Boletim Mensal * Ano V * Fevereiro de 2007 * Número 47

           

Fado... também é cultura

Alfredo Antunes

 


    Comadres e Compadres. A minha “coluna” de hoje será vária – como vário é o Fado e a alma humana. Inclui: dúvida e testemunho. Vamos a ela. E que Deus me guie.
    1)Dúvida. Depois de tudo o que tenho escrito, talvez surja uma pergunta: será que o Fado é sempre triste? Não poderá haver Fado alegre? Evidentemente que sim. Os próprios gregos (como falei) o admitiam. O Fado não é Fado, por ser triste ou alegre. Ele é, ou não, Fado, por exprimir a consciência profunda de um destino imposto e inexorável com que o Cantador pressente ter nascido. É, ou não, Fado,conforme a “atitude”e a “garra fadista” com que o Cantador consegue exprimir esse drama que lhe aconteceu.
    O Amor e a Morte são os grandes motes da alma humana. E, neles, cabem todas as expressões do sentimento. Há fados alegres, sim senhor. Fados em que o fadista comunga com quem o vê, e ouve, aquela chama violenta da emoção que o arrasa. Todos entram em transe feliz, se o Cantador transmite essa chama. Mas, repito, o Fado para ser Fado tem que ser cantado como Fado. Mesmo sendo alegre e ligeiro. Em vez de cantar-se um Destino cruel, canta-se um Destino benigno. Mas, em ambos os casos, sempre fatal. O fadista, repito, canta sempre um Destino que lhe foi imposto e que não controla.
    Dentre as mais de mil gravações da Amália Rodrigues, há muitas que não são fados. Ela mesma sabia disso. Marchas populares, folclore (português, italiano, espanhol, mexicano) etc., cantigas corridas e leves...Tudo isso cantou. E bem. Mas não o fazia sempre com a “atitude” fadista. Ela mesma chamava a estas composições de Cantigas que - dizia - gravava “quando estava bem disposta!”. Mas quando “encarnava” sua postura de estátua e mistério... saíssem de perto! Era o Fado em pessoa! Triste ou alegre, era a alma inteira que se lhe escapava do peito! Os Corridos, o Mouraria (também chamado de Meio-Tempo), o Maior, o Rigoroso, etc., etc., assumem, freqüentemente, certo clima de gingado alegre. E são legítimo Fado: talvez, até, o mais “castiço” de todos.
    Testemunho. Caros Compadres. Temos entre nós um legítimo fadista – o nosso Compadre Henrique Dias!
    Aquele outro Henrique Dias – o do Séc.XVII - foi herói porque venceu os holandeses. Mas o nosso Henrique Dias é duplamente herói. Herói, porque, como qualquer fadista, ao cantar, tem que lutar contra o próprio Destino – o seu Fado. E, mais herói ainda, porque tem que (quase sempre) lutar contra ambientes adversos nos quais o seu canto é acolhido. Espaços grandes de mais; luzes fortes na ribalta; falatório em surdina generalizada; tilintar de copos, talheres e garçons; parafernália eletrônica, sem solução nem sentido...E, acima de tudo, certo clima de “festa profana” em que, no palco, segue o Show e, aqui em baixo, sigo eu!
    É pena, Compadres. Digo: é pena, porque o Henrique tem “dom”, tem “atitude” tem “garra” e “voz” – voz quente e timbrada, bem ao jeito do fado de Lisboa. Quando ele canta, parece ecoar os recônditos dessa Lisboa eterna: uma Lisboa céltica e moura; atlântica e sem nome; uma Lisboa de história, água e saudade.
    Devíamos escutar o Henrique como quem reza com ele; como quem sofre com ele; como quem se ilumina com ele. O Fado é canto de comunhão. Canto grupal. Canto de solidões somadas. É rito; não é Show. Nasce, enquanto se canta, e morre quando se acaba a surpresa, e as luzes se acendem...
    Sem nunca nos apresentarmos, há anos que sigo, de longe, o Henrique, ao cantar. Sempre me agradou, e sempre sofri. Sofri por ele e pelo Fado. Vejo que tem que fazer, por vezes, concessões, para que o público goste e deixe “a banda passar”. Mas, há tempos, eu escutei o Henrique cantar - num lindo mouraria-corrido - o clássico “Há festa na Mouraria”. Confesso, Amigos, que senti, naquele momento, a presença de um fadista de corpo inteiro! Sem concessões, de olhos bem fechados, gingando como que em transe, e marcando o ritmo com um corpo trêmulo e bem agarrado ao chão, tive a miragem de ver um Marceneiro ou outro ícone da antiga fadistagem. Gostei e, como pede a justiça, atirei-lhe um “Eh Fadista!, com toda a minha alma, pecadora por tanto do Fado gostar!
E se o nosso Henrique Dias fosse acompanhado pelo Armandinho e pelo Georgino?! Ah, meus Compadres. De duas uma: ou nós mudávamos de postura ou perderíamos a chance de tocar o infinito! Armandinho e Georgino – a maior dupla de acompanhadores do Fado, que jamais existiu – lá no “Solar da Alegria” e nos grandes “Retiros” lisboetas, das décadas de 20 e 30, do século passado - criaram uma tal perfeição guitarrística que, hoje, viraram lenda!
    Compadre Henrique: ainda não é desta! Mas tenha paciência! Já Fernando Pessoa dizia: “O Fado é a canção dos fortes”. Fortes, porque agüentam o Destino. Agüente você também! Agora que o Fado Português acaba de ser declarado, pela UNESCO, Patrimônio Cultural da Humanidade, não deixe a peteca cair. Seu problema é o mesmo dos seus colega fadistas, que levam aos mais de 4 milhões de portugueses, emigrados pelo mundo, um pouco deste “veneno/ Para acalmar-lhes as tristezas”.
    O Fado somente se “reza” direito nos santuários certos: nos retiros e nas caves de Lisboa. Quando ele sobe aos Palcos, às vezes, perde-se! Mas você, Henrique, deixe-me repetir: quando não agüentar mais a sua alma, mesmo assim, “cante o Fado”; se lhe atormentar a saudade,”cante o Fado” e, mesmo que não haja ciúme à vontade, “Cante o Fado”... Cante, porque Deus prometeu que se houvesse, em Nínive, um só justo que fosse, Nínive não seria destruída! E porque não há Fado sem guitarra, na próxima vez falarei de guitarra. Mas irei fazê-lo em forma de súplica! Se o conseguir, vereis que “O Fado não é só Cultura. É também pedido!”. Até lá!

 

 

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