O Pensamento Contemporâneo

 

  1.         O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO

 

Emmanuel Kant (1724-1804)

Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como um relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez horas e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-no perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".

Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas idéias). Acrescentemos a literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior da consciência moral.

A primeira obra importante de Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).

Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das idéias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.

Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz perpétua (1795).

 

Kant - Moral, Metafísica e Crítica do Juízo - A Moral de Kant

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.

Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.

Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma "heteronomia", como diz Kant.

Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).

O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico".

A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

 

Moral e Metafísica

A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitas as máximas da razão.

Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.

Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e felicidade.

Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."

Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educação que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue que nenhum pecado poderia ser escusável.

 

A Ciência e a Metafísica

O método de Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?

Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são verdes).

Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?

Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?

É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto do seu saber.

Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.

No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".

Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).

Em sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza não seja talvez não seja apenas o domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.

Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

 

O Alcance da Crítica Kantiana (Prefácio da 2.ª edição da Crítica da Razão Pura)

Um rápido olhar lançado nesta obra levará a pensar, de início, que sua utilidade é inteiramente negativa ou que ela só serve para nos impedir de conduzir a razão especulativa além dos limites da experiência, e é isso que lhe dá sua primeira utilidade. Mas logo se perceberá também que sua utilidade é positiva, pelo fato mesmo de os princípios sobre os quais se apóia a razão especulativa, para se aventurar fora de seus limites, na realidade terem por conseqüência inevitável não a extensão, mas, olhando mais de perto, a restrição do uso de nossa razão. É que, com efeito, esses princípios ameaçam de tudo enfeixar nos limites da sensibilidade, da qual propriamente dependem, e assim reduzir a nada o uso puro (prático) da razão. Ora, uma crítica que limita a razão em seu uso especulativo é, por esse lado, bem negativa; mas, ao suprimir com um mesmo golpe o obstáculo que restringe seu uso prático ou que até ameaça anulá-la, essa crítica, de fato, tem uma utilidade positiva da mais alta importância. É o que se reconhecerá logo que se esteja convencido de que a razão pura tem um uso prático absolutamente necessário (quero significar o uso moral), no qual ela se estende inevitavelmente além dos limites da sensibilidade e no qual, sem para isso ter necessidade do auxílio da razão especulativa, a razão prática, porém, quer estar assegurada contra toda oposição de sua parte, a fim de não cair em contradição consigo mesma. Negar que a crítica, ao prestar-nos esse serviço, tenha uma utilidade positiva, porque sua função consiste unicamente em fechar as portas à violência que os cidadãos poderiam temer uns aos outros, a fim de que cada um possa realizar seus negócios tranqüilamente e em segurança. Que o espaço e o tempo só sejam formas da intuição sensível e, conseqüentemente, das condições da existência das coisas como fenômenos; que, além disso, não tenhamos conceitos do entendimento e, portanto, quaisquer elementos para o conhecimento das coisas, sem que uma intuição correspondente nos seja dada, e que, por conseguinte, não possamos conhecer nenhum objeto como coisa em si, mas apenas como objeto da intuição sensível, isto é, como fenômeno, é o que será provado na parte analítica e daí resultará que todo conhecimento especulativo possível da razão se reduz unicamente aos objetos da experiência. Mas, o que é preciso marcar bem, surge aí uma reserva: é que, se não podemos conhecer esses objetos como coisas em si, podemos ao menos pensá-los como tais.

Se assim não fora, chegaríamos à absurda proposição de que existem fenômenos ou aparências sem que haja nada que apareça. Quando se supõe que nossa crítica não tenha feito a distinção que ela estabelece necessariamente entre as coisas como objetos de experiência e essas coisas como objetos em si, será preciso então que se estenda a todas as coisas em geral, consideradas como causas eficientes, o princípio da causalidade e, conseqüentemente, o mecanismo natural que ele determina. Por conseguinte, eu não poderia dizer do próprio ser, por exemplo, da alma humana, que sua vontade é livre e que, entretanto, está submetida à necessidade física, isto é, que não é livre, sem cair em evidente contradição, É que, nas duas proposições, tomei a alma no mesmo sentido, isto é, como uma coisa em geral (como objeto em si) e, sem as advertências da crítica, não poderia encará-la de outro modo.

Mas se a crítica não se enganou ao ensinar-nos a considerar o objeto em dois sentidos diferentes, como fenômeno e como coisa em si; se a dedução dos conceitos do entendimento é exata e se, conseqüentemente, o princípio da causalidade só se aplica às coisas no primeiro sentido, ao passo que no segundo sentido essas mesmas coisas não mais lhe estejam submetidas, a mesma vontade pode ser concebida, sem contradição, de um lado, como estando necessariamente submetida, do ponto de vista fenomenal (em seus atos visíveis), à lei física, conseqüentemente, como não sendo livre e, de outro, enquanto faz parte das coisas em si, como escapando a essa lei, por conseguinte, como livre. Ora, embora sob esse último ponto de vista eu não possa conhecer minha alma por intermédio da razão especulativa (e ainda menos pela observação empírica) e, conseqüentemente, eu também possa conhecer a liberdade como a propriedade de um ser ao qual atribuo efeitos no mundo sensível - posto que seria necessário que eu a conhecesse de uma maneira determinada em sua existência, mas não no tempo (o que é impossível, pois aqui nenhuma intuição pode ser submetida ao meu conceito) - eu posso, no entanto, pensar a liberdade, isto é, que sua idéia não contém a menor contradição, desde que admita nossa distinção crítica dos dois modos de representação (o modo sensível e o intelectual), assim como a restrição que daí deriva relativamente aos conceitos puros do entendimento e, por conseguinte, aos princípios decorrentes desses conceitos. Admitamos agora que a moral supõe necessariamente a liberdade (no sentido mais estrito) como uma propriedade de nossa vontade, colocando a priori como dados da razão princípios práticos que dela se originam e que, sem essa suposição, seriam absolutamente impossíveis; mas admitamos também que a razão especulativa tenha provado que a liberdade não fosse de modo algum concebida; será preciso então que necessariamente a suposição moral dê lugar àquela cujo contrário implica em evidente contradição, isto é, que a liberdade, e com ela a moralidade (cujo contrário não implica em contradição, quando não se supõe a liberdade previamente), desaparecem no mecanismo da natureza. Todavia, como é suficiente que, do ponto de vista da moral, a liberdade não seja contraditória e que, conseqüentemente, ela possa ser concebida, e como, desde que não se coloque como obstáculo ao mecanismo natural da própria ação (tomados num outro sentido), não há necessidade de se lhe ter um conhecimento mais amplo, a moral pode manter sua posição enquanto a física conserva a sua. Ora, é o que não teríamos descoberto se a crítica não nos houvesse previamente instruído sobre nossa inevitável ignorância relativamente às coisas em si e se ela não houvesse limitado aos simples fenômenos todo nosso conhecimento teórico. Desse modo, pode-se mostrar essa mesma utilidade dos princípios críticos da razão pura relativamente à idéia de Deus, a liberdade e a imoratalidade segundo a necessidade que minha razão tem em seu uso prático necessário, sem rechaçar ao mesmo tempo as pretensões da razão especulativa em suas visões transcendentes; pois, para chegar aí, lhe é necessário empregar princípios que na realidade só se aplicam a objetos da experiência sensível e que sempre transformam em fenômenos aquilo a que se aplicam, mesmo que esse algo não possa ser um objeto de experiência, e desse modo declaram impossível toda extensão prática da razão pura. Tive então que suprimir o saber para substituí-lo pela crença.

 

Crítica ao Argumento Ontológico (Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental)

Cem táleres reais não contêm mais do que cem táleres possíveis. Pois, como os táleres possíveis exprimem o conceito e os reais o objeto e sua posição em si mesma, meu conceito não exprimiria o objeto inteiramente e conseqüentemente não estaria de acordo com ele, caso o objeto contivesse mais do que o conceito. Mas sou mais rico com cem táleres reais do que com sua idéia (isto é, se eles são simplesmente possíveis). De fato, o objeto na realidade não está simplesmente contido de uma maneira analítica em meu conceito, mas ele enriqueceu sinteticamente meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que os cem táleres concebidos sejam aumentados por este ser que está situado fora do meu conceito.

Quando, então, eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo que a determine completamente), e só por isso eu acrescente que essa coisa existe, eu não estarei acrescentando absolutamente nada à coisa. Se assim fora, não existiria mais a mesma coisa, mas algo além do que pensei no conceito; e eu não mais poderia dizer que é exatamente o objeto do meu conceito que existe. Se numa coisa eu concebo toda realidade, exceto uma, e pelo fato de dizer que essa coisa defeituosa existe, a realidade que lhe falta não lhe será acrescentada por isto; mas ela existe precisamente tão defeituosa quanto a concebo, pois, de outro modo, existiria outra coisa diferente do que concebi. Se, por conseguinte, eu concebo um ser como a suprema realidade (sem falhas), sempre resta saber se esse ser existe ou não. De fato, embora em meu conceito não falte nada do conteúdo real possível de uma coisa em geral, ainda falta, porém, alguma coisa com relação a todo meu estado intelectual, a saber, que o conhecimento de um objeto seja possível a posteriori. E aqui se mostra a causa da dificuldade que reina nesse ponto. Se se tratasse de um objeto dos sentidos, eu não poderia confundir a existência da coisa com seu simples conceito. De fato, o conceito só me faz conceber o objeto como concordante com as condições universais de um conhecimento empírico possível em geral, enquanto a existência me faz concebê-lo como compreendido no contexto de toda experiência; e, se o conceito do objeto não é de modo algum aumentado para sua ligação com o conteúdo de toda experiência, nosso pensamento dele recebe em acréscimo mais percepção possível. Se, ao contrário, quisermos pensar a existência unicamente por intermédio da pura categoria, não será de espantar que não possamos indicar nenhum critério que sirva para distingui-la da simples possibilidade.

Qualquer que seja a natureza e a extensão do conteúdo de nosso conceito de um objeto, somos obrigados a sair desse conceito para lhe atribuir a existência. Com relação a objetos sensíveis, a passagem se faz por meio do encadeamento que liga o conceito a alguma de minhas percepções, segundo as leis empíricas; mas, para os objetos do pensamento puro, não existe nenhum meio de reconhecer sua existência, já que seria preciso reconhecê-la inteiramente a priori; nossa consciência de toda existência (quer ela resulte imediatamente da percepção, quer resulte de raciocínios que unem alguma coisa à percepção) pertence inteiramente à unidade da experiência, e se uma existência fora desse campo não deve ser tida por absolutamente impossível, ela também não deixa de ser uma suposição que nada pode justificar.

O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil com relação a muitas coisas, mas, precisamente porque é apenas uma idéia, ele é inteiramente incapaz de estender a si só nosso conhecimento com relação ao que existe. Nem pode mesmo nos instruir o suficiente com relação à possibilidade. É certo que o caráter analítico da possibilidade - que consiste no fato de que simples posições (realidades) não engendram contradição - não lhe pode ser contestado; mas, como a ligação de todas as propriedades reais numa coisa é uma síntese cuja possibilidade não podemos julgar a priori, posto que as realidades não nos são dadas especificamente, e, mesmo que isso acontecesse, que não resultaria daí nenhum juízo, o caráter da possibilidade dos conhecimentos sintéticos que deve ser sempre buscado na experiência, à qual o objeto de uma idéia não pode pertencer, faz-se muito necessário que o ilustre Leibnitz tenha feito aquilo de que se orgulhava, isto é, chegar a conhecer a priori a possibilidade de um ser ideal tão elevado.

Essa prova ontológica (cartesiana) tão glorificada, que pretende demonstrar por meio de conceitos a existência de um ser supremo, perde, então, todo seu valor e não nos tornaremos mais ricos em conhecimentos com simples idéias quanto um comerciante não se tornaria em dinheiro se, com o pensamento de aumentar sua fortuna, ele acrescentasse alguns zeros em seu livro de caixa.

 

O Rigorismo de Kant (Fundamento da Metafísica dos Costumes)

Conservar a própria vida é um dever e, além disso, é uma coisa para a qual todos possuem uma inclinação imediata. Ora, é por isso que a solicitude, freqüentemente inquieta, com que a maior parte dos homens se dedica a isso, não é menos desprovida de todo valor intrínseco e é por isso que sua máxima não possui nenhum valor moral. É certo que eles conservam sua vida de acordo com o dever, mas não por dever. Em compensação, quando contrariedades ou uma aflição sem esperança tenha roubado de um homem todo gosto de viver e se o infeliz, com ânimo forte, fica muito mais indignado com sua sorte do que desencorajado ou abatido, se deseja a morte e, no entanto, conserva a vida sem amá-la, não por inclinação ou temor, mas por dever, então sua máxima possui um valor moral.

Ser bom, quando se pode, é um dever e, ademais, existem certas almas tão capacitadas para a simpatia que, mesmo sem qualquer motivo de vaidade ou de interesse, elas experimentam uma satisfação íntima em irradiar alegria em torno de si e vivem o contentamento de outrem, na medida em que ele é obra sua. Mas eu acho que no caso de uma ação desse tipo, por mais de acordo com o dever e mais amável que seja, não possui porém verdadeiro valor moral, já que ela se coloca no mesmo plano de outras inclinações, a ambição, por exemplo, que, quando coincide com o que realmente está de acordo com o interesse público e o dever, com o que, por conseguinte, é honorável, merece louvor e encorajamento, mas não respeito, pois falta a essa máxima o valor moral, isto é, o fato de que essas ações sejam feitas não por inclinação, mas por dever. Suponha-se então que a alma daquele filantropo esteja ensombrada por um desses desgostos pessoais que sufocam toda simpatia pela sorte de outrem e que ele sempre ainda tenha o poder de fazer bem a outros infelizes, mas que não seja tocado pelo infortúnio dos outros, por estar demasiado absorvido pelo seu próprio, e que nessas condições em que nenhuma inclinação não mais o leve a isso, ele porém se arranque dessa insensibilidade mortal e aja, livre da influência de qualquer inclinação, unicamente por dever; então, só então sua ação terá verdadeiro valor moral. E digo mais: se a natureza tivesse colocado no coração deste ou daquele um pouco de simpatia, se aquele homem (honesto de resto) fosse frio por temperamento e indiferente aos sofrimentos de outrem, talvez porque, tendo para com seus próprios sofrimentos um dom especial de resistência e de paciente energia, ele suponha que também nos outros, ou deles exija as mesmas qualidades; se a natureza não tivesse formado esse homem particularmente o que na verdade não seria sua obra pior) para fazer dele um filantropo, não encontraria ele, então, em si próprio o meio de se dar um valor muito superior ao que possa ter um temperamento naturalmente bonsoso? Certamente! E á aqui precisamente que surge o valor do caráter, valor moral e incomparavelmente o mais elevado, que provém daquele que faz o bem não por inclinação, mas por dever.

Assegurar a própria felicidade é um dever (indireto, ao menos); pois, o fato de não estar contente com a própria situação, com o viver pressionado por inúmeros cuidados em meio de necessidades não satisfeitas, poderia facilmente tornar-se uma grande tentação de violar seus deveres. Mas, aqui ainda, sem pensar no dever, todos os homens já têm, por eles próprios, a inclinação para a felicidade mais duradoura e mais íntima, pois, precisamente nessa idéia de felicidade, as inclinações se unificam numa totalidade. Ocorre apenas que o preceito que ordena o tornar-se feliz muitas vezes assume tal caráter, que traz grande prejuízo a algumas inclinações, e, contudo, o homem não pode fazer um conceito definido e certo dessa soma de satisfações a ser dada a todas a que chama de felicidade; desse modo, não há por que se surpreender que uma inclinação única, determinada quanto ao que promete e quanto à época em que pode ser satisfeita, possa levar vantagem sobre uma idéia flutuante, que, por exemplo, uma pessoa que sofre de gota possa gostar mais de saborear o que é de seu gosto e sofra em seguida, pois, segundo seu cálculo, ao menos nessa circunstância ela não se privou, por causa da talvez enganosa esperança de uma felicidade a ser encontrada na saúde, do gozo do momento presente. Mas, nesse caso igualmente, se atendência universal não determinasse sua vontade, se a saúde, para ela ao menos, não fosse coisa tão importante de fazer entrar em seus cálculos, o que restaria ainda aqui, como em todos os outros casos, seria uma lei, uma lei que ordena trabalhar para a própria felicidade não por inclinação, mas por dever, e é por isto somente que sua conduta possui um verdadeiro valor moral.

Assim, devem ser certa e igualmente compreendidas as passagens da Escritura em que é ordenado amar ao próximo, ainda que inimigo. Pois, o amor como inclinação não pode ser ordenado; mas fazer o bem precisamente por dever, na medida em que não há inclinação que nos conduza a isso, e mesmo que uma aversão natural e invencível a isto se oponha, eis aí um amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios da ação e não numa compaixão debilitante; ora, esse amor é o único que pode ser ordenado.

 

O Idealismo Pós-kantiano - Fichte, Schelling e Schleiermacher

A maior parte dos filósofos (é sua vocação mais preciosa, a menos que não seja seu pecado original) visa à inteligibilidade perfeita e à unidade total. Nessas condições, a empresa kantiana só pode deixar os filósofos insatisfeitos: para Kant, o entendimento não pode conhecer o fundo das coisas e se limita a "soletrar os fenômenos". Como é então que o mundo sensível se deixa organizar, se ordenado pelas categorias do espírito? E por que Kant mantém essa coisa em si que, segundo afirma, não podemos conhecer nem designar?

Os sucessores de Kant, por conseguinte, vão propor sistemas em que, de modo diferente, a irredutível oposição entre a coisa e o espírito será eliminada. Hegel, ao definir em uma palavra os sistemas de Fichte, de Schelling, ao mesmo tempo que o seu próprio, caracteriza-os sucessivamente como idealismo subjetivo, idealismo objetivo e idealismo absoluto.

Kant representa o centro do pensamento moderno. Para ele convergem e nele se compõem em um fenomenismo absoluto o fenomenismo racionalista e o fenomenismo empírico. Dele depende todo pensamento posterior, particularmente o idealismo clássico alemão, que desenvolve o conceito de criatividade do sujeito, de síntese a priori, de autonomia do espírito, para uma forma de monismo imanentista, em que toda realidade se resolve nos limites da experiência, e esta é totalmente produzida pelo espírito.

Além de Kant, a outra fonte essencial do idealismo alemão é Spinoza. Este filósofo é arrancado do desprezo e do esquecimento em que jazia, e o seu pensamento encaminha decisivamente o idealismo para a trilha do monismo imanentista, para o qual já fora orientado por Kant. Todos os filósofos idealistas (Fichte, Schelling, Schleiermacher, Hegel, Schopenhauer) dependem, mais ou menos, de Spinoza, bem como dele dependem artistas, literatos, poetas, com Goethe à frente.

Paralelo e correspondente ao movimento filosófico do idealismo pode ser considerado o romantismo, fenômeno artístico e literário, especialmente alemão. Com efeito, também o romantismo é denominado pelo conceito de criatividade e liberdade do espírito, como o idealismo; e com o idealismo tem em comum o historicismo, o conceito de desenvolvimento, e, por conseguinte, a valorização da nacionalidade e da religião, que são produtos históricos.

Os maiores românticos alemães são Schlegel e Novalis. A estes podem-se acrescentar Schelling e Schleiermacher; são eles, propriamente, filósofos idealistas, mas pertencem também ao movimento romântico, pela íntima unidade espiritual do romantismo e do idealismo. Este, pois, propende, em geral, mais para a arte e a poesia, do que para as ciências e a matemática; ao passo que se deu o contrário com o racionalismo precedente.

O Desenvolvimento do Idealismo

Apesar do seu conceito de criatividade do espírito, de síntese a priori, Kant deixara ainda uns dados, em face dos quais o espírito é passivo: o mundo dos noumenons, que o espírito não consegue conhecer. Esse mundo de coisa em si, esse mundo de dados, é representado especialmente de um lado por aquela misteriosa matéria, e de outro lado por aquele mundo inteligível, donde derivaria toda a atividade organizadora e criadora do espírito, no mundo empírico.

Ora, o idealismo clássico nega todo dado, ou coisa em si, perante o qual o espírito é passivo, e portanto nega o transcendente mundo kantiano dos noumenons, e reduz tudo à mais absoluta imanência do espírito. O mundo da matéria, das sensações, da natureza, é uma criação inconsciente do espírito; este é transcendental - e não transcendente - com respeito à multiplicidade e ao vir-a-ser do mundo empírico, no qual unicamente, entretanto, o espírito se realiza, vive, se concretiza a si mesmo indefinita e livremente, e é plenamente cognoscível a si mesmo.

 

O Idealismo Ético: Fichte

O primeiro e maior discípulo de Kant, que encaminhou decididamente o criticismo pela senda do idealismo imanentista, é Fichte. Resolve ele o mundo kantiano da sensibilidade, perante o qual, no dizer de Kant, o espírito seria passivo, no mundo da natureza, criado pelo espírito para se realizar a si mesmo como eticidade e liberdade, pois Fichte mantém o conceito kantiano do primado da razão prática, precisamente no conceito do espírito como eticidade.

João Amadeu Fichte nasceu em 1762, em Rommenau. Primeiro estudou teologia na universidade de Jena, depois dedicou-se entusiasticamente à filosofia kantiana, e conheceu pessoalmente Kant. Em 1794 foi convidado a lecionar na universidade de Jena. Aí teve que enfrentar a oposição das autoridades religiosas e políticas, que - protestantes embora - tiveram intuição do seu anticristianismo e ateísmo. Apesar das suas desculpas, enfim teve Fichte que deixar o ensino universitário. Depois de ter peregrinado por várias universidades, e ter travado relações com um círculo romântico, estabeleceu-se definitivamente, em 1810, na universidade de Berlim, onde pronunciou os famosos Discursos à Nação Alemã, para incitar os seus patrícios contra Napoleão que humilhara e vencera a Alemanha. Faleceu em Berlim, em 1814. Entre as suas obras, a principal é Fundamentos da doutrina da ciência, onde expõe sistematicamente o seu pensamento.

Sustenta Fichte que o motivo fundamental, pelo qual se decide em favor do idealismo e não em favor do dogmatismo, isto é, do realismo, seria prático, moral, em suma, uma questão de caráter. Dogmatismo significa passividade, acomodação, fraqueza, debilidade; ao passo que idealismo, isto é, imanentismo, significaria atividade, independência, liberdade, posse de si mesmo. E, de fato, este motivo prático, moral, ficou sendo a base do idealismo posterior, que, portanto, procurou a sua justificação teorética em uma metafísica monista-imanentista, e não em uma metafísica transcendente e teísta.

Assentado isto, Fichte concebe idealisticamente toda a realidade, tanto espiritual quanto material, como uma produção do eu. Trata-se, naturalmente, de um eu universal, absoluto, transcendental, isto é, Eu puro, de que o eu empírico, os diversos "eus empíricos" seriam concretizações particulares, no tempo e no espaço. Nesses eus empíricos, e unicamente neles, o Eu puro vive, opera, desenvolve-se, em um processo infinito, ético, em que está a sua divindade infinita.

Desenvolvendo a doutrina kantiana do primado da razão prática, Fichte pensa que a natureza íntima, profunda, originária do eu seja atividade, moralidade. Para realizá-la, o eu criaria o mundo da natureza, oporia a si mesmo o não-eu. Este seria precisamente como que o campo da sua atividade, o obstáculo a superar para realizar a sua eticidade, a antítese que ele põe como tese, a fim de que seja possível a síntese ética. Tal processo ascendente, pois, não tem fim, porque, se terminasse, apagar-se-ia a vida do espírito, a qual é atividade, eticidade, e a realidade cairia do nada.

Naturalmente, tal produção do não-eu por parte do eu, tal produção da natureza por parte do espírito é inconsciente. Mas, destarte, julga Fichte ter justificado, deduzido do eu o mundo da matéria, da natureza; mundo que, para Kant, era um dado e inexplicável. Fica, todavia, racionalmente indeduzível o conteúdo desse mundo da natureza, minerais, vegetais, animais, e cada indivíduo e cada ação sua, porquanto em um sistema de idealismo absoluto deveria ser tudo racionalmente justificado - como mais tarde, procurará fazer Hegel.

Mas, para que seja superado e vencido esse mundo natural, para que o espírito possa aplicar a ele a sua atividade, é necessário que a natureza seja conhecida pelo espírito. Daí uma terceira duplicação do eu, a dualidade do eu teorético e do eu prático, do eu cognoscitivo e do eu ativo. Temos o eu teorético, quando, na antítese eu não-eu, prevalece o segundo elemento; temos, pelo contrário, o eu prático quando prevalece o primeiro elemento, isto é, o espírito, que é precisamente eticidade. No conhecimento começa a manifestar-se aquela atividade consciente do espírito, do eu (reflexão), que era, ao invés, inconsciente no momento da produção da natureza, do não-eu (imaginação produtora), bem como na multiplicação do "eu puro" nos "eus empíricos".

Tal série ideal da atividade do espírito, do eu, consciente e inconsciente, teorética e prática, tem por fim a sempre mais perfeita realização do próprio espírito, isto é, a sua liberdade, a consciência da sua natureza absoluta e divina. Consciência e liberdade que encontram um progresso na sociedade humana, em uma sociedade de seres livres, no estado. Fichte tem uma concepção ética do estado, das nações, dos povos, deva ser guiada e ensinada por um povo, uma nação, um estado ideal. Segundo ele, esse estado seria a Alemanha. É um mito romântico da Alemanha, em que o povo alemão é considerado como o povo puro e originário, encarnando a idéia da humanidade.

Daqui se pode compreender a ação política exercida por Fichte na Prússia, em Berlim - durante a ocupação, a dominação de Napoleão, causa de humilhação para o povo germânico - com os Discursos à Nação Alemã. Nestes discursos esforça-se Fichte para despertar no povo alemão, despedaçado e dominado, uma consciência de unidade e autonomia nacionais, que deveriam ter culminado em um estado alemão, superestado em face de outros estados.

Essa atividade utópica-política de Fichte tem certa semelhança com a atividade desenvolvida alguns anos depois na Itália, por Gioberti que escreveu o famoso livro Primato morale e civile degli Italiani. Nesta obra Gioberti não somente quer dar à Itália unidade e independência nacional e política, mas também procura evidenciar o seu primado no mundo; primado moral e civil, isto é, religioso e cultural, que indiscutivelmente ela possui, como herdeira da cultura clássica e sede do cristianismo católico romano.

Não é preciso lembrar que o Deus de Fichte não é transcendente, pessoa, criador, como o Deus do teísmo e do cristianismo, isto é, não é Deus no sentido verdadeiro e próprio; mas é imanente, impessoal e gerador do mundo, de sorte que o verdadeiro conceito de Deus é logicamente anulado, como justamente observa Schopenhauer. Compreendem-se, assim, as acusações de ateísmo levantadas contra Fichte. O Deus de Fichte é apenas ordo ordinans, isto é, deveria ser a ordem moral do mundo. Entretanto, em um sistema imanentista - como é o de Fichte - acaba por coincidir com a ordem real, natural, do mundo, em que o "deve ser" é reduzido ao "ser".

O próprio Fichte notou essa grave deficiência, essa demolição de Deus. E, em uma segunda fase do seu pensamento, volta ele para uma concepção de Deus absoluto e imutável, ideal para o qual tende o afanoso evolucionar humano, que aspira aos valores espirituais e morais.

 

O Idealismo Estético: Schelling

Embora colega de Fichte e mais velho que Hegel, Schelling está logicamente entre Fichte e Hegel, pelo menos na primeira grande fase da sua especulação filosófica, denominada filosofia da identidade. Ademais, representa ele a filosofia do romantismo, enquanto Schelling assume no seu sistema a concepção romântica, em virtude da qual toda a natureza é espiritualizada, e o espírito humano atinge a essência metafísica da realidade através de uma intuição estética.

Frederico Guilherme Schelling nasceu em 1775, em Leonberg. Em Tubinga teve Hegel como condiscípulo, com o qual, em seguida, sustentou pesada polêmica. Passou da teologia à filosofia e dedicou-se ao estudo de Spinoza, do qual deriva a sua concepção idealista; de Fichte, que constitui o pressuposto imediato do seu pensamento, afastando-se entretanto dele em seguida. Em Leipzig integrou a sua cultura humanista e literária com estudos científicos. Nele influíram também as turvas fantasias da mística alemã. Foi sucessivamente professor nas universidades de Jena, Würzburg, Erlangen, Munique e Berlim, onde dominara o seu adversário Hegel, cujo racionalismo ele demole. Faleceu em Berlim, em 1854, quando o idealismo já estava esfacelado.

Schelling foi um autor variado e fecundo. As faces do seu pensamento são fundamentalmente duas: o período da filosofia da identidade, e o da filosofia da liberdade. As suas obras principais são: o Sistema do idealismo Transcendental; Representação do meu Sistema (primeira fase, filosofia da identidade); Filosofia e Religião; Pesquisas Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Objetos Conexos com Esta (segunda fase, filosofia da liberdade).

A filosofia de Schelling é, fundamentalmente, idealista: o espírito, o sujeito, o eu, é princípio de tudo. Como Fichte, admite que a natureza é uma produção necessária do espírito; recusa, porém, o conceito de Fichte de que a natureza tenha uma existência puramente relativa ao espírito. Para ele, a natureza - embora concebida idealisticamente - tem uma realidade autônoma com respeito ao sujeito, à consciência. A natureza é o espírito na fase de consciência obscura, como o espírito é a natureza na fase de consciência clara.

Então o princípio da realidade não é mais o eu de Fichte (o eu absoluto, o sujeito puro); mas deverá ser um princípio mais profundo, anterior ao eu e ao não-eu: será precisamente a identidade absoluta do eu e do não-eu, sujeito e objeto, espírito e natureza. Dessa identidade, princípio absoluto da realidade, decorrerá, primeiro, a natureza e o seu desenvolvimento, e depois o espírito com toda a sua história, não como sendo oposição e negação da natureza, mas como seu desenvolvimento e consciência.

Que a natureza seja espiritualidade latente e progressiva, Schelling julga demonstrá-lo mediante a racionalidade imanente na própria natureza, e precisamente mediante a sua finalidade.

Ao surgir a sensibilidade, nasce no universo a consciência espiritual, começa o desenvolvimento do espírito humano, que é um progresso, uma continuação com respeito ao desenvolvimento da natureza.

A unidade, a identidade profunda entre natureza e espírito deveria, segundo Schelling, ser aprendida pela intuição estética expressa na obra de arte, que é a obra do gênio. E o gênio se encontra só no campo estético, não no científico. Unicamente o gênio artístico atinge e revela o artista misterioso que atua no universo.

Logo, a realidade absoluta é identidade entre natureza e espírito, objeto e sujeito: unidade de uma multiplicidade. Mas então surge o problema que assoma em toda concepção monista da realidade: ou a realidade verdadeira cabe ao idêntico, ao indistinto, ao uno imutável; ou o multíplice, o devir do mundo tem uma realidade verdadeira. No primeiro caso, a multiplicidade e o devir do mundo, a natureza e o espírito, são meras aparências subjetivas; no segundo, propende para a primeira solução: o idêntico não é a causa do universo, mas é o próprio universo.

Mas então como se explica a visão, mesmo ilusória, do universo que aparece múltiplo e in fieri? Se a realidade absoluta é una e imutável, e nada existe fora dela, como e donde pode surgir essa visão destruidora do Absoluto? Schelling procura resolver esse problema, passando da filosofia da identidade à filosofia da liberdade, de um sistema racional, a um sistema irracional. Tal passagem é representada pela segunda fase do seu pensamento.

Nessa segunda fase, Schelling imagina o ser absoluto, Deus, como indiferença de irracional e racional, possibilidade do irracional e do racional, vontade inconsciente que aspira à racionalidade, à própria auto-revelação. Essa realização de racionalidade, essa revelação de Deus a si mesmo se realizam na determinação das idéias eternas em Deus. Schelling concebe as idéias eternas ao mesmo tempo como verbo de Deus, revelação de Deus a si mesmo, e como exemplares universais e imutáveis das existências particulares e in fieri.

A passagem de Deus, do mundo ideal, ao mundo empírico e contingente, não se pode realizar mediante uma dedução lógica, porquanto há essencial heterogeneidade entre o perfeito, o imutável, o universal e o imperfeito, o temporal, o particular. Tal passagem se explica então mediante um ato arracional, irracional da vontade, de liberdade. E isto é possível, porque as idéias eternas participam da natureza divina, que é liberdade e vontade. Por conseguinte, elas se podem destacar do Absoluto, decair no mundo empírico da multiplicidade, da individualidade, do contingente, do devir.

E, com efeito, tal queda, tal separação aconteceu e constitui o mundo material e espiritual, natural e humano, com todo o mal que nele existe. Através, pois, da história da natureza e da humanidade, deveria realizar-se progressivamente a redenção dessa queda original, o retorno das coisas a Deus, da multiplicidade à Unidade, do finito ao Infinito. Essa redenção redimiria não só e não tanto o mundo e o homem, mas o próprio Deus: porquanto, ele, assim, superaria o seu fundo originário arracional e irracional, revelando-se plenamente a si mesmo, conquistando a sua racionalidade.

Compreende-se, portanto, como, para Schelling, é racional o mundo das ciências, das idéias; mas irracional o mundo da existência, da realidade. Com relação ao primeiro é possível conhecimento racional, ciência, filosofia; ao passo que o segundo pode ser unicamente descrito com base na experiência.

O pensamento de Schelling é, pelo que se vê, difícil e proteiforme.

 

O Idealismo Religioso: Schleiermacher

A Schelling pode-se ligar Schleiermacher, porquanto ele também é ligado estritamente ao movimento romântico, e é, portanto, filósofo do Romantismo, embora muito inferior a Schelling como metafísico. Juntamente com o Romantismo, Scheleiermacher procura valorizar, justificar a religião, desprezada e expulsa da vida do espírito pelo racionalismo iluminista. Scheleiermacher teve uma influência vasta e duradoura sobre o protestantismo liberal alemão, elucidando o princípio da experiência interior, elemento germinal da Reforma luterana. É, porém, uma valorização no sentido imanentista, idealista, de sorte que a religião se torna necessariamente e ainda mais radicalmente demolida.

Frederico Scheleiermacher nasceu em Breslau, em 1768. Foi professor em Halle e Berlim, onde faleceu em 1831. As suas obras principais, em ordem cronológica, são: Discursos sobre a Religião; Monólogos; Crítica das Doutrinas; A Fé Cristã. Estes críticos têm um interesse religioso, mas implicam também numa concepção metafísica do mundo e da vida, mediante a qual o autor procura justificar a religião em geral e o cristianismo em especial.

A concepção filosófica de Scheleiermacher é, fundamentalmente, a do idealismo romântico, isto é, do monismo imanentista. Embora Scheleiermacher pense que não podemos conhecer nada a respeito de Deus, teoreticamente, repete de muitos modos que a realidade é una, e que o espírito humano na sua plena atualidade é a consciência de Deus imanente.

Segundo Scheleiermacher, o Absoluto não é atingível por via prática, moral, como julgava Kant. Para Kant, a atividade que atinge o Absoluto é a vontade moral, a razão prática. Daí o primado da razão prática; daí ser a metafísica substituída pela moral; daí ser a religião reduzida aos limites da razão prática, isto é, resolvida na moral. Mas o Absoluto não é atingível sequer por via teorética, racional, como julgava Hegel, dada a sua concepção panlogista-imanentista da realidade (toda a realidade é racional e toda a racionalidade é real): daí a lógica coincidir com a ontologia, a ética ser resolvida na dialética, e a religião aniquilada na filosofia.

O Absoluto - segundo Scheleiermacher - é atingido pelo sentimento: não pelo simples sentimento entendido em sentido psicológico, que é uma atividade coordenada ao conhecimento e à vontade, e é, como o conhecimento e a vontade, secundário, dependente e limitado; mas pelo sentimento potenciado romanticamente em sentido metafísico, sentimento este que seria precisamente a faculdade do Absoluto, do Uno, e a raiz comum das outras atividades psíquicas. Scheleiermacher quer libertar a religião não só da ciência, mas também da moral, para celebrar uma religiosidade estética. Pensa ele - como Schelling - que o Absoluto é atingido mediante a intuição estética, a que Schleiermacher julga poder dar um específico valor religioso.

Scheleiermacher sustenta que o conhecimento e a vontade - a ciência e a moral - não podem atingir o Absoluto, que é uno, porquanto o conhecimento e a vontade implicam a multiplicidade decorrente da relativa mudança dos estados de consciência e a dualidade de duas atividades, (sujeito e objeto), uma excluindo a outra. E julga que o privilégio de apreender a unidade metafísica do ser é devido ao sentimento, valorizado metafisicamente.

Que relação existe entre sentimento e religião, entre os quais Scheleiermacher institui uma equação? O Absoluto não é atingido pelo conhecimento, pela ciência, e nem sequer pela vontade, pela ética, e sim pelo sentimento. E por que esta atividade deve ser considerada religiosa e não, por exemplo, estética? Scheleiermacher parece proceder deste modo. Segundo a experiência religiosa, ele define, não arbitrariamente, a religião como sendo a relação do finito com o infinito, porquanto, de fato, a relação do finito com o infinito não pode ser senão dependência absoluta, do sentimento. Ao sentimento ele reconhece o valor particular de imediata autoconsciência e transforma-o metafisicamente. E conclui finalizando na equação sentimento-religião, e, portanto, acaba admitindo o primado da religião.

E como se realiza uma relação, isto é, uma multiplicidade, no sentimento, que deveria ser a plena consciência do Absoluto? Propriamente pela referência do sujeito empírico - apreendido imediatamente pelo sentimento psicológico, pela consciência imediata do eu - ao Absoluto, ao Uno, ao Eu, o qual deveria ser apreendido pelo sentimento em sentido metafísico, que é abstrata unidade, indiferença absoluta. Essa relação não é, evidentemente, como de criatura a Criador; mas como dualidade na unidade, uma expressão da distinção geral idealista entre eu empírico e eu transcendental.

Mediante a doutrina desses dois sentimentos, (empírico e metafísico), segundo Scheleiermacher, seria explicada a relação religiosa; mas não se compreende como no Absoluto, que é uno, e no sentimento, que é a consciência do Absoluto, se determine essa dualidade. É o escolho fatal do monismo, contra o qual Scheleiermacher em vão se bateu.

Parece, portanto, poder-se distinguir em Scheleiermacher uma religiosidade em sentido amplo, como sentimento indeterminado da Unidade indeterminada, e uma religiosidade em sentido específico, que seria a referência das várias e mutáveis determinações da autoconsciência ao Absoluto, ao mais alto e mais puro Eu, que constitui a nossa essência. Nisto consistiria a religiosidade verdadeira e própria, segundo Scheleiermacher.

A prescindir das críticas externas e internas que se podem fazer a essa construção metafísico-imanentista, estético-romântica, é certo que, para Scheleiermacher, a religião ocupa o mais alto grau da atividade humana, assim como o sentimento ocupa o vértice da vida espiritual. E como na vida espiritual o conhecimento e a vontade seriam secundários e derivados com respeito ao sentimento, assim na atividade religiosa a teoria e a prática, a doutrina e a moral, seriam expressões inadequadas e simbólicas da religiosidade.

A filosofia religiosa de Scheleiermacher teve uma grande influência sobre o protestantismo liberal alemão do século XIX.

 

  2.             O ILUMINISMO FRANCÊS

 

Entre os grandes sistemas do século XVII, como os de Spinoza, Malebranche, Leibnitz, e os do século XIX - doutrinas de Hegel ou de Auguso Comte - a filosofia do século XVIII ocupa um lugar original; ela ignora as grandes sínteses, as grandes "visões do mundo", possantes e originais, e marca o triunfo da inteligência crítica.

A substância doutrinal de quase todos os filósofos desse século provém de sistemas anteriores; segundo d'Alembert, por exemplo, "Newton criou a física e Locke a metafísica".

a) Já na metade do século, a física de Newton destrona a de Descartes. Newton não faz o romance da matéria, mas exprime os fatos realmente dados na linguagem rigorosa da matemática; ele explica o movimento dos planetas, a gravidade, as marés. A matemática do infinitesimal descreve adequadamente as variações contínuas dos fenômenos. Podemos dizer que a física de Newton contribuiu largamente para a formação do espírito moderno, simultaneamente racionalista e experimental, ao relatar os fatos reais em linguagem matemática, ao descrever o "como" dos fenômenos, renunciando a imaginar o longínquo "por que" metafísico. "Hypotheses non fingo", não forjo imagens metafísicas, dizia Newton.

b) Locke passa por ser o criador da "metafísica", isto é, da ciência do espírito humano. O século XVIII caracteriza-se por uma tendência empírica e analítica: procura-se explicar as idéias complexas a partir das simples e as idéias a partir dos fatos.

c) Sem dúvida, há que acrescentar a influência capital de Spinoza. De sua doutrina evidenciar-se-á sobretudo o naturalismo, a idéia de que o motor de todos os sêres é o desejo, "o esforço de perseverar em seu ser", a idéia de que o homem não é "um império num império", mas que é regido pelas leis de todo o universo. Deus é identificado com a natureza - Deus sive natura - e as leis ditas eventos sobrenaturais, milagres, prodígios, profecias, encontram, na trapaça de uns e na credulidade de outros, explicação suficiente e perfeitamente natural. Com as idéias de Newton, de Locke, de Spinoza, e também de Descartes (cuja "visão"metafísica é rejeitada, mas cujo método racionalista é bem acolhido), os pensadores do século XVIII farão suas armas: eles são, dir-se-ia hoje, filósofos engajados. Consideram-se os artífices da felicidade humana e se empenham na destruição dos preconceitos e na difusão das "luzes". (É o século das luzes, Aufklärung, isto é, do racionalismo.) Daí o tom particular desses filósofos que fazem panfletos contra o poder, contra a Igreja, e que querem criar movimentos de opinião: a ironia e a clareza do estilo adquirem eficácia particular para tais empreendimentos.

 

Montesquieu (1689-1755)

A política de Montesquieu, exposta no Espírito das Leis (1748), surge como essencialmente racionalista. Ela se caracteriza pela busca de um justo equilíbrio entre a autoridade do poder e a liberdade do cidadão. Para que ninguém possa abusar da autoridade, "é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder". Daí a separação entre poder legislativo, poder executivo e poder judiciário.

Montesquieu, porém, possui sobretudo concepção racionalista das leis que não resultam dos caprichos arbitrários do soberano, mas são "relações necessárias que derivam da natureza das coisas". Assim é que cada forma de governo determina, necessariamente, este ou aquele tipo de lei, esta ou aquela psicologia para com os cidadãos: a democracia da cidade antiga só é viável em função da "virtude", isto é, pelo espírito cívico da população. A monarquia tradicional repousa num sistema hierárquico de suseranos e vassalos que só funciona a partir de uma moral da honra, ao passo que o despotismo só subsiste com a manutenção, em toda parte, da força do medo. Não vemos como na Inglaterra a liberdade política conduz à existência de leis particulares que não encontramos em outros regimes? As leis obedecem a um determinismo racional. Como diz muito bem Brehier, "a variável aqui é a forma de governo de que as legislações políticas, civil e outras são as funções". Todavia, as "relações necessárias", de que fala Montesquieu, são muito menos a expressão de um determinismo sociológico de tipo materialista do que a afirmação de uma ligação ideal, harmônica, entre certos tipos de governo e certas leis possíveis, sendo que as melhores pertencem a este ou aquele governo, cabendo ao legislador descobri-las e aplicá-las. Montesquieu, por exemplo, nunca afirmou que o clima determina, necessariamente, estas ou aquelas instituições. Só os maus legisladores favorecem os vícios do clima. É preciso encontrar em cada clima, em cada forma de governo, em cada circunstância em que se está colocado, quais as leis melhor adaptadas, quais aquelas que, na situação considerada, realizarão o conjunto mais justo, mais harmonioso. O "direito natural", a justiça ideal preexistem às leis escritas, uma vez que lhes servem de guia. "A verdadeira lei da humanidade é a razão humana enquanto governa todos os povos da terra; dizer que só o que as leis positivas ordenam ou proíbem é que constitui o que há de justo e injusto, significa dizer que, antes que se tivesse traçado os círculos, todos os raios eram desiguais".

 

Voltaire (1694-1778)

Voltaire, de certo modo, é o tipo acabado do "filósofo" do século XVIII. As idéias filosóficas de Voltaire, tirada de Locke e de Newton, não são originais. O próprio espírito voltairiano teve seus precursores. Fontenelle (1657-1757) mostrou, antes de Voltaire, que a história se explica mais pelo jogo das paixões humanas do que pelo decreto da Providência. E Fontenelle já colocara (Conversações sobre a pluralidade dos mundos) a nova astronomia ao alcance dos marqueses. Pierre Bayle (1647-1707), protestante francês exilado em Roterdam, possuía a arte de, antes de Voltaire, opor os sistemas metafísicos entre si, a fim de ressaltar de suas contradições a necessidade da tolerância (o Dicionário histórico e crítico de Bayle, 1697, é uma prodigiosa colocação de teses que testemunha sua incomparável erudição e que será possuído por todos os intelectuais do século XVIII). Em seus Pensamentos sobre o cometa, Bayle já apresenta ardis tipicamente voltairianos para comprometer, em sua crítica aos prodígios e superstições populares, a fé nos milagres do cristianismo.

Voltaire, inimigo encarniçado do cristianismo, é um deísta convicto: a organização do mundo, sua finalidade interna, só se explicam pela existência de um Criador inteligente ("Este mundo me espanta e não posso imaginar / Que este relógio exista e não tenha relojoeiro"). Criticou Leibnitz e seu "melhor dos mundos possíveis" que, após o terremoto de Lisboa, permanece otimista; contra Pascal, "misantropo sublime", ele acha que o homem, reduzido apenas aos seus recursos, pode estabelecer uma certa justiça sobre a terra e alcançar uma certa felicidade. Apesar de negar o pecado original, Voltaire, no entanto, mantém o princípio de um Deus justiceiro. É certo que esse Deus policial é sobretudo requisitado para manter a ordem social e as vantagens econômicas aproveitadas por Voltaire e os outros grandes burgueses. O célebre verso de Voltaire "Se Deus não existisse precisaria ser inventado" deve, para ser bem compreendido, ser citado com seu comentário: "e teu novo arrendatário / Por não crer em Deus, pagar-te-á melhor?" É certo, no entanto, que Voltaire crê na ordem do mundo, numa finalidade providencial. Para ele, a estrutura geográfica da terra, as espécies vivas são fixas; em nome desse finalismo estático, ele rejeita as idéias evolucionistas que começam a se difundir. Recusa-se a crer nos fósseis de animais marinhos descobertos nas montanhas por aquela época. Admitir que as montanhas outrora estiveram submersas, seria negar a estabilidade e a finalidade da ordem atual do mundo. (Ele também teme que esses fósseis marinhos nas montanhas só sirvam para os cristãos provarem a história do dilúvio!).

Voltaire traz o iluminismo da Inglaterra para a França, já bem disposta para assimilá-lo e valorizá-lo, escrevendo as famosas Lettres sur les Anglais. E logo se desperta na França uma verdadeira anglomania: pelo constitucionalismo inglês, pelo livre pensamento, pela ciência nova, por Locke e Newton. Assim, se a terra de origem do iluminismo é a Inglaterra, a sua terra clássica é a França. Aí assumirá aquele caráter extremado e difusivo pelo qual o iluminismo ficará definitivamente individuado.

O traço específico do iluminismo francês é o culto da razão, a deusa razão da revolução francesa. A razão (humana) deve dominar acima de tudo e acima de todos, déspota absoluta. Daí a guerra a qualquer atividade e instituição que não sejam puramente racionais, à fantasia, ao sentimento, à paixão; às desigualdades sociais, porque a razão é universal; ao estado, quando conculca os direitos naturais do indivíduo; às divisões nacionais e à guerra; à história e à tradição em geral, em que a razão certamente não domina. No campo social, econômico, político, religioso, tudo isto levará à demolição, à destruição da ordem constituída. É o que fez desabusadamente e desapiedadamente a revolução francesa.

Se o iluminismo demole toda a história, julga, todavia, realizado o seu ideal racional no começo da humanidade, no homem primitivo para o qual se deverá, ou mais ou menos, voltar. E se ele demole toda religião positiva, inclusive o cristianismo, e, em definitivo, também a religião natural de um Deus transcendente, substitui, todavia, a esta religião a religião humanista e imanentista da razão, cujo reino, porém, se encontra neste mundo e na vida terrena.

 

Os Homens e os Problemas

A obra fundamental do iluminismo francês e europeu, em geral, é a Enciclopédia: Enciclopédie ou dictionaire des sciences, des arts et des métiers. Foi publicada entre 1751 e 1780, em 34 volumes. Foi dirigida por João D'Alembert (1717-1783), autor do famoso Discours préliminaire, e por Denis Diderot (1713-1784) autor também de alguns escritos filosóficos - Pensées sur l'interprétation de la nature (1754), etc. Entretanto colaboraram na enciclopédia os iluministas mais famosos, chamados por isso enciclopedistas. Entre eles Voltaire e Rosseau. O movimento dos enciclopedistas foi um poderoso meio para a difusão e vulgarização das idéias iluministas, na França e no estrangeiro.

A figura dominante do iluminismo francês é Francisco Maria Arouet, dito Voltaire (1694-1778). Viveu em Londres entre 1726 e 1729, e aí escreveu as famosas Lettres sur les Anglais, trazendo para a França o iluminismo. Caído na desgraça do Rei e da Corte da França, foi acolhido (1750-1753) por Frederico II, em 1755, retirou-se para Ferney, perto de Genebra, daí dominando o mundo da cultura européia. Entre as suas obras, as que mais interessam à filosofia, são: Lettres sur les Anglais (1734); Métaphysique de Newton (1740); Éléments de la Philosophie de Newton (1741); Candide ou de L'optimisme (1756); Dictionnaire Philosophique (1764); Réponse ou Système de la nature (1777).

Pelo que diz respeito ao problema filosófico em geral, o iluminismo francês adere ao empirismo de Locke desenvolvido no sensismo de Condillac, ou até no ceticismo. Pertence a esta última tendência Pedro Bayle (1647-1706), autor do Dictionnaire Historique et Critique, meio eficaz de difusão do iluminismo antes da grande enciclopédia. Bayle propagou a incredulidade pela Europa toda, sustentando a irracionalidade da Revelação: mesmo contra a própria intenção do autor, que pretendia mostrar a necessidade de se apoiar na Fé em face dos máximos problemas, sendo a razão humana impotente para solucioná-los.

Assim, o mecanismo (empirista e racionalista) é levado até o materialismo por La Mettrie e D'Holbach, atacados por Voltaire.

Julião Offrai de La Mettrie (1709-1751) é o autor do famoso livro L'homme machine; o barão Teodorico D'Holbach (1723-1789), um alemão que viveu em Paris, é o autor do não menos famoso Système de la nature, onde o materialismo se manifesta em cheio.

Acerca do problema religioso, a atitude iluminista é decididamente hostil à igreja católica e se propõe a si mesma esmagá-la (écraser l'infâme): quer admita uma religião natural, com a crença em Deus, na imortalidade da alma, nas sanções ultraterrenas, como sendo necessárias para a conservação da ordem moral e política, segundo o ideal deísta (Voltaire); quer chegue até ao ateísmo e ao hedonismo, como, por exemplo, a corrente iluminista chefiada por Cláudio Helvetius (1715-1771), autor do livro De l'Esprit.

Pelo que concerne aos problemas sociais e políticos, enfim, para os quais o iluminismo tinha naturalmente um interesse especial, manifestam-se também duas atitudes: a do assim chamado despotismo iluminado, isto é, do absolutismo racional, para o bem dos povos e da humanidade - acredita-se na razão, mas não no povo que se quer elevar. Daí a necessidade da força a serviço da razão. A outra atitude ou tendência é a que deriva do liberalismo constitucional. Esta corrente, pelo contrário, manifesta confiança no povo ou, melhor, na burguesia, desejosa e capaz de liberdade. Característica desta concepção política é a divisão absoluta dos poderes supremos: legislativo, executivo e juduciário. O maior expoente dessa corrente é Carlos de Secondat, Barão de Montesquieu (1689-1755). É o autor das Lettres persanes, das Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence, e do Esprit des lois. Nestes escritos se manifesta um racionalismo iluminista temperado, desenvolvido em sentido historicista, concreto, pelo sentido de variedade das leis em relação às condições dos povos.

 

Jean-Jacques Rosseau (1712-1778)

A obra de Rosseau que foi mal compreendida e que ainda o é nos meios do catolicismo tradicional, na realidade representa uma reação espiritualista contra a filosofia das luzes e o otimismo dos enciclopedistas, desses filósofos do "conventículo holbáquico" que ele destacava e pelos quais era odiado.

Em seu primeiro livro, Discurso sobre as Ciências e as Artes, ele escreve para responder a uma questão que a Academia de Dijon colocara em concurso: Rosseau declara-se inimigo do progresso. Para ele, o progresso das ciências e das artes tornou o homem vicioso e mau, corrompendo sua natureza íntima. Freqüentemente se resume a tese de Rosseau aos seguintes termos: o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompeu. Não se fará, no Emílio, o campeão de uma pedagogia naturalista que confia nas tendências espontâneas da criança, que atende às suas necessidades mais profundas, ao invés de submetê-la a constrangimentos difíceis? (Nesse sentido, a pedagogia da chamada Escola Nova, fundada nas tendências e nos centros de interesse espontâneos da criança, é uma pedagogia rousseauniana: "Toda lição, dirá Dewey em nossos dias, deve ser uma resposta").

Mas seria uma grave erro confundir o "naturalismo" de Rosseau com o dos filósofos das luzes. Na realidade, a moral e a filosofia de Rosseau, tais como se encontram em seu romance A Nova Heloísa (1761) e na Profissão de fé do Vigário saboiano, peça mestra do Emílio (1762), recaem nos temas do espiritualismo mais tradicional. É certo que a profissão de fé do Vigário suscitou as iras dos poderes públicos e das igrejas constituídas. A obra será solenemente queimada, um mês apenas após sua publicação, em Paris e em Genebra. O arcebispo de Paris condena-lo-á em célebre ordenação (perseguido por toda parte, Rosseau só encontra refúgio na Inglaterra, junto a Hume, com quem, aliás, se desentenderá pouco depois). É censurado por escolher a religião natural (aquela que o homem encontra no próprio coração) e rejeitar a religião revelada. Não há dúvida de que ele declara que todas as religiões são boas e que cada crente pode conseguir a salvação na sua (o que é contrário ao que, na época, era pensado nas igrejas católicas e protestantes). Também é certo que ele desconfia das interpretações que a Igreja possa dar dos Evangelhos ("quantos homens entre mim e Deus!"). No entanto, prende-se ao ensinamento de Jesus, cujos atos, diz, são melhores atestados do que os da vida de Sócrates. Rosseau adota o dualismo moral popular. "Somos tentados pelas paixões e detidos pela consciência", essa consciência moral que, segundo ele, é uma exigência inata em nós e não, como dizia Montaigne, o reflexo do costume. Para Rosseau, os maus triunfam neste mundo, ao passo que o justo é infeliz. Todavia, a justiça divina recompensará os bons ("a vida da alma só começa com a morte do corpo") e punirá os maus que são culpados de serem assim ("dependia deles não se tornarem maus"). A Nova Heloísa apresenta-se como uma apologia da religião e da moral, dessa "lei divina do dever e da virtude" em nome da qual a paixão amorosa se sacrifica heroicamente.

A teoria política de Rosseau, exposta no Contrato Social, aproxima-se bastante, aparentemente ao menos, das idéias dos filósofos racionalistas. Nessa obra, Rosseau pesquisa as condições de um Estado social que fosse legítimo, que não mais corrompesse o homem. O problema que ele coloca recai no de Locke ou de d'Holbach: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens da cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, porém, senão a si próprio e permaneça tão livre quanto antes; ete, o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social". Todavia, o pacto social não tem por fim conciliar todos os interesses egoístas, mas antes depreender (o que é possível com a maioria das vozes, nos debates do povo reunido) uma vontade geral. Esta última faz abstração dos interesses divergentes e das paixões de cada um para só cuidar do bem comum. Entenda-se bem: "cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante da vontade geral que ele tem como cidadão". Por conseguinte, nessa vontade geral descobriremos outra coisa que não o interesse, o desejo de felicidade, etc. Encontraremos aí, no fundo, a regra da consciência, esse juízo inato do bem e do mal que cada um descobre em si mesmo, quando dissipa seus desejos egoístas "no silêncio das paixões".

 

A Consciência segundo Rosseau (Profissão de Fé do Vigário Saboiano)

Não tiro dessas regras, os princípios de uma alta filosofia, mas as encontro, no fundo do meu coração, escritas pela natureza em caracteres indeléveis. Basta-me consultar-me sobre o que quero fazer; tudo o que sinto ser bem é bem e tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência; e só quando se comercia com ela é que se recorre às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos os cuidados é o consigo mesmo: todavia, quantas vezes a voz interior nos diz que, ao fazer nosso bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e lhe resistimos, escutando o que ela diz dos nossos sentidos, desprezamos o que diz aos nossos corações; o ser ativo obedece e o ser passivo ordena. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. É espantoso que muitas vezes essas duas linguagens se contradigam? A qual delas se deve ouvir? A razão freqüentemente nos engana, não temos senão o direito de recusá-la; mas a consciência nunca engana; é o verdadeiro guia do homem: ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo(¹); quem a segue, obedece a natureza e não teme se perder. Este ponto é importante, proseguiu meu benfeitor, vendo que eu ia interrompê-lo: esperai que eu me detenha um pouco mais a esclarecê-lo.

A moralidade de nossas ações está no juízo que delas fazemos. Se é verdade que o bem seja bem, ele o deve ser tanto no fundo de nossos corações quanto em nossas obras, e o maior prêmio da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondade moral concorda com nossa natureza, o homem não poderia ser são de espírito, nem bem constituído, se não fosse bom. Se não concorda, então o homem é naturalmente mau e não o pode deixar de ser sem se corromper; a bondade não seria senão um vício contra a natureza. Feito para prejudicar seus semelhantes, assim como o lobo para devorar sua presa, o homem humano seria um animal tão depravado quanto um lobo desprezível; e a virtude só nos deixaria remorsos.

Penetremos em nós mesmos, oh, meu jovem amigo! Examinemos, deixando à parte qualquer interesse pessoal, para onde nossas tendências nos conduzem. Qual o espetáculo que mais nos envaidece, o dos tormentos ou o da felicidade de outrem? Que é que nos é mais doce fazer e que nos deixa agradável impressão após o ter feito, um ato benfazejo ou um ato malfazejo? Por quem vos interessais mais em vossos teatros? É com a maldade que vos divertis? É com seus autores punidos que derramais lágrimas? Tudo nos é indiferente, dizem eles, exceto nosso interesse; quando, ao contrário, as doçuras da amizade humana nos consolam em nossas penas; e mesmo em nossos prazeres, estaríamos demaisados sós e seríamos demasiados miseráveis se não tivéssemos com quem os dividir. Se nada existe de moral no coração do homem, de onde, então, provêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esses transportes de amor pelas grandes almas. Esse entusiasmo da virtude, qual a relação que ele tem com nosso interesse privado? Por que eu preferiria ser Catão, que rasga as entranhas, do que César triunfante? Tirai de nossos corações esse amor ao belo, que tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas paixões vis sufocaram esses sentimentos deliciosos em sua alma estreita; aquele que, à força de se concentrar dentro de si, acaba por amar apenas a si mesmo, não mais tem transportes e seu coração congelado não mais palpita de alegria, assim como uma doce trnura nunca umedece seus olhos; não goza mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais, já está morto.

(¹) A filosofia moderna, que só admite o que explica, não deixa de admitir essa obscura faculdade chamada instinto que parece guiar os animais, sem qualquer conhecimento adquirido, no sentido de algum fim. O instinto, segundo um de nossos mais sábios filósofos (Condillac), nada mais é do que um hábito privado de reflexão, mas adquirido por reflexão; a maneira pela qual ele explica esse progresso obriga-nos a concluir que as crianças refletem mais do que os adultos, paradoxo muito estranho para valer a pena ser examinado. Sem entrar aqui nessa discussão, pergunto que nome devo dar ao ardor com que meu cão faz guerra às toupeiras que não come, à paciência com que as guarda, jogando-as por terra no momento em que saltam, matando-as em seguida para deixá-las ali, sem que jamais alguém o tenha dirigido para essa caça ou lhe ensinado que existem toupeiras. Pergunto ainda, e isso é mais importante, por que, na primeira vez em que ameacei esse mesmo cão, ele se atirou de costas no chão, as patas dobradas, numa atitude suplicante e mais própria para me comover, postura em que não permaneceria se, sem me deixar dobrar, eu lhe batesse. Quê?! meu cão, pequenino, mal acabado de nascer, já teria adquirido idéias morais? Sabia o que era clemência e generosidade? Em virtude de que luzes adquiridas esperava me acalmar, abandonando-se assim à minha discrição? Todos os cães do mundo fazem quase o mesmo no mesmo caso, e nada falo aqui que não possa ser verificado por todos. Que os filósofos, que tão desdenhosamente rejeitam o instinto, queiram explicar esse fato apenas pelo jogo das sensações e dos conhecimentos que elas nos fazem adquirir; que o expliquem de maneira satisfatória para todo homem sensato; então não teria mais nada a dizer e não mais falarei de instinto. (Nota de Rosseau)

 

Condillac (1715-1780)

O filósofo mais notável do iluminismo francês é Estevão Bannot de Condillac (1715-1780). Ele desenvolveu o empirismo de Locke num sentido francamente sensista, derivando da mera sensação - sem reflexão - toda a experiência. Condillac exerceu uma influência particular sobre a cultura italiana, orientando-a paa o sensismo, devido ao fato de ter ele sido, durante um decênio (1758-1767), preceptor, na corte de Parma, de Fernando de Bourbon, herdeiro daquele trono. A obra filosófica mais importante de Condillac é o Traité des sensations, em que desenvolve a sua concepção sensista.

Condillac imagina o homem como uma estátua, privada de toda sensação (tabula rasa) e que, em dado momento, começa a ter uma sensação de olfato. A sensação odorosa (de uma rosa) torna-se memória, quando, afastada a primeira sensação e sobrevindo outra, a primeira permanece com uma intensidade atenuada. Uma lembrança vivaz torna-se imaginação. Tem-se, deste modo, uma série de três graus de atenção, de atividade do espírito, constituindo a sensação o primeiro grau, a memória o segundo, a imaginação o terceiro. Comparando a sensação atual com a sensação lembrada, nasce a distinção entre presente e passado; a distinção entre atividade (na memória) e passividade (na sensação); a consciência, o eu, que é uma coleção de sensações atuais e lembradas; o juízo, que é comparação entre sensações presentes e passadas; a reflexão, isto é, a direção voluntária de atenção sobre uma determinada sensação - idéia ou relação, juízo - em uma série de idéias e juízos; a abstração, isto é, a separação de uma idéia de outra; e a generalização, isto é, a capacidade de noções gerais. Paralelamente ao desenvolvimento teórico do espírito procede o desenvolvimento prático. Da sensação (agradável ou dolorosa) nasce o sentimento (de prazer ou de dor). A lembrança de sensações agradáveis e a comparação com as presentes, tornam-se desejo; o desejo preponderante torna-se paixão; o desejo estável torna-se vontade.

O espírito adquire, assim, mediante um só sentido, o olfato, que é o mais pobre dos sentidos, o exercício de todas as suas faculdades. O espírito, contudo, mediante o tato, adquire consciência do mundo físico, do próprio corpo e dos demais corpos, pela resistência que o nosso esforço encontra no mundo externo. Isto não prova, entretanto, a existência, a realidade, do mundo externo, porquanto se trata sempre de sensações; o mundo externo é afirmado dogmaticamente, de sorte que, filosoficamente, estamos perante um ceticismo metafísico.

 

  3.             O SÉCULO XIX

 

Schiller (1759-1805)

Novallis (1722-1801)

Scheslling (1775-1854)

Herder (1744-1803)

Goethe (1749-1832)

 

Hegel, O Idealismo de (1770-1831)

Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser, desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado por Hegel, elevado a processo dialético; e este processo dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um processo circular, emanentista.

Jorge Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas universidades de Jena, Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta influência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.

Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético para que se tornasse muito difícil fazer-lhe acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante que lhe falava do Paraíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe enferma e porque não envenenou ninguém!" Em todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador oficial da monarquia escondia um grande poder explosivo!

Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A razão aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em definitivo, Idéia, Espírito. Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cada acontecimento particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual não é mais do que um aspecto ou um momento.

Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão".

As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua capacidade sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do pensamento contemporâneo. No entanto, freqüentemente deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e políticos.

É preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O panteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a história da terra. De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não temos a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens. Cada povo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização que triunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após ter saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força não "oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do mundo".

Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida, identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é o domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano. Como isso é possível?

É possível porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético - no qual a contradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).

 

A Dialética

A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se reencontram fundidos, reconciliados.

Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.

a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.

b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.

c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o domínio e a servidão.

Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.

No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e de bem.

Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.

Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares. Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas imanentistas.

Podemos resumir assim:

1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;

2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;

3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;

4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo.

Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista e imanentista.

Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.

 

A Idéia, A Natureza, O Espírito

Os três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a idéia, a natureza, o espírito. A idéia constitui o princípio inteligível da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande fase no absoluto devir do espírito é representada pela idéia, que, por sua vez, se desenvolve interiormente em um processo dialético, segundo o sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é obejto da Lógica; a saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do mundo natural e do espiritual. É, portanto, anterior a estes, mas apenas logicamente.

Chegada ao fim de seu desenvolvimento abstrato, a idéia torna-se natureza, passa da fase em si à fase fora de si; esta fase representa a grande antítese à grande tese, que é precisamente a idéia. Em a natureza a idéia perde como que a sua pureza lógica, mas em compensação adquire uma concretidade que antes não tinha. A idéia, todavia, também na ordem da natureza, deveria desenvolver-se mais ou menos, segundo o processo dialético, das formas ínfimas do mundo físico até às formas mais perfeitas da vida orgânica. Esta hierarquia dinâmica é estudada, no seu complexo, pela Filosofia da natureza.

Finalmente, tendo a natureza esgotado a sua fecundidade, a idéia, assim concretizada, volta para si, toma consciência se si no espírito, que é precisamente a idéia por si: a grande síntese dos opostos (idéia e natureza), a qual é estudada em seus desenvolvimentos pela Filosofia do Espírito. O espírito desenvolve-se através dos momentos dialéticos de subjetivo (indivíduo), objetivo (sociedade), absoluto (Deus); este último se desenvolve, por sua vez, em arte (expressão do absoluto na intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia (expressão conceptual, lógica, plena do absoluto).

Com o espírito subjetivo, a individualidade empírica, nasce a consciência do mundo. O espírito subjetivo compreende três graus dialéticos: consciência, autoconsciência e razão; com esta última é atingida a consciência da unidade do eu e do não-eu. O espírito subjetivo é estudado, em sentido vasto, pela psicologia, que se divide em antropologia, fenomenologia do espírito, psicologia propriamente dita. Não estando, pois, o espírito individual em condição de alcançar, no seu isolamento, os fins do espírito, de realizar a plena consciência e liberdade do espírito, surge e se afirma a fase do espírito objetivo, isto é, a sociedade. No espírito objetivo, nas concretizações da sociedade, Hegel distingue ainda três graus dialéticos: o direito (que reconhece a personalidade em cada homem, mas pode regular apenas a conduta externa dos homens); a moralidade (que subordina interiormente o espírito humano à lei do dever); a eticidade ou moralidade social (que atribui uma finalidade concreta à ação moral, e se determina hierarquicamente na família, na sociedade civil, no estado).

A sociedade do estado transcende a sociedade familiar bem como a sociedade civil, que é um conjunto de interesses econômicos e se diferencia em classes e corporações. O estado transcende estas sociedades, não porque seja um instrumento mais perfeito para a realização dos fins materiais e espirituais da pessoa humana (a qual unicamente tem realidade metafísica); mas porque, segundo Hegel, tem ele mesmo uma realidade metafísica, um valor ético superior ao valor particular e privado das sociedades precedentes, devido precisamente à sua maior universalidade e amplitude, isto é, é uma superior objetivação do espírito, segundo a metafísica monista-imanentista de Hegel, daí derivando uma concepção ético-humanista do estado, denominada por Hegel espírito vivente, razão encarnada, deus terreno.

Segundo a dialética hegeliana, naturalmente a sucessão e o predomínio dos vários estados na história da humanidade são necessários, racionais e progressivos; e necessária, racional e progressiva é a luta, a guerra, grças à qual, ao predomínio de um estado se segue o predomínio de um outro, a um povo eleito sucede um outro. Este, no fundo, tem razão sobre o vencido unicamente porque é vencedor, e aquele tem culpa unicamente porque é vencido. A história do mundo - com todo o mal, as injustiças, os crimes de que está cheia - seria destarte o tribunal do mundo. (O que se compreende, quando se faz coincidir o "ser" com o "deve ser", como acontece de fato no sistema hegeliano, graças à dialética dos opostos, em que os valores - verdadeiro-falso, bem-mal, etc. - são nivelados, porquanto igualmente necessários para a realização da idéia).

Se bem que no sistema hegeliano a vida do espírito culmine efetivamente no estado, põe dialeticamente acima do espírito objetivo o espírito absoluto, em que, através de uma última hierarquia ternária de graus (arte, religião, filosofia), o espírito realizaria finalmente a consciência plena da sua infinidade, da sua natureza divina, em uma plena adequação consigo mesmo.

Na arte o espírito tem intuição, em um objeto sensível, da sua essência absoluta; quer dizer, o belo é a idéia concretizada sensivelmente. Portanto, no momento estético, o infinito é visto como finito. Na religião, pelo contrário, se efetua a unidade do finito e do infinito, imanente no primeiro; mas em forma sentimental, imaginativa, mítica. Hegel traça uma classificação das religiões, que não passa de uma história das mesmas, segundo o seu sólito método dialético. Nessa classificação das religiões o cristianismo é colocado no vértice como religião absoluta, enquanto no ministério da encarnação do Verbo, da humanação de Deus, ele vê, ao contrário, a consciência que o espírito (humano) adquire da sua natureza divina.

Acima da religião e do cristianismo está a filosofia, que tem o mesmo conteúdo da religião, mas em forma racional, lógica, conceptual. Na filosofia o espírito se torna inteiramente autotransparente, autoconsciente, conquista a sua absoluta liberdade, infinidade. Como as várias religiões representam um processo dialético para a religião absoluta, assim, os diversos sistemas filosóficos, que se encontram na história da filosofia, representariam os momentos necessários para o advento da filosofia absoluta, que seria o idealismo absoluto de Hegel.

 

Hegel - A Idéia, A Natureza, O Espírito - Dialética Hegeliana: A Contradição é o Motor do Pensamento

Para o senso comum, a oposição entre verdadeiro e falso é algo de fixo; habitualmente ele espera que se aprove ou se rejeite em bloco um sistema filosófico existente; e, numa explicação sobre tal sistema, ele só admite uma ou outra dessas atitudes. Não concebe a diferença entre os sistemas filosóficos como o desenvolvimento progressivo da verdade; para ele, diversidade significa unicamente contradição. O broto desaparece na eclosão da flor e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, o fruto declara que a flor é uma falsa existência da planta e a substitui enquanto verdade da planta.

Essas formas não só se distinguem, mas se suplantam como incompatíveis. No entanto, sua natureza cambiante faz delas momentos da unidade orgânica em que não só não estão em conflito mas onde tanto um quanto outro é necessário; e essa igual necessidade faz a vida do conjunto. Mas comumente não é assim que se compreende a contradição entre sistemas filosóficos; e, ademais, o espírito que apreende a contradição habitualmente não sabe liberá-la ou conservá-la livre de sua unilateralidade, e reconhecer na forma, do que parece se combater e se contradizer, momentos mutuamente necessários.

 

O Absoluto Por Fim Não é Senão Aquilo Que Ele é na Realidade

A vida e o reconhecimento divinos podem, então, se se quiser, ser definidos como um jogo de amor para consigo mesmo; essa idéia cai no nível da edificação e mesmo da insipidez, se lhe retirarmos a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo. Essa vida, em-si, é a serena igualdade e a unidade consigo que nada têm a fazer com o ser-outro e a alienação, nem com a superação dessa alienação. Mas esse em-si é universalidade abstrata caso negligenciemos sua natureza de ser para-si e, por isso, o movimento espontâneo da forma. É inexato crer, ao declarar a forma como igual à essência, que o conhecimento possa se satisfazer com o em-si ou a intuição absoluta da primeira dispensam o acabamento da primeira e o desenvolvimento da segunda. Precisamente porque a forma é tão essencial à essência quanto a essência a si própria, não se deve apreendê-la ou exprimi-la apenas como essência, isto é, como substância imediata ou pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda riqueza da forma desenvolvida. Só então é que ela é concebida e exprimida como atual. A verdade é o todo. Mas o todo não é senão a essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamente que consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.

 

O Senhor e o Escravo

Buscar a morte do outro implica em arriscar a própria vida. Por conseguinte, a luta entre duas consciências de si é determinada do seguinte modo: elas se experimentam a elas próprias e entre si por meio de uma luta de morte. Não podem evitar essa luta, pois são forçadas a elevar ao nível da verdade sua certeza de si, sua certeza de existir para si; cada uma deve experimentar essa certeza em si mesma e na outra. Só arriscando a própria vida é que se conquista a liberdade. Só assim é que alguém se assegura de que a natureza da consciência de si não é o ser puro, não é a forma imediata de sua manifestação, não é sua imersão no oceano da vida. Essa luta prova que nada existe na consciência que não seja perecível para ela, prova que ela, portanto, não é senão puro ser para-si. O indivíduo que não arriscou sua vida pode certametne ser reconhecido como pessoa, mas não atingiu a verdade desse reconhecimento como consciência de si independente.(¹)

O senhor é a consciência que é por si mesma, mas essa consciência, aqui, está além de seu puro conceito: ela é consciência para-si que é mediada consigo mesma por uma outra consciência(²), notadamente por uma consciência cuja natureza implica no fato de ela estar unida a um ser independente ou às coisas em geral. O senhor está em relação com esses dois momentos: com a coisa enquanto tal, objeto do apetite, e com a consciência cujo caráter essencial é a coisa externa. Uma vez que o senhor (a), enquanto conceito da consciência de si, é relação imediata do ser para-si, mas (b) é simultaneamente mediação, em outras palavras, um ser para-si que só o é por meio do outro, ele se relaciona (a) imediatamente com os dois e (b) imediatamente com cada um por intermédio do outro. O senhor tem, com o escravo, uma relação mediata em virtude da existência independente, pois é precisamente a ela que o escravo está preso, ela é sua cadeia e da qual não pode se desprender na luta, o que o levou a mostrar-se dependente, posto que possuía sua independência numa coisa externa. Quanto ao senhor, ele é a potência que domina esse ser externo, pois provou na luta que o considera como puramente negativo; uma vez que ele domina esse ser e que esse ser domina o escravo, o senhor também o domina. Desse modo o senhor se relaciona com a coisa por mediação do escravo; este último, enquanto consciência de si, relaciona-se negativamente com a coisa e a ultrapassa; mas ao mesmo tempo a coisa é para ele independente e o escravo não pode, por meio de sua negação, chegar a suprimi-la; ele só faz trabalhar.

Em compensação, para o senhor, graças a essa mediação, a relação imediata torna-se a pura negação da coisa ou o seu gozo; aquilo que o apetite não conseguiu, ele o consegue; domina a coisa e se satisfaz na fruição. O apetite não chega a isso por causa da independência da coisa; mas o senhor, ao colocar o escravo contra ela e si próprio, só entra em contato com o aspecto dependente da coisa, fruindo-a puramente; deixa o aspecto independente da coisa para o escravo que a trabalha.(³)

 (¹) Este difícil texto de é característico do método hegeliano. Ele inspirou amplamente as análises de nossos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel examina simultaneamente a relação de dois "eu" e a relação de cada eu com sua própria vida. O "senhor", aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Por conseguinte, ele é mais do que ela, por sua coragem colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Por conseguinte, ele é, de início, escravo da vida e de seus objetos empíricos. Torna-se tembém escravo do senhor que o conserva (servus = conservado) a fim de ler em seu olhar temeroso e submisso o reflexo de sua vitória, a fim de se fazer reconhecer como consciência.

(²) Hegel quer dizer que o senhor não é senhor "em-si", mas por meio de uma mediação, isto é, uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos que depende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto, aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor.

(³) Graças ao trabalho do escravo, a relação do senhor com a coisa é uma relação de simples gozo que equivale à negação da coisa. Pensamos nos versos de Valéry:

Como o fruto se funde em fruição

Como em delícias ele muda sua ausência

Numa boca em que sua forma se extingue.

 

Concepção Dialética da História da Filosofia

Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinalava que a noção de História da Filosofia "envolve uma contradição interna". Com efeito, "a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, seu fim é a verdade. Mas a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra coisa". Se a verdade é eterna, "ela não penetra na esfera do que passa e não tem história". Entretanto, a filosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A idéia geral de filosofia permanece abstrata se não se confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de fruto só se explicita quando efetivamente se trata de "cerejas, ameixas ou uvas". Na realidade, cada filosofia corresponde a um momento da história, a uma etapa na conquista do espírito absoluto. Cada filosofia é "o espírito da época existente como espírito que se pensa". Ela surge "no devido momento, nenhuma ultrapassou seu tempo" (¹). As filosofias sucessivas não se refutam, mas as novas filosofias mostram as anteriores como verdades parciais passíveis de serem integradas numa síntese mais ampla que se elabora com o tempo. A história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz Hegel, "nós" em que vêm se reconciliar dialeticamente os contraditórios. A filosofia de Platão, por exemplo, é a síntese do imóvel ser parmenídico com a mobilidade heracliteana.

Nesse sentido, citaremos um excerto das lições sobre a História da Filosofia:

A razão é una e essa racionalidade una, um sistema e, por isso, a evolução das determinações do pensamento é igualmente racional. Os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noção fundamental. A posição dos precedentes é determinada pelo que se segue. O princípio de uma filosofia passa, na seguinte, para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição é que é refutada. As folhas, de início, são o modo de existência mais elevado da planta, depois é o botão e o cálice que, em seguida, se transformam em envoltório a serviço do fruto; é assim que o primeiro elemento é colocado numa categoria inferior pelo seguinte.

As filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado mostrar-nos-á como progridem seus princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente...

O estoicismo faz do pensamento um princípio, mas o epicurismo proclama vedadeiro o princípio diretamente oposto: o sentimento, o prazer para um, portanto, é o geral e para outro o particular, o individual: para o primeiro, é o homem pensante; para o segundo, o homem sensível. Somente sua reunião constitui a totalidade da noção e o homem, aliás, compõe-se dos dois elementos, do geral e do particular, do pensamento e da sensibilidade. Sua união é a verdade. Mas ambas se manifestam, uma após outra, opondo-se. O ceticismo é o princípio negativo que se eleva contra os dois precedentes; ele afasta o caráter exclusivo de um e outro, mas engana-se quando acredita os ter eliminado, pois ambos são necessários.

Desse modo, a essência da história da filosofia consiste em que princípios exclusivos transformam-se em momentos, em elementos concretos e se conservam, por assim dizer, num nó; o princípio das concepções subseqüentes é superior ou, o que dá no mesmo, mais profundo... A história de Platão não é um ecletismo, mas uma reunião das filosofias precedentes que então formam um todo vivo, uma união em uma viva unidade do pensamento...

É importante, antes de tudo, conhecer os princípios dos sistemas filosóficos e em seguida reconhecer cada um deles como necessário; sendo necessário, ele se apresenta em sua época como superior. Se se for mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, ela é assumida sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, o Uno, a unidade, é o fundamento de tudo; aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão... Conhecer verdadeiramente um sistema é tê-lo justificado em-si. Limitar-se a refutar uma filosofia é não compreendê-la; é preciso ver a verdade que ela contém. Nada mais fácil do que criticar, do que ver em alguma parte o caráter negativo; isto é sobretudo gosto característico dos jovens, mas se só se vê a negação, ignora-se o conteúdo que, ele sim, é afirmativo; supera-se-o sem que se encontre no interior. A dificuldade consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro; só quando são justificados em si próprios é que se pode falar de seu limites, de suas deficiências.

 (¹) Encontramos essa idéia em Marx, num contexto materialista: "Os filósofos não brotam da terra como cogumelos, eles são os frutos de seu tempo, de seu povo, cujas forças mais sutis e mais ocultas se traduzem em idéias filosóficas. O mesmo espírito fabrica as teorias filosóficas na mente dos filósofos e constrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo".

 

4.             O SÉCULO XX

 

Friedish Nietzsche (1844-1900)

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira.

Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequeno pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos.

Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em estudos bíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo (525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafísico que atribui à música.

Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima, filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama musical, principalmente com Tristão e Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar d "refúgio e consolação". Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane". Em cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me ali como em minha própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia grega, esboçando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.

 

O Filósofo e o Músico

Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença parece ter sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o filósofo durante toda a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.

Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469 a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da "embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência "decadente" de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para ele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e de sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega já tinha perdido sua "bela imediatez", e tornou-se necessário que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a fim de dominar os instintos contraditórios.

Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o "pensador privado" e o "professor público". Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde: dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de Wagner. Mas o "entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo sucesso o irritaram.

Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os ouvintes deixaram de freqüentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879, pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua noção de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquece sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valores não são mais do que algo "humano, demasiado humano".

Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência, isto é, da fraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa de decadência"  

 

Solidão, Agonia e Morte

Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois apareceu Aurora, com a qual se empenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, nem respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A Gaia Ciência, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade de Potência só apareceram depois de sua morte.

Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde na Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, acabaram por se afastar definitivamente.

Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, "foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu nobre Zaratustra".

No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da mãe e da irmã. Apesar da companhia dos familiares, sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado, pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.

Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzsche não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim falou Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que me trata dessa maneira".

Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900.

 

O Dionisíaco e o Socrático

Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.

Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.

Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula que, segundo Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção, criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".

Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as idéias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação.

 

O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha

A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das idéias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.

Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à luz das idéias do outro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma vulgarização da metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".

Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele concebido como um método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra "bom". Em latim, bonus significa também o "guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo. Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de potência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos que negam a vida, eu negam a "afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os signos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a "profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim, o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo de superfície.

A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as próprias palavras não passam de interpretações, antes mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são "interpretações essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive, dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.

 

Os Limites do Humano: O Além-do-Homem

Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".

Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates, mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo o novo homem que se situa além do próprio homem.

Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e "avaliar".

Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau, fazendo dela uma ação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.

Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe parecem "imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos". Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como soldados".

 

Uma Filosofia Confiscada

Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no autor de Assim Falou Zaratustra um percursor do nazismo. A principal responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e rascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).

Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da Alemanha sobre a França teria como conseqüência "um poder altamente perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um Estado como indício de verdadeira grandeza.

Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao "louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo pelos alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabem obedecer pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido, Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de "obediência e longas pernas". E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".

Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche, é necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese é reforçada: "estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção; essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da violência e da conquista e, como conseqüência, seus alicerces encontram-se na máxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência".

O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer nascer o além-do-homem.

 

Assim Falou Zaratustra

Em Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficial entendimento de seu pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do próprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície. Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico.

A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são considerados "manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a loucura que torna mais plano o caminho para as idéias novas, rompendo os costumes e as superstições veneradas e constituindo uma verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia". Em suma, aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença... Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade".

 

Karl Marx (1818-1883)

Como pareceria o mundo hoje, se Karl Marx tivesse realizado seu projeto de vida original? É que o jovem Marx se considerava um porta nato, e alguns produtos de suas inspirações poéticas chegaram até nós. Eles trazem títulos altamente líricos, algo como "Canto dos elfos", "Canto dos gnomos" ou "Canto das sereias", ou seja, trata-se de fúteis cantilenas mitológicas. Uma poesia particularmente comovedora, ainda que profundamente triste, é intitulada "Tragédia do destino". Vale citar algumas estrofes:

 

"A menina está ali tão reservada,

tão silente e pálida;

a alma, como um anjo delicada,

está turva e abatida...

Tão suave, tão fiel ela era,

devotada ao céu,

da inocência imagem pura,

que a Graça teceu.

Aí chega um nobre senhor

sobre portentoso cavalo,

nos olhos um mar de amor

e flechas de fogo.

Feriu-a no peito tão fundo;

mas ele tem de partir,

em gritos de guerra bramando:

nada o pode impedir".

 

Mas Marx também encontra outro tom:

 

"Os mundos uivam o próprio canto fúnebre.

e nós somos macacos de um Deus frio".

 

Após essa amostra, surge a pergunta se a poesia alemã perdeu muito com a decisão de Marx, ainda que sob profusos sofrimentos da alma, de abdicar da carreira poética. Em todo caso, o pai, um advogado bem-sucedido, exprime-se assim: "Lamentaria ver você como um poetinha." Sugere, entretanto, que o filho escreva uma "ode em grande estilo" sobre a Batalha de Waterloo. Os pósteros, porém, dependendo de se enxergar no marxismo a salvação ou a perdição do mundo, sentem-se aliviados ou angustiados por Marx ter desistido, após longo tempo, de cavalgar o Pégaso.

Karl Marx nasce em 1818, em Trier, "a menor e mais desgraçada aldeia, cheia de mexericos e ridículos endeusamentos locais". De sua juventude não se sabe nada de significativo. Interessante é no máximo observar que o futuro ateísta fanático tenha escrito um ensaio de conclusão do curso secundário sobre o tema "A Unificação dos Crentes em Cristo". Depois, quando segue para Bonn a fim de estudar Direito, encontra notoriamente dificuldades em lidar com as coisas exteriores. Em todo caso, assim lhe escreve a mãe apreensiva: "Você não deve considerar de modo algum uma fraqueza feminina, se eu agora estiver curiosa para saber como tem administrado sua vida doméstica, se a economia representa também algum papel, o que é uma necessidade inevitável tanto para grandes como para pequenas casas. Permito-me assim observar, querido Karl, que você nunca deve considerar limpeza e ordem coisas secundárias, pois disso depende a saúde e o bem-estar. Observe rigorosamente que seu quarto seja lavado. E lave-se você também, querido Karl, semanalmente com esponja e sabonete." Essa advertência certamente não é sem fundamento, pois as condições sob as quais Marx conduz seus estudos são tudo menos ordeiras: ingressa em uma corporação e, se as notícias sobre isso procedem, é ferido em um duelo. É encarcerado por "perturbar a ordem com alarido noturno e bebedeira". É indiciado por "porte ilegal de arma". Acumula dívida sobre dívida. Não obstante, fica noivo de Jenny von Westphalen, se bem que a nobre família da noiva só tenha aceito o zé-ninguém com hesitação. Até seu pai o adverte sobre o "exagero e exaltação do amor de uma índole poética" de ligar-se a uma mulher.

Após dois semestres, Marx continua seus estudos em Berlim, mas também lá se evidencia que ele não é nenhum estudante modelar. Seu pai tem razão em se queixar. "Desordem, divagação apática por todas as áreas do saber, meditação indolente junto da sedenta lamparina de azeite; embrutecimento erudito em robe de chambre em vez de embrutecimento junto da caneca de cerveja, insociabilidade repugnante com menosprezo total pelas boas maneiras", tudo isso ele censura no filho. Marx assiste apenas a poucas aulas, e mesmo essas antes do âmbito da Filosofia e da História do que do âmbito do Direito. Por semestres inteiros quase não freqüenta a universidade. De qualquer modo ele se forma aos 23 anos com um trabalho sobre um tema filosófico, em Jena, sem nem sequer ter estado lá por uma única hora. Mas esses acontecimentos não o impressionam. Para ele mais importante é pertencer ao "Clube do Doutor", uma agremiação de jovens discípulos de Hegel, e lá discutir dia e noite. Seus amigos atestam que ele é um "arsenal de pensamentos", uma "alma-danada de idéias". Ao mesmo tempo escreve "um novo sistema metafísico fundamental". Naturalmente, quer se tornar professor; mas desiste quando vê que seus amigos, os hegelianos de esquerda, quase sem exceção naufragavam no governo reacionário.

Em vez disso, Marx torna-se redator no Jornal Renano, de tendência liberal, publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas concretos de natureza política e econômica. Ele redige a folha em um espírito intrépido e liberal. Porém, recusa rudemente o comunismo, do qual mais tarde deveria tornar-se o cabeça. Após breve tempo, contudo, tem de suspender sua atividade de editor sob pressão policial. O jornal – "a meretriz do Reno", como o rei prussiano havia por bem chamá-lo – deixa de ser publicado.

Depois de ter-se casado com sua noiva de longos anos, Marx dirigi-se para Paris, onde edita juntamente com seu amigo Arnold Ruge os Anuários Franco-Germânicos. Por um tempo vive juntamente com a família Ruge em uma "comunidade comunista", que porém logo se desagregaria devido à incompatibilidade de gênios. Em Paris, Marx entra em contato com Heine e com socialistas franceses. Mas também sua permanência nesta cidade não é muito longa. A pedido do governo prussiano é expulso da França e estabelece-se provisoriamente em Bruxelas, onde funda o primeiro partido comunista do mundo (com 17 membros). Marx vai por pouco tempo para Londres, retornando então durante a Revolução de 1848 – por ocasião da qual escreve O Manifesto Comunista –, à França e à Alemanha a fim de promover seus planos revolucionários. Em Colônia, funda o Novo Jornal Renano. Mas é novamente expulso e vive até seus últimos dias, com apenas algumas interrupções para breves viagens ao continente, em Londres. Porém, todos esses anos em Paris e Bruxelas são cheios de contendas amargas e não particularmente tolerantes conduzidas contra revolucionários dissidentes; há também um trabalho intensivo em manuscritos filosóficos e econômicos, os quais em grande parte só serão publicados após sua morte.

Em Londres, Marx vive em situações muito limitadas com uma família que se multiplica com rapidez. Freqüentemente padecem necessidades. A fundação de um jornal fracassa. Marx tem de levar a vida em grande parte por meio de donativos, sobretudo de seu amigo Friedrich Engels. As condições de moradia são na maioria das vezes catastróficas; ocasionalmente, até a mobília é penhorada. Ocorre inclusive de Marx nem sequer poder sair de casa por sua roupa ter sido penhorada. As doenças perseguem a família; apenas algumas das crianças sobrevivem aos primeiros anos. Pressionado por dívidas, Marx pensa em declarar bancarrota; apenas o fiel amigo Engels consegue impedir esse ato extremo. A senhora Jenny desespera-se freqüentemente e deseja para si e suas crianças antes a morte do que viver uma vida tão miserável. Acresce que Marx se envolve em um caso amoroso com a empregada doméstica, que não fica sem conseqüências e prejudica sensivelmente o clima doméstico já afetado pela miséria financeira. Continuam também as desavenças com os correligionários. Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.

O aspecto e a personalidade de Marx são descritos por um amigo russo de modo bem intuitivo, ainda que sua magnífica barba seja esquecida: "Ele representa o tipo de homem constituído por energia, força de vontade e convicção inflexível, um tipo que também segundo a aparência era extremamente estranho. Uma grossa juba negra sobre a cabeça, as mãos cobertas pelos pêlos, o paletó abotoado totalmente, possuía contudo o aspecto de um homem que tem o direito e o poder de atrair a atenção, por mais esquisitos que parecessem seu aspecto e seu comportamento. Seus movimentos eram desastrados, porém ousados e altivos; suas maneiras iam frontalmente de encontro a toda forma de sociabilidade. Mas eram orgulhosas, com um laivo de desprezo, e sua voz aguda, que suava como metal, combinava-se estranhamente com os juízos radicais que fazia sobre homens e coisas. Não falava senão em palavras imperativas, intolerantes contra toda resistência, que aliás eram ainda intensificadas por um tom que me tocava quase dolorosamente e que impregnava tudo o que falava. Esse tom expressava a firme convicção de sua missão de dominar os espíritos e de prescrever-lhes leis. Diante de mim estava a encarnação de um ditador democrático, assim como se fosse em momentos de fantasia."

Desde o início de sua atividade filosófica, Marx insere-se na maior disputa espiritual de seu tempo, determinada pela vultosa figura de Hegel, cujo pensamento ele chama de "a filosofia atual do mundo". Inicialmente, Marx dedica-se a Hegel com paixão para, depois, distanciar-se dele com tanto maior aspereza.

Sua crítica inicia-se pela concepção da história de Hegel. Para este, a história não é uma mera seqüência casual de acontecimentos, mas um suceder racional que se desenvolve segundo um princípio imanente, ou seja, uma dialética interna. O decisivo nisso é que o verdadeiro sujeito da história não são os homens que agem. Na história antes dominaria um espírito que tudo abrange, ao qual Hegel designa como "espírito do mundo" ou "espírito absoluto" ou mesmo" Deus". Esse, o Deus que vem-a-ser, realiza no curso da história sua autoconsciência. Ele chega, por meio dos diferentes momentos do processo histórico, a si mesmo.

Hegel era da opinião de que em seu tempo e em seu próprio sistema o espírito absoluto teria, após todos seus descaminhos através da história, finalmente alcançado seu objetivo: a perfeita autoconsciência. "O espírito universal chegou ora até aqui. A última filosofia é o resultado de todas as anteriores; nada está perdido, todos os princípios foram preservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do espírito por quase 2500 anos, seu fervoroso trabalho, de reconhecer-se." Portanto, após o surgimento da filosofia hegeliana, não pode haver mais nada realmente inconcebível. Esse é o sentido da conhecida frase do Prefácio à Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é real é racional." Razão e realidade chegaram portanto, segundo Hegel, finalmente à adequação uma com a outra; elas foram verdadeiramente conciliadas. O espírito absoluto compreendeu a si mesmo como a realidade total e a realidade total como manifestação sua.

Aqui entra o protesto de Marx. Aquele pensamento de Hegel, de que a realidade toda tinha de ser entendida a partir de um espírito absoluto, consiste para ele em um injustificado "misticismo". Pois assim se filosofa a partir de um ponto acima da realidade factual, não a partir dessa mesma. Em oposição a isso a decidida exigência de Marx – de colocar a filosofia, ora de ponta-cabeça, de volta sobre os pés – é que a visão da realidade deveria ser invertida. A realidade deste mundo não deve ser explicada com base em uma realidade divina. Contrariamente, o ponto de partida do pensamento tem de ser a realidade concreta. Esse pensamento imprime à filosofia de Marx seu cunho ateísta. "A missão da história é, após o além da verdade ter desaparecido, estabelecer a verdade do aquém."

Quando Hegel afirma que a realidade estaria conciliada com a razão, ele não poderia, segundo Marx, ter em vista a realidade concreta. Em Hegel, tudo se passa no âmbito do mero pensamento. Mesmo a realidade sobre a qual ele fala, é a mera realidade pensada. Para Marx, porém, a realidade factual mostra-se contraditória, inconcebível e portanto não conciliada com a razão. Todo o empenho filosófico de Hegel fracassa porque ele não é capaz de incluir essa realidade efetiva em seu pensar, por mais abrangente que esse seja. "O mundo é portanto um mundo dilacerado, que se opõe a uma filosofia fechada em sua própria totalidade."

Para Marx, portanto, a realidade concreta é a realidade do homem. "As pressuposições com as quais iniciamos são os indivíduos reais." A filosofia como Marx a postula – em contraposição a Hegel e em concordância com Feuerbach – é uma filosofia da existência humana. "A raiz do homem é o próprio homem." Marx denomina sua filosofia por isso mesmo de "humanismo real". O real primeiro e originário para o homem é o próprio homem. É dele, portanto, que o novo pensar também tem de partir.

Mas o que é o homem? O significativo aqui é que Marx não considera o homem, como o faz Hegel, essencialmente a partir de sua faculdade de conhecer. Ao contrário, trata-se decisivamente da práxis humana, da ação concreta. "Na práxis, o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade, o poder e a mundanalidade de seu pensamento." "Parte-se do homem real que age."

É da essência da práxis humana que ela se realize na relação com o outro. Se Feuerbach queria conceber o homem como indivíduo isolado, Marx ressalta com toda clareza: o homem vive desde sempre em uma sociedade que o supera. "O indivíduo é o ser social." "O homem, isto é o mundo do homem: Estado, sociedade." Essa natureza social constitui para Marx o ponto de partida para toda reflexão subseqüente. Assim deve-se entender a muito discutida frase: "Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas é seu ser social que determina sua consciência."

Mas por que meio se constitui a sociedade humana? Marx responde: basicamente, não por meio da consciência comum, mas por meio do trabalho comum. Pois o homem é originariamente um ser econômico. As relações econômicas e particularmente as forças produtivas a elas subjacentes são a base (ou a "infra-estrutura") de sua existência. Apenas na medida em que essas relações econômicas se modificam, também se desenvolvem os modos da consciência, que representam a "superestrutura ideológica". Desta superestrutura fazem parte o Estado, as leis, as idéias, a moral, a arte, a religião e similares. Na base econômica reencontram-se também aquelas leis do desenvolvimento histórico, como as que Hegel atribuiu ao espírito. As relações econômicas desdobram-se de modo dialético, mais precisamente, no conflito de classes. Por isso, para Marx, a história é principalmente a história das lutas de classes.

Até aqui tudo poderia parecer como uma das muitas teorias antropológicas e histórico-filosóficas, em que a história da filosofia é bastante rica, isto é, até interessante mas realmente apenas mais uma interpretação entre muitas outras. Por que, então, o que Marx diz é tão estimulante? Como se explica que seu pensamento tenha determinado tão amplamente o tempo seguinte? Isso reside obviamente em que Marx não se detém no âmbito do pensamento puro, mas que se põe a trabalhar decisivamente na transformação da realidade: "Os filósofos têm apenas interpretado diversamente o mundo; trata-se de modificá-lo."

Nessa intenção, Marx empreende uma crítica de seu tempo. Observa que em seus dias a verdadeira essência do homem, sua liberdade e independência, "a atividade livre e consciente", não se podem fazer valer. Por toda parte o homem é tirado a si mesmo. Por toda parte perdeu as autênticas possibilidades humanas de existência. Esse é o sentido daquilo que Marx chama de "auto-alienação" do homem. Ela significa uma permanente "depreciação do mundo do homem".

Também aqui Marx recorre às relações econômicas. A auto-alienação do homem tem sua raiz em uma alienação do trabalhador do produto de seu trabalho: este não pertence àquele para seu usufruto, mas ao empregador. O produto do trabalho torna-se uma "mercadoria", isto é, uma coisa estranha ou alheia ao trabalhador, que o coloca em posição de dependência, porque ele precisa compará-la para poder subsistir. "O objeto que o trabalho produz, seu produto, apresenta-se a ele como uma essência estranha, como um poder independente do produtor." Da mesma forma também o trabalho se torna "trabalho alienado": não a ele imposto de sua autoconservação; o trabalho torna-se, em sentido próprio, "trabalho forçado". Esse desenvolvimento atinge sua culminância no capitalismo, no qual o capital assume a função de um poder separado dos homens.

A alienação do produto do trabalho conduz também a uma "alienação do homem". Isso não vale apenas para a "luta de inimigos entre capitalista e trabalhador". As relações interpessoais em geral perdem cada vez mais a sua imediação. Elas são mediadas pelas mercadorias e pelo dinheiro, "a meretriz universal". Enfim, os próprios proletários assumem caráter de mercadoria; sua força de trabalho é comercializada no mercado de trabalho, no qual se encontra à mercê do arbítrio dos compradores. Seu "mundo interior" torna-se "cada vez mais pobre"; sua "destinação humana e sua dignidade" perdem-se cada vez mais. O trabalhador é "o homem extraviado de si mesmo"; sua existência é "a perda total do homem"; sua essência é uma "essência desumanizada".

Mas, no ápice desse desenvolvimento – o que Marx crê poder demonstrar –, tem de sobrevir a guinada. Ela se torna possível desde que o proletariado se conscientize de sua alienação. Ele se compreende então como "a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, a desumanização que, consciente de sua desumanização, supera por isso a si mesma". Concretamente, segundo os prognósticos de Marx, chega-se a uma concentração do capital nas mãos de poucos, a um crescente desemprego e empobrecimento das massas. Com isso, porém, o capital torna-se seu próprio coveiro. Pois a essa concentração de capital devem seguir-se, segundo "leis infalíveis" – com necessidade histórica, cientificamente reconhecida e dialética –, a subversão e a revolução. A missão dessa revolução é "transformar o homem em homem", para que "o homem seja o ser supremo para o homem". Trata-se de "derrubar todas as relações em que o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado". Importa realizar "o verdadeiro reino da liberdade", desenfronhar o homem em "toda a riqueza de sua essência" e, com isso, superar definitivamente a alienação.

Marx considera tudo isso tarefa do movimento comunista. É chegado o tempo do "comunismo como superação positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação do homem e por isso como apropriação real da essência humana por meio de e para o homem; por isso, como regresso – perfeito, consciente e dentro da riqueza total do desenvolvimento até aqui –, do homem para si mesmo enquanto homem social, ou seja, humano. Esse comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo entre o homem e a natureza e entre o homem e o homem. A verdadeira solução do conflito entre liberdade e necessidade. Ele é o enigma decifrado da história, a verdadeira realização da essência do homem". Com o comunismo, "encerra-se a pré-história da sociedade humana" e inicia-se a sociedade "realmente humana". Mas sobre como essa sociedade comunista deve ser, Marx não nos dá nenhuma informação adicional.

 

Sigmund Freud (1856-1939)

Charles Darwin (1809-1882)

 

  5.             Existencialismo

 

Martin Heidegger (1889-1976)

Saren Kierkegaard (1813-1855)

Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de Estado.

Sétimo filho de um casamento que já durava muitos anos – nasceu em 1813, quando o pai, rico comerciante de Copenhague, tinha 56 e a mãe 44 –, chamava a si mesmo de "filho da velhice" e teria seguido a carreira de pastor caso não houvesse se revelado um estudante indisciplinado e boêmio. Trocou a Universidade de Copenhague, onde entrara em 1830 para estudar filosofia e teologia, pelos cafés da cidade, os teatros, a vida social.

Foi só em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regina Oslen (de quem se tornaria noivo em 1840), que sua vida mudou. O noivado, em particular, exerceria uma influência decisiva em sua obra. A partir daí seus textos tornaram-se mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Também em 1840 ele conclui o curso de teologia, e um ano depois apresentava "Sobre o Conceito de Ironia", sua tese de doutorado.

Esse é o momento da segunda grande mudança em sua vida. Em vez de pastor e pai de família, Kierkegaard escolheu a solidão. Para ele, essa era a única maneira de vivenciar sua fé. Rompido o noivado, viajou, ainda em 1841, para a Alemanha. A crise vivida por um homem que, ao optar pelo compromisso radical com a transcendência, descobre a necessidade da solidão e do distanciamento mundano, está em Diários.

Na Alemanha, foi aluno de Schelling e esboça alguns de seus textos mais importantes. Volta a Copenhague em 1842, e em 1843 publica A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844 saem Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, é editado As Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-scriptum a Migalhas Filosóficas. A maior parte desses textos constitui uma tentativa de explicar a Regina, e a ele mesmo, os paradoxos da existência religiosa. Kierkegaard elabora seu pensamento a partir do exame concreto do homem religioso historicamente situado. Assim, a filosofia assume, a um só tempo, o caráter socrático do autoconhecimento e o esclarecimento reflexivo da posição do indivíduo diante da verdade cristã.

Polemista por excelência, Kierkegaard criticou a Igreja oficial da Dinamarca, com a qual travou um debate acirrado, e foi execrado pelo semanário satírico O Corsário, de Copenhague. Em 1849, publicou Doença Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo, em que analisa a deterioração do sentimento religioso. Morreu em 1855.

 

Filósofo ou Religioso?

A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu pensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para além das minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acerca do estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questões fundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à sua obra.

Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões da ordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos, estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage às filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistema e aquilo que ela representa.

Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao mesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral. Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmonia racional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.

De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto ser individual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade não deve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.

Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de uma totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é infinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver a singularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de uma dimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.

Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vê diante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreender racionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam e fortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdo das circunstâncias do advento da Verdade.

Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que o homem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensão que o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediação conceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz. Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foi revelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreu na cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquilo que São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Se permanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi a mediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Somente dessa maneira nos colocamos no caminho da recuperação de uma certa afinidade com o absoluto.

Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse sentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente, da mediação do Cristo.

 

O Sofrimento Necessário

A subjetividade não significa a fuga da generalidade objetiva: ao contrário, somente aprofundando a subjetividade e a culpa a ela inerente é que nos aproximaremos da compreensão original de nossa natureza: o pecado original. E a compreensão irradia luz sobre a redenção e a graça, igualmente fundamentais para nos sentirmos verdadeiramente humanos, ou seja, de posse da verdade humana do cristianismo. A autêntica subjetividade, insuperável modo de existir, se realiza na vivência da religiosidade cristã.

A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, com uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O fato da redenção, embora histórico, possui uma dimensão que o torna referência intemporal para se vivenciar a fé. O cristão é aquele que se sente continuamente em presença de Deus pela mediação do Cristo. Por isso a religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz. Por isso é que Kierkegaard critica o cristianismo de sua época, principalmente o protestantismo dinamarquês, penetrado, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza a distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a fé.

Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que Deus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano segundo a ética dos homens.

Não se trata, nesse caso, de optar entre dois códigos de ética, ou entre dois sistemas de valores. Abraão é colocado diante do incompreensível e diante do infinito. Ele não possui razões para medir ou avaliar qual deve ser sua conduta. Tudo está suspenso, exceto a relação com Deus.

 

O Salto da Fé

Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força de sua fé fez com que Abraão optasse pelo infinito.

Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Continuaria sendo o assassino de seu filho. Poderia permanecer durante toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse imediatamente da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade a situação de homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.

Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser elucidada pelo conceito. Este jamais daria conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não se pode apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne a reflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de ser o pecado ao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio ao mundo. Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. A filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.

 

Albert Camus (1913-1960)

Jean Poul Sartre (1905-1980)

 

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Edit Stein (-1942)

Gerda Walter (1897 - 1978)

Hedwing Conrad-Martius (1888 - 1966)

 

O Positivismo de Auguste Conte

Características Gerais do Positivismo

Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. O positivismo representa uma reação contra o apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior respeito para a experiência e os dados positivos. Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito imanentista do idealismo e do pensamento moderno em geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do fenômeno. "O fato é divino", dizia Ardigò. A diferença fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o primeiro procura uma interpretação, uma unificação da experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário, quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível, como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica, mas também o seu maior valor como descrição e análise objetiva da experiência - através da história e da ciência - com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a ciência e a história. Dada essa objetividade da ciência e da história do pensamento positivista, compreende-se porque elas são fecundas no campo prático, técnico, aplicado.

Além de ser uma reação contra o idealismo, o positivismo é ainda devido ao grande progresso das ciências naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar os princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como resolvedora do problema do mundo e da vida, com a esperança de conseguir os mesmos fecundos resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graças ao desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que dominaram o mesmo século XIX. Sendo grandemente valorizada a atividade econômica, produtora de bens materiais, é natural se procure uma base filosófica positiva, naturalista, materialista, para as ideologias econômico-sociais.

Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente ou imanente, da experiência. A filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo concebido positivisticamente, é a evolução necessária de uma indefectível energia naturalista, como resulta das ciências naturais.

Dessas premissas teoréticas decorrem necessariamente as concepções morais hedonistas e utilitárias, que florescem no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou menos, também os sistemas político-econômico-sociais, florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo. Na democracia moderna - que é a concepção política, em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a vontade popular se manifesta através do número, da quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio universal). O liberalismo, que sustenta a liberdade completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade alheia - sustenta também a livre concorrência econômica através da lida mecânica, do conflito material das forças econômicas. Para o socialismo, enfim, o centro da vida humana está na atividade econômica, produtora de bens materiais, e a história da humanidade é acionada por interesses materiais, utilitários, econômicos (materialismo histórico), e não por interesses espirituais, morais e religiosos.

O positivismo do século XIX pode semelhar ao empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculos XVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração (a Inglaterra) e porquanto reduz, substancialmente, o conhecimento humano ao conhecimento sensível, a metafísica à ciência, o espírito à natureza, com as relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém, desses sistemas por um elemento característico: o conceito de vir-a-ser, de evolução, considerada como lei fundamental dos fenômenos empíricos, isto é, de todos os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa um equivalente naturalista do historicismo romântico da primeira metade do século XIX, com esta diferença, entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como desenvolvimento racional, teológico, ao passo que o positivismo o concebe como evolução, por causas. Através de um conflito mecânico de seres e de forças, mediante a luta pela existência, determina-se uma seleção natural, uma eliminação do organismo mais imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o positismo firmemente no progresso - como nele já acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso concebido naturalisticamente, quer nos meios quer no fim, para o bem-estar material.

Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito do positivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é a realidade física, o que se pode atingir cientificamente. Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito e valores espirituais. No entanto, atinge a ciência fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a ciência positivista é pura ciência, ou não implica uma metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente, discutível pelo menos tanto quanto a metafísica espiritualista? Nos fins do século passado e nos princípios deste século se determina uma crise interior da ciência mecaniscista, ideal e ídolo do positivismo, para dar lugar a outras interpretações do mundo natural no âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e uma crítica da ciência por parte dos mesmos cientistas, que será uma revisão e uma crítica do positivismo.

Nessa crítica e vitória sobre o positivsmo, pode-se distinguir duas fases principais: uma negativa, de crítica à ciência e ao positivismo; outra positiva, de reconstrução filosófica, em relação com exigências mais ou menos metafísicas ou espiritualistas.

 

Vida e Obras

Estudante da Politécnica aos 16 anos, Comte é nomeado em 1832 explicador de análise e de mecânica nessa mesma escola e, depois, em 1837, examinador de vestibular. Ver-se-á retirado desta última função em 1844 e de seu posto de explicador em 1851. Apesar de seus reiterados pedidos, não obterá o desejado cargo de professor da Politécnica, nem mesmo a cátedra de história geral das ciências positivas no Collège de France, que quisera criar em benefício próprio. A obra de Comte guarda estreitas relações com os acontecimentos de sua vida. Dois encontros capitais presidem as duas grandes etapas desta obra. Em 1817, ele conhece H. de Saint-Simon: O Organizador, o Sistema Industrial, e concebe, a partir daí, a criação de uma ciência social e de uma política científica. Já de posse, desde 1826, das grandes linhas de seu sistema, Comte abre em sua casa, rua do Faubourg Montmartre, um Curso de filosofia positiva - rapidamente interrompido por uma depressão nervosa - (que lhe vale ser internado durante algum tempo no serviço de Esquirol). Retoma o ensino em 1829. A publicação do Curso inicia-se em 1830 e se distribui em 6 volumes até 1842. Desde 1831 Comte abrirá, numa sala da prefeitura do 3.° distrito, um curso público e gratuito de astronomia elementar destinado aos "operários de Paris", curso este que ele levaria avante por sete anos consecutivos. Em 1844 publica o prefácio do curso sob o título: Discurso dobre o espírito positivo.

É em outubro de 1844 que se situa o segundo encontro capital que vai marcar uma reviravolta na filosofia de Augusto Comte. Trata-se da irmã de um de seus alunos, Clotilde de Vaux, esposa abandonada de um cobrador de impostos (que fugira para a Bélgica após algumas irregularidades financeiras). Na primavera de 1845, nosso filósofo de 47 anos declara a esta mulher de 30 seu amor fervoroso. "Eu a considero como minha única e verdadeira esposa não apenas futura, mas atual e eterna". Clotilde oferece-lhe sua amizade. É o "ano sem par" que termina com a morte de Clotilde a 6 de abril de 1846. Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-se corajosamente ao trabalho. Entre 1851 e 1854 aparecem os enormes volumes do Sistema de política positiva ou Tratado de sociologia que intitui a religião da humanidade. O último volume sobre o Futuro humano prevê uma reformulação total da obra sob o título de Síntese Subjetiva. Desde 1847 Comte proclamou-se grande sacerdote da Religião da Humanidade. Institui o "Calendário positivista" (cujos santos são os grandes pensadores da história), forja divisas "Ordem e Progresso", "Viver para o próximo"; "O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim", funda numerosas igrejas positivistas (ainda existem algumas como exemplo no Brasil). Ele morre em 1857 após ter anunciado que "antes do ano de 1860" pregaria "o positivismo em Notre-Dame como a única religião real e completas".

Comte partiu de uma crítica científica da teologia para terminar como profeta. Compreende-se que alguns tenham contestado a unidade de sua doutrina, notadamente seu discípulo Littré, que em 1851 abandona a sociedade positivista. Littré - autor do célebre Dicionário, divulgador do positivismo nos artigos do Nacional - aceita o que ele chama a primeira filosofia de Augusto Comte e vê na segunda uma espécie de delírio político-religioso, inspirado pelo amor platônico do filósofo por Clotilde.

Todavia, mesmo se o encontro com Clotilde deu à obra do filósofo um novo tom, é certo que Comte, já antes do Curso de filosofia positiva (e principalmente em seu "opúsculo fundamental" de 1822), sempre pensou que a filosofia positivista deveria terminar finalmente em aplicações políticas e nas fundação de uma nova religião. Littré podia sem dúvida, em nome de suas próprias concepções, "separar Comte dele mesmo". Mas o historiador, que não deve considerar a obra com um julgamento pessoal, pode considerar-se autorizado a afirmar a unidade essencial e profunda da doutrina de Comte.(¹)

(¹) Comte, afirmando vigorosamente a unidade de seu sistema, reconhece que houve duas carreiras em sua vida. Na primeira, diz ele sem falsa modéstia, ele foi Aristóteles e na segunda será São Paulo.

 

A Lei dos Três Estados

A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para Comte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da inteligência humana que comanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa que nós não podemos conhecer o espírito humano senão através de obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos e das ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O espírito não poderia conhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto estudado e porque pode descobrir-se apenas através das obras da cultura e particularmente através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida interior, é a atividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a filosofia comtista da história é "uma filosofia da história do espírito através das ciências".

O espírito humano, em seu esforço para explicar o universo, passa sucessivamente por três estados:

a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este estado evolui do fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.

b) O estado metafísico substitui os deuses por princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela "virtude dinâmica"do ar (²). Este estado é no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazio exatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza. A explicação dita teológica ou metafísica é uma explicação ingenuamente psicológica. A explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo histórica como crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são "metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicos anteriores, mas sem conteúdo real.

c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa expeirência interior do querer para a natureza) é por ele substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos se passam, em descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o conhecimento das leis positivas da natureza nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o fenômeno que se seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde previsão, previsão donde ação").

Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três estados não é somente verdadeira para a história da nossa espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma concepção "positivista" das coisas.

 (²) São igualmente metafísicas as tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípio vital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da noção de "alma".

  

A Classificação das Ciências

As ciências, no decurso da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa certa ordem de sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas, astronomia, física, química, biologia, sociologia.

Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto e de uma proximidade crescente em relação ao homem.

Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição das ciências positivas. As matemáticas (que com os pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se, entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás, para Comte, antes um instrumento de todas as ciências do que uma ciência particular). A astronomia descobre bem cedo suas primeiras leis positivas, a física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. A oportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar o edifício científico criando a sociologia.

As ciências mais complexas e mais concretas dependem das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências dependem uns dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da vida, como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido, como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciência supõem que já sejam conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso ser matemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e química. Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las a estas últimas. Os fenômenos psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não é uma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da classificação introduz um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe ao materialismo que é "a explicação do superior pelo inferior".

Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.

 

A Humanidade

A última das ciências que Comte chamara primeiramente física social, e para a qual depois inventou o nome de sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o positivismo religioso, a história do conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e sobretudo, é a criação da sociologia que, permitindo aquilo que Kant denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o que é, para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.

Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a "humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz excelentemente Gouhier - em sua admirável introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O nascimento da sociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia ou o da física: ele representa o fato de que não mais existe no universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cada ciência depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua especialização própria se confunde, pois - diferentemente do que se passa para os outros sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao próprio filósofo, "especialista em generalidades", que envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas do conhecimento. Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como interpretação totalizante da história e, por isto, identificação com a sociologia, a ciência última que supõe todas as outras, a ciência da humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do "universal concreto".

O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é necessário compreender que a humanidade não se reduz a uma espécie biológica: há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz a originalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é um animal que tem uma história". As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é apenas a sucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a essência social dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente o homem tem uma história porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas, instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que elas receberam. As duas idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam. Como diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do arado trabalha, invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais de mortos que de vivos".

Comte distingue a sociologia estática da sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda a vida social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições sempre são necessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que permite ao homem produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas, isto é, fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família (educadora insubstituível para o sentimento de solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que permite a comunicação entre os indivíduos e, sob a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como a propriedade cria um capital material).

A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na ordem intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de egoísmo ao de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmo universal, "planetário". A sociedade positiva terá, exatametne como a sociedade cristã da Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os banqueiros) e seu pdoer espiritual (³) (os sábios, principalemtne os sociólogos, que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto é, o próprio Augusto Comte).

Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas positivas, transforma-se-á na política que guiará as outras ciências, "regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que concorreram para sua própria formação". Assim é que, em nome da "humanidade", a sociologia regerá todas as ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, o astrônomo deve estudar somente o Sol e a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter uma influência sobre a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta "síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram no positivismo uma apologia do espírito científico!

A religião positiva substitui o Deus das religiões reveladas pela própria humanidade, considerada como Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte (esta sobrevivência na veneração de nossa memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade - podem, por isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o "Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois, transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem da crenças anteriores. Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média. Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos tanto nos pensadores "de direita" como nos "de esquerda".

(³) Comte rejeita como metafísica a doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há liberdade de consciência em astronomia", assim uma política verdadeiramente científica pode impor suas conclusões. Aqueles que não compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será o equivalente da fé na religião positivista).

 

Albert Einstein (1879-1955)

 

  6.             CÍRCULO DE VIENA

 

Maritz Schlick (1882-1936)

Hans Reichenbach (1891-1953)

Rudolf Carnap (1891-1970)

Kurt Godel (1906-1978)

 

  7.             FILOSOFIA DA LINGUAGEM

 

Bertrand Russell (1872-1970)

Ludwig Wittgenstein (1889-1951)

 

  8.            FILOSOFIA DA MENTE

 

Alan Turing (1912-1954)

Daniel Dennett (1942-presente)

  

  9.             A TEORIA DO CONHECIMENTO

 

É necessário antes de tudo, esclarecer a relação entre Teoria do Conhecimento e Gnosiologia, a fim se de evitar equívocos e esclarecer o que seja cada uma. Deve-se ressaltar que gnosiologia não é exatamente a mesma coisa que a chamada Teoria do Conhecimento, embora às vezes possamos encontrar esta identificação em alguns livros de filosofia.

A gnosiologia, também chamada por vezes de gnoseologia, ou Filosofia do Conhecimento, estuda a capacidade humana de conhecer. A raiz filológica do termo vem das palavras gregas gnosiV (conhecimento) e logia (verbo, palavra, discurso).

Desde a filosofia clássica a gnosiologia constituía uma parte da metafísica, juntamente com a ontologia e a teodicéia. Numa visão de filosofia sistemática mais lógica, podemos classificar a gnosiologia como uma das partes principais da filosofia, como filosofia intelectual, ao lado da ontologia (filosofia existencial) e da deontologia (filosofia comportamental). Assim temos uma divisão da filosofia em três grandes partes: (ver divisão mais lógica da filosofia)

  • Ontologia – Filosofia Existencial

  • Gnosiologia – Filosofia Intelectual

  • Deontologia – Filosofia Comportamental

E assim como a filosofia divide-se em partes fundamentais, também a gnosiologia divide-se em Lógica, Crítica e Epistemologia.

  • Lógica – filosofia da forma e método do conhecimento

  • Crítica – filosofia da possibilidade, origem, essência e valor do conhecimento.

  • Epistemologia – filosofia da ciência e conhecimento científico

Como se pode constatar, aquilo que se estuda nos cursos de graduação em filosofia com o nome de Teoria do Conhecimento corresponde mais exatamente à chamada Crítica, estando separada da Lógica e Filosofia da Ciência, como disciplina autônoma.

A Teoria do Conhecimento tem por objetivo buscar a origem, a natureza, o valor e os limites do conhecimento, da faculdade de conhecer. Às vezes o termo usado ainda como sinônimo de epistemologia, o que não é exato, pois a mesma é mais ampla, abrangendo todo tipo de conhecimento, enquanto que a epistemologia limita-se ao estudo sistemático do conhecimento científico, sendo por isso mesmo chamada de filosofia da ciência.

Os principais problemas da Teoria do Conhecimento

Pode-se fazer uma divisão didática da Teoria do Conhecimento, baseada nos problemas principais enfrentados por ela:

  • A possibilidade do conhecimento

  • A origem do conhecimento

  • A essência do conhecimento

  • As formas do conhecimento

  • O valor do conhecimento (o problema da verdade)

Se há conhecimento humano, existe a verdade, porque esta nada mais é do que a adequação da inteligência com a coisa (segundo a concepção aristotélico-tomista). Com a existência da verdade, há conseqüentemente a existência da certeza, que é passar a inteligência à verdade conhecida. A inteligência humana tende a fixar-se na verdade conhecida. Metodologicamente, há primeiramente o conhecimento, depois a verdade, e finalmente a certeza. Tal tomada de posição perante o primeiro problema da crítica, é chamado de dogmatismo, sendo defendida por filósofos realistas, como por exemplo, Aristóteles e Tomás de Aquino.
Se, ao contrário, se sustentar que a inteligência permanece, em tudo e sempre, sem nada afirmar e sem nada negar, i.é, sem admitir nenhuma verdade e nenhuma certeza, sendo a dúvida universal e permanente o resultado normal da inteligência humana, está se defendendo o ceticismo.
O problema crítico representa um passo além do dogmatismo e do ceticismo. Uma vez que admite-se a existência da verdade (valor do conhecimento), e da certeza, pergunta-se então onde estão as coisas: só na inteligência, como querem Platão, Kant , Hegel (idealismo), só na matéria, como ensina Marx (materialismo), no intelecto humano e na matéria, como dizem Aristóteles, Tomás de Aquino (realismo), ou só na razão, como diz Descartes (racionalismo).
Para o idealismo o ente, i.é, o ente transcendental  compões-se somente de idéias. Para o materialismo, somente matéria. Para o realismo, idéias e matéria. Para o racionalismo, é razão.
Investigando o fundamento de todo o conhecimento, pois critica o conhecimento do ente transcendental, a Crítica é a base necessária de todo o saber científico e filosófico, inclusive da própria Ontologia.

Não existe uma resposta "correta" para esta questão. Diferentes teorias do conhecimento defenderão diferentes respostas para ela (veja neste site: Empirismo e Racionalismo). Se formos tolerantes e admitirmos as diferentes teorias sobre o conhecimentos como mutuamente complementares, penso que poderia ser feita a seguinte classificação:

1) Conhecimentos inatos: são conhecimentos que trazemos "imbutidos" na nossa razão. Todo ser racional, independente de qualquer experiência sensível com o mundo, tem de ter esta forma de conhecimento desce seu nascimento (por isto inato). A esta pertencem as leis da lógica e matemática. Também são chamados de conhecimentos a priori (independentes da experiência).

2) Conhecimentos empíricos: são conhecimentos que adquirimos através dos nossos sentidos empíricos (visão, audição, etc.), ou seja, a cor do céu, da casa do vizinho, por exemplo. Todos os conhecimentos que ganhamos através de deduções indutivas (veja indução neste site) também pertenceriam a esta forma de conhecimento. Que corvos são negros eu sei porque ví (empiria) vários corvos até hoje, e todos eram pretos. São os conhecimentos a posteriori (ganhos através da experiência).

3) Conhecimentos por autoridade: São conhecimentos que obtemos através da informação mais ou menos segura de outros sujeitos, que estão em condição epistemológica superior a nossa no tocante à informação dada. Que Napoleão era um general francês não é um conhecimento nem inato (ninguém nasceu sabendo isto) nem empírico (nós não vimos Napelão nascendo numa cidade francesa). Como sabemos então que ele era francês? Porque ouvimos isto do nosso professor de história, que por sua vez ficou sabendo do seu professor de história, e assim por diante, numa corrente que só deve terminar com as pessoas imediatamente conhecidas de Napoleão. Também é a posteriori.

4) A quarta forma de conhecimento é a mais especulativa de todas, e por conseguinte, rejeitada pela maioria dos filósofos contemporâneos. Trata-se de conhecimento por revelação divina, experiência religiosa ou mística. Algumas pessoas afirmam "saber" algo que Deus diretamente o revelou (assim por exemplo os escritores da bíblia e livros religiosos)

A EPISTEMOLOGIA

Epistemologia, ramo da filosofia que trata dos problemas que envolvem a teoria do conhecimento. Ocupa-se da definição do saber e dos conceitos correlatos, das fontes, dos critérios, dos tipos de conhecimento possível e do grau de exatidão de cada um, bem como da relação real entre aquele que conhece e o objeto conhecido.
No século V a.C., os sofistas gregos questionaram a possibilidade de haver um conhecimento objetivo e confiável. Por outro lado, Platão defendeu a existência de um mundo de formas ou idéias, invariáveis e invisíveis, sobre as quais seria possível adquirir um conhecimento exato e verdadeiro mediante o raciocínio abstrato das matemáticas e da filosofia. Na mesma linha, Aristóteles afirmava que quase todo conhecimento deriva da experiência, da observação cuidadosa e da estrita adesão às regras da lógica.
Do século XVII ao fim do século XIX, a questão central da epistemologia foi o contraste entre razão e o sentido da percepção como meio para a aquisição do conhecimento. Para os racionalistas, a fonte principal e prova final do conhecimento era o raciocínio dedutivo, baseado em princípios evidentes ou axiomas. Para os empiristas, porém, era a percepção. No início do século XX, os autores fenomenológicos afirmaram que os objetos de conhecimento são os mesmos que os objetos percebidos. Os neo-realistas, por sua vez, sustentaram que temos percepções diretas dos objetos físicos, ou partes dos objetos físicos, em vez dos estados mentais pessoais de cada um. Os realistas críticos adotaram uma posição intermediária, mantendo que, embora se percebam apenas dados sensoriais, como as cores e os sons, estes representam objetos físicos, sobre os quais trazem conhecimento.
Em meados do século XX, surgiram duas escolas de pensamento, ambas com débito para com o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Uma delas, a escola do empirismo ou positivismo lógico, afirma que só existe um tipo de conhecimento: o científico. A última destas escolas de pensamento mais recentes, englobadas no campo da análise lingüística (ver Filosofia analítica), parece romper com a epistemologia tradicional, centrando-se no estudo do modo real pelo qual se utilizam os termos chave da epistemologia - como conhecimento, percepção e probabilidade - visando a formular regras definitivas para seu uso e, assim, evitar confusões verbais.

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