que Imhotep estava pouco à vontade e viu os olhares em brasa que ele trocou com Akh quando ela apareceu. Akh lembrou-se do bolo no forno e correu à cozinha, levando consigo os olhos e o coração de Imhotep. Heka sentiu uma ferroada de ciúme, compreendendo que entre os dois havia um grande segredo. Lutando para parecer indiferente, fez de tudo para manter a conversa com o amigo voltada para o trabalho e foi com alívio que despediu-se dele.

Magoado, Heka permeneceu sozinho na sala. Akh nunca lhe escondeu nada, jamais tiveram segredos um para o outro. Ela era quase como uma extensão de si mesmo, uma continuação de sua alma, sempre em sintonia. A presença dela era tão constante em sua vida que nem sequer podia imaginar um mundo sem ela - a simples idéia dilacerava-o! E agora esses olhares...

Nunca imaginou que ela poderia estar fazendo algo em sua ausência, algo de que parecia envergonhar-se! Nos últimos oito anos Heka tomara enorme apego por Imhotep, considerava-o um irmão. Eram da mesma espécie, conheciam os problemas da Imortalidade e podiam falar sobre tudo sem as pequenas mentiras que usavam com os demais seres humanos. Abria-se com Imhotep como só ousava fazer com Akh, e agora ambos evidentemente mantinham-no à parte de algo importante... Há quanto tempo aquilo estava acontecendo? Será que os dois...

De onde estava, Heka podia ouvir a irmã trabalhando na cozinha. Sentiu vontade de ir até ela e exigir-lhe explicações, coisa que nunca havia feito antes. Ao invés disso, saiu para a rua e, sem raciocinar sobre o que fazia, correu ao encalço de Imhotep. Encontrou-o longe das casas, olhando em direção ao sol que se punha, parado sobre uma pedra numa área deserta das obras.

Imhotep virou-se ao senti-lo chegar, sem contudo mover-se de onde estava. Pelo semblante carregado do amigo, podia imaginar a razão por que o procurava, e soltou um suspiro.

- Imhotep, quero falar-te agora! - gritou Heka - E exijo tua sinceridade! Pensei que tu fosses meu amigo!

- E sou...

- Não, não és! - Heka estava a ponto de perder o controle - O que há entre ti e minha irmã?

- Ainda nada!

- Como? AINDA?! - Heka agarrou-o pelos amuletos de ouro que trazia ao pescoço e fê-lo descer com um safanão - Como ousas?

- Larga-me, estás louco? - gritou Imhotep, livrando-se com violência. No tranco, um de seus colares arrebentou e ficou pendente da mão de Heka, que atirou-o longe - Sempre te respeitei e não admito que te atrevas a agredir-me assim!

- Pois mato-te aqui e agora se não me contares a verdade!

- Cala-te, insensato! - Imhotep afastou-se procurando pelo amuleto - Já te disse, nada há entre tua irmã e eu!

Heka aproveitou-se da distração do outro Imortal e atirou-se sobre ele, esmurrando-o. Os dois rolaram na areia aos palavrões, trocando socos e pontapés. Imhotep conseguiu escapar entre um golpe e outro, colocando-se em pé a uma distância segura.

- Pare, Heka Ma'At! - gritou, limpando o sangue do canto da boca - Chega! Já te disse e juro-te por todos os deuses que jamais houve nada entre Akh e eu!

- Mentira!

- Pois antes tivesse havido!

- Como te atreves?!

- EU AMO TUA IRMÃ!

Aquelas palavras atingiram Heka como um soco no estômago, paralisando-o.

- Amo Akh mais do que minha própria vida! - continuou Imhotep, trêmulo - Amo-a como jamais pensei que fosse possível! Desejo-a tanto que meu corpo dói, adoro-a com uma paixão tão grande que daria tudo para tê-la! Daria Saqqara, Mênfis, o trono do Egito... Daria minha Imortalidade por ela!

Imhotep caiu de joelhos, incapaz de sustentar-se em pé. Sua alma saía-lhe pela boca. Antes que percebesse, lágrimas grossas escorreram por seu rosto, deixando rastros na poeira.

- Sonho com ela todas as noites! Cada vez que ela sorri, o mundo parece-me mais belo! Quando vejo-a triste, meu coração encolhe no peito e tenho vontade de morrer.. Se ao menos ela desse-me uma chance! Eu não a mereço...

Calou-se com um soluço amargo, entregando-se finalmente a um choro sofrido. Nunca tivera coragem de dizer uma palavra sobre aquilo, como se isso pudesse evitar que esse amor o dominasse. Agora, sua alma esvaziava-se como um dique arrebentado durante as cheias de Akhet, e não tinha mais controle sobre si mesmo - finalmente aliviava seu coração.

Heka não se moveu. As palavras do outro ribombavam em seus ouvidos, impedindo-o de agir. Imhotep levantou-se cambaleante, limpando o rosto com as mãos sujas de areia. Sem levantar a cabeça, agarrou o amuleto arrancado e enfiou-o no cinto.

- Espera! - gritou Heka num tom surdo - Não terminamos ainda!

- Terminamos! Não há mais nada a dizer...

- Tu foste sincero?

Imhotep virou-se e encarou-o com mágoa.

- Sim, fui! - falou - Jamais te menti! Mas que importa agora? Teu egoísmo estragou tudo!!

- Egoísmo? - Heka sentiu o sangue ferver novamente - EU? Como ousas...

- Tu trataste tua irmã como uma propriedade tua durante todos estes séculos! - cortou Imohotep - Tu monopolizas a alma dela! Aprisionaste Akh só para ti como se ela fosse uma criatura sem sexo, sem alma... Sem AMOR!

- Eu amo minha irmã!

- Sim, amas desde que ela continue quieta no sarcófago de pedra que tu construíste! - anos de angústia transpareciam em cada palavra de Imhotep - Nunca toquei sequer numa dobra do vestido de tua irmã sem que tu soubesses, horando a amizade que te dedico, e tu suspeitas de mim! Mas tu podes deitar-se com as moças da casa da alegria, enquanto ela...

- Cala-te!

- Não calarei! Hoje vi o fogo que consome a alma de tua irmã! Um fogo que arde naquela mulher como uma fúria e, por Rá, como a desejei... Como quis dar a ela todo o meu amor, mostrar-lhe minha paixão, fazê-la descobrir finalmente os mistérios daquele corpo... Quando EU deito-me com as moças da alegria, é nela que penso, é ela quem possuo...

- CHEGA! - o mundo parecia abrir-se ao redor de Heka, arrastando-o para um abismo sem fim. Seu estômago dava voltas.

As palavras do outro Imortal eram-lhe profundamente injustas. Nunca proibira Akh de nada, nem impedira-a de fazer o que quer que fosse! Ela mesma dizia que ardia de desejos por encontrar um homem que a quisesse, que lhe despertasse as paixões da carne... Alguém a quem pudesse entregar-se sem medo, para compartilhar sua cama, como ele fazia com outras mulheres, mas queria que fosse algo duradouro! E ela nunca escolheu ninguém... Ou escolheu?!

- Como sou idiota! - Heka deixou-se cair de joelhos com um gemido, afundando a testa na areia - Durante esses anos todos... Era a ti que ela se referia! Só a ti...

Imhotep empalideceu. Heka continuou, tomado por uma gargalhada histérica.

- Ela disse isso tantas vezes! Eu nunca a ouvi... Minha pobre irmã, fui um tolo! Perdoa-me, Akh! Sempre esteve tão claro, fui um monstro em não entender-te... E tu, Imhotep, és um imbecil! Se pudesse, eu te odiaria! Um cretino, é o que tu és! Um parvo, um sonso! IDIOTA!

- Tu enlouqueceste!

Num salto, Heka atirou-se sobre Imhotep antes que o outro tivesse tempo de fugir, e os dois engalfinharam-se novamente pela areia aos safanões.

- Ela sofreu esse tempo todo por tua causa! - gritava Heka - Canalha! Tu dizes que a ama enquanto a fazes sofrer!

- Eu nunca a toquei! Já disse!

- E ela sempre te quis! Tu deves ter-lhe feito promessas!

O susto foi tão grande que Imhotep distraiu-se e acabou levando um enorme murro. Ia levar mais um quando segurou o outro Imortal num reflexo, gritando com toda a força que podia:

- Akh me quer?! Tu dizes que ela me quer?!

Heka largou-o e rolou para o lado, concordando com a cabeça.

- Eu é que fui um tolo em não entender as indiretas... E tu um idiota, deixando-a esperar tanto tempo! Por que nunca me disseste que a amava? Que mal fiz eu aos dois, para que tamanha barreira se erguesse entre nós?!

Imhotep continuou deitado de costas, os olhos perdidos no céu que começava a escurecer. Os dois permaneceram em silêncio por alguns instantes, cansados, raciocinando.

- Tu te casarias com ela? - perguntou Heka por fim.

- Tu o permitirias?

- Responde!

- Se ela me quiser, caso agora mesmo! Teria casado ontem... Tu acreditas que ela me aceitará?

- És mesmo um estúpido! És um sonso...

- Eu morreria por ela...

- Acho sinceramente que tu és tudo o que ela espera! Mas tens que jurar fazê-la feliz, ou arranco tua cabeça!

- Eu juro! Juro pelo que tu quiseres!

Heka finalmente levantou-se e ajudou o outro a fazer o mesmo. Caminharam juntos de volta à cidade, novamente como amigos.

*************

Notas explicativas:

1 - Os sciasu seriam os sírios.

2 - Uauat era a região compreendida entre Abtu (Abidos) e a segunda catarata do Nilo. Kush era a região oriental que ficava entre a terceira e a quinta catarata do Nilo.

3 - Lobu seriam os líbios. O Tenehu era a região a noroeste do delta do Nilo, antes do território dos Lobu.

4 - Imhotep entrou posteriormente para o rol dos deuses egípcios como o inventor do calendário e o patrono da medicina, mas seu feito mais famoso foi ter construído o fantástico complexo funerário de Saqqara, além de diversos outros templos, tumbas e palácios por todo o Egito. Saqqara apresentou uma arquitetura revolucionária, com colunas decoradas de forma original e detalhes nunca antes utilizados. A mastaba em degraus que Imhotep ergueu para o faraó Djoser é a forma mais primitiva de pirâmide encontrada no Egito, estando em pé até hoje. Foi provavelmente a partir dela que as tumbas faraônicas evoluíram para as monumentais pirâmides que transformaram-se numa das Sete Maravilhas do Mundo Antigo.
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