A Balada de Madri


Madri

- Será um prazer. Não se preocupe, eu encontro.

Pousou o telefone levemente no gancho. Todo o quarto estava envolto por uma nuvem de fumaça de cigarro. Ele levantou-se do sofá de dois lugares bege, escuro devido à sujeira de poeira e com uma das molas saltando para fora do estofado, que se encontrava num canto do quarto ao lado de uma banqueta, onde estava o telefone. Rodeou a cama e abaixou-se, puxando uma maleta preta debaixo dela. Maleta que era a única coisa que brilhava naquele escuro quarto. As paredes haviam sido encobertas por uma grossa poeira, formando marcas inteligíveis. Uma lâmpada fraca iluminava aquele aposento do apartamento, que tinha uma porta em direção ao minúsculo banheiro e à cozinha, quase tão pequena quanto, e outra porta de saída.

Miguel Carrère colocou a maleta em cima de uma penteadeira que tinha sobre si um espelho partido pela metade, uma rosa murcha, e um porta-retratos. Fixou o olhar na foto, e se foi a abrir a janela, espalhando um pouco da fumaça. Observou os prédios ao lado, fechou uma pesada cortina azul marinho e voltou sua atenção novamente para a maleta. Ao abri-la, um sorriso tênue percorreu seus lábios. Acendeu outro cigarro, o quinto do terceiro maço do dia, e tirou a H&K SGM-90¹ da caixa. Pegou uma flanela, lustrou as armas calmamente e depois as carregou. Só então fitou novamente a fotografia, que tinha a imagem de um maestro de fraque e cabelos grisalhos, com um grande e viçoso cavanhaque, e começou a conversar com ela:

- Pai, novamente irei cumprir minha promessa. Eu vou matar a todos, todos eles. Sabe, eu lembro do dia que você voltou da apresentação para os homens da gravadora. Eu não entendia como eles não gostaram de sua música e você disse sobre os zumbis. Malditos zumbis! Eles estão por toda parte, por todos os lados, quase todo mundo está virando zumbi. Mas eu não vou deixar, vou matá-los todos, todos, todos.

Foi até uma vitrola antiga e colocou um disco no volume mais alto que conseguiu. Uma música orquestrada invadiu as caixas de som.

- Sua bela obra-prima, pai: A Balada de Madri.

Miguel começou a cantar, acompanhando as notas enquanto rodopiava pelo quarto, mirando com o fuzil empunhado.

 

O NOVO ALVORECER
A Balada de Madri

Juan e Enrique fizeram uma viagem tranqüila. O garoto ainda apresentava sinais de cansaço, e dormiu o vôo inteiro. Enrique preferia assim, pois ele não faria nenhuma pergunta inoportuna, perto de tantas pessoas. Chegaram em torno das 18:00h no aeroporto de Madri e pegaram um táxi. Não tiveram tempo sequer de olhar para uma tv que já divulgava amplamente que a cidade de Santa Cecília passava por um período conturbado: depois das três trágicas mortes e do estranho acidente nos armazéns da cidade, agora o detetive responsável pelas investigações encontra-se morto numa estranha batida em que dois veículos capotaram e pegaram fogo logo após. O corpo do policial fora encontrado carbonizado e foi parcialmente reconhecido devido ao carro e aos pertences no local do acidente, porém ainda aguardava-se a perícia e a necropsia. Mas os fatos estranhos não paravam por aí, enfatizava o jornalista, levando-se em conta que o condutor do outro carro estava desaparecido. A polícia continua procurando por pistas tendo como principal hipótese que ele havia escapado do acidente e fugido do local.

Enrique estava empolgado com o passeio que agora faziam. Pedira ao taxista que os deixasse na praça "Puerta Del Sol" e agora caminhavam por ela. Viram a estátua de El Rey Carlos III e depois pararam em frente a uma fonte. Esta era circular e tinha um chafariz que espichava água e era rodeado por lindas flores vermelhas. Juan observou a fonte e depois percebeu que Enrique tinha os olhos perdidos, como se uma lembrança triste o invadisse. Nesse momento sentiu um aperto em seu peito e uma ânsia. Por mais que tentasse, não conseguia afastar Anne de seus pensamentos. A imagem dela agonizando em sua frente, depois sua pele gélida no necrotério, a face serena que repousava em um sono sem volta. Tantos momentos bons, perdidos no vazio de uma escuridão latente em suas essências. Um vazio imenso cravado em sua alma, ou o que sobrara dela, pois parte havia morrido com Anne. Em todo seu íntimo desejava abrir os olhos, e olhar para a água a sua frente - ela está agitada, a queda do chafariz faz com que ela se movimente, revolta. Juan ouve as pessoas que passeiam, mas concentra-se em passos que se dirigem para ele. Sente duas mãos leves pousarem em seus ombros. Um doce e inebriante perfume acaricia-o, enquanto aquele corpo roda e abraça o seu, e sente seus lábios se unindo. Anne. Ficaria assim para sempre. Nada mais, nenhum desejo, nenhuma vontade, somente os dois, para sempre.

Abriu os olhos e novamente viu a fonte. De seus olhos brotavam lágrimas tristes, doloridas. Enrique tocou gentilmente nas costas de Juan, ensaiou um sorriso e disse que ele era um garoto de sorte, pois Enrique o levaria até a Chocolatería de San Ginés e lhe pagaria um dos famosos churros de chocolate de lá. Juan tentou retribuir o sorriso e deixou-se conduzir.

Eles provaram daquela iguaria e depois seguiram pela Calle Mayor. Juan havia espairecido um pouco e agora Enrique falava animadamente sobre a cidade. Contava-lhe que houveram muitas batalhas pela sua conquista entre cristãos e mouros, até 1083, quando o rei Alfonso VI finalmente reconquistou Madri. Mas, por muito tempo, aquela fora uma vila quase sem importância, até que em 1561 o rei Felipe II estabeleceu ali a corte real, e a cidade se expandiu e se tornou a capital da Espanha. Enrique começou a falar-lhe sobre a invasão de Napoleão em 02 de Maio de 1808, mas essa história Juan já conhecia de suas aulas de história no colégio:

- No centro da cidade - continuou Enrique - havia uma fortificação construída pelos mouros, chamada Mayrit. Apesar de, após a conquista, o rei mandar destruir todas as construções árabes, o nome permaneceu e foi-se adaptando até chegar a Madri. E esse nome continua até hoje.

A dupla seguiu passeando e conhecendo a cidade até chegarem à Plaza Major, uma praça retangular cercada por belíssimas construções de três andares, mais o térreo e o sótão, que juntos formavam a belíssima arquitetura do lugar. A Plaza fora inaugurada em 1620 mas, após três incêndios, só ficaria pronta definitivamente em 1853, quando seus quatro lados foram unidos, tendo desde então sido palco de execuções públicas, cerimônias de coroação, festas da realeza, touradas, autos de fé, paradas militares e tribunais da Santa Inquisição.

Juan estava boquiaberto. Já havia visto aquele lugar por fotos mas, àquela hora da noite, uma movimentação de gente tomava a praça e as luzes dos bares espalhavam um desenho maravilhoso naquele quadrilátero fantástico. A maioria das muitas janelas que rodeavam o local tinham sacadas que se voltavam direto para o centro da praça, onde artistas e vendedores se somavam às pessoas que passeavam e distribuíam-se entre bares, cafés e lanchonetes. Juan olhou para uma estátua, uma figura montada num cavalo, e dirigiu-se para Enrique num tom de indagação. Enrique fez uma reverência à estátua e, com um sorriso, respondeu:

- Vossa Majestade, Felipe III. O rei que inaugurou esse primoroso recanto.

Ambos estavam embebedados pela euforia contida que aquele lugar espargia e que contagiava a todos que ali se achegavam. Uma festa para os olhos e para a alma. Foram até um dos desenhistas da Plaza e Enrique pediu-lhe que desenhasse seu retrato. Juan deslumbrava-se com as mãos hábeis e rápidas do rapaz que desenhava a figura em preto, fazendo traços finos de nanquim com uma caneta bico-de-pena e preenchendo o vazio da folha branca com a expressão zombeteira de Enrique, que esforçava-se em permanecer parado e servir de bom modelo. Quando o artista terminou, Enrique pagou-o enquanto apreciava o desenho:

- Tem uma grande sorte em poder me desenhar. Conheço centenas de artistas que pagariam fortunas pela honra de uma pincelada de meu rosto. E mulheres que pagariam dezenas de vezes mais só para ter minha foto! - Enrique soltou uma gargalhada, rindo do próprio gracejo, que também fez o rapaz rir.

- Tem a virilidade da Monalisa! - Juan analisou, desdenhando e caçoando da figura - As mulheres pagariam para poder rasgar sua cara feia.

Mais risadas foram ouvidas. Os três se despediram. Enrique e Juan andaram mais um pouco, visitando as barracas dos vendedores do lugar, e depois foram até um dos barzinhos. Era um lugar aconchegante e os dois escolheram uma das mesas ao ar livre, que tinham guarda-sóis, agora fechados, e de onde podiam continuar a vislumbrar o movimento de pessoas. Admitiram que fora ótimo sentar e relaxar as costas, deixando as mochilas imensas repousando no chão, enquanto experimentavam várias copas², vinhos e comiam deliciosos tapas³. Quando Juan começou a ficar levemente ébrio, resultado dos drinques, algumas moças sentaram-se em uma mesa ao lado e Enrique começou a flertar e a fazer piadas, ao que elas se mostraram receptivas. Depois de um tempo, Juan começou a azucriná-lo, dizendo que queria ver a estátua mais de perto. Enrique pagou a conta e colocou novamente a mochila nas costas, mas antes de sair mirou o retrato, que agora se encontrava enrolado em forma de canudo em sua mão, e foi-se até a mesa das garotas. Fez uma mesura e entregou a pintura a uma morena belíssima, que havia lhe dispensado alguns olhares, dizendo que, se levasse o retrato consigo, acabaria por amassá-lo. A morena ficou um pouco ruborizada diante dos risinhos abafados das outras colegas da mesa, mas aceitou o presente com um belo sorriso. Enrique ouviu algo de Juan, fazendo chacota que ele próprio não teria coragem de fazer aquela cena, mas não lhe deu atenção, já que o garoto saiu trotando em direção a estátua, enquanto ele seguia lentamente de longe.

*************

Miguel andava pela rua num passo curto e apressado. Vestia um grande casaco, folgado para seu corpo esguio, e a maleta caía-lhe na mão esquerda. Seus olhos castanhos escuros, quase negros, corriam por todas as direções e volta e meia ele se virava, acompanhando também aqueles que vinham de trás, o que fazia o vento bater mais forte em seu cabelo ralo e calvo na altura da testa. Tinha um bigode fino e cortado cuidadosamente em forma triangular, ao contrário do resto da barba que estava por fazer. A mão direita permanecia no bolso do casaco, segurando um papel que há pouco recebera.

Ele não gostava de encontrar-se com aquele homem. Sentia calafrios. Mas, apesar de tudo, sabia que estava fazendo uma boa ação. Ao sair da sarjeta e atravessar a rua, a chave, que também recebera há pouco, tilintou no bolso de sua calça. Mirava o olhar nas pessoas que passavam. Todos, todos eles, poderiam ser. Malditos. Estão nos infectando. Ou não, não eram. Mas se fossem? Zumbis. Bonecos controlados pelos generais malditos. Párias. Reprimem sentimentos, a arte, a vivência. Miguel sentia as pessoas fixando profundos olhares em direção a ele. Todos sentiam de longe sua aura de pureza e todos os olhos magneticamente voltavam-se para ele. E todos, todos, todos o olhavam demoradamente por todos, todos os lados. Ele podia sentir. Tinha certeza. Sussurravam comentando sobre ele. Quase podia ouvir. Via que todos eles sentiam. Via que todos eles ouviam. Sentia a si mesmo misturando-se com o cheiro odioso daquela cidade. Cidade infectada e mergulhada em todo o tipo de devassidão. E que só ele podia purificar.

Miguel viu a Plaza Major a sua frente. O cheiro podre só aumentava. Tirou as chaves de seu bolso e seguiu adentrando em uma das construções que circundavam a Plaza. Subiu penosamente até a porta, que abriu com um barulho metálico de protesto à chave e depois se fechou com o mesmo ruído. Miguel vislumbrou rapidamente o aposento e foi para a janela, abrindo-a e ficando a admirar na sacada, enquanto acendia um cigarro. Estava próximo ao chão, o aposento ficava no 1º andar. Abaixo dele um bar, com uma grande movimentação, figurava entre os mais agitados da Plaza. Entrou novamente, colocou a maleta em uma mesa e retirou dela seu conteúdo: o rifle e um binóculo. Depois pegou o papel em seu bolso e ficou a decorar a imagem por um tempo, enquanto terminava o cigarro. Ritualmente, Miguel deitou-se na sacada e colocou o rifle a seu lado. Com o binóculo, começou a esquadrinhar lentamente todo aquele antro, com olhos perspicazes e astutos.

Todas, todas aquelas pessoas, aos pouco se infectando e mal percebem. Todos com os olhos vendados, alimentados como cobras criadas. Potencialmente uma ameaça. Mas ele as iria ajudar. Eliminando, destruindo, acabando com todos os zumbis. Malditos.

Miguel continuou observando a praça por alguns minutos até que, de repente, sua nuca se eriçou e ele apertou mais forte o binóculo contra os olhos. Os dois malditos zumbis estavam bem embaixo dele, contagiando o ar ao redor. Miguel largou o binóculo e pegou o rifle, enquanto expirava profundamente. Inspirou e quase imperceptivelmente começou a cantar a música que seu pai deixara para a eternidade. Seu pé direito batia levemente no chão em que ele ainda se encontrava deitado, marcando o ritmo da música. Um dos zumbis correu na frente em direção ao centro da praça. Seria a última vez que correria. Seus olhos se ajeitaram na mira da arma e todo seu corpo se preparou. Todos, todos eles, nunca mais correriam.

*************

Juan sentia-se um pouco aliviado. A semana parecia-lhe ter demorado anos para passar e ele tinha o peso de cada um desses anos forçando-lhe as costas, mas essas últimas horas foram reconfortantes. Parecia que seu coração se afastava e desapertava um pouco seu peito. Mas a tristeza ainda era latejante em si. Mesmo assim gostara da companhia de Enrique. Percebia o quanto ele media as palavras antes de lhe dizer qualquer coisa, e isso deixava Juan absorto em pensamentos dúbios. Estaria Enrique medindo conseqüências para que não dissesse nada que Juan não deveria saber ou simplesmente tentando ser amigável, poupando palavras ásperas? Não tinha certeza de nada. Preferiu limpar todos os pensamentos da mente. Estava curioso para ver a estátua e deixou que isso o ocupasse por inteiro. Havia corrido e deixara Enrique para trás. Aliás, não sabia sequer se ele o havia acompanhado. Voltou-se para procurá-lo.

Ao virar-se, Juan sentiu uma enorme pontada no ombro esquerdo. Sua visão escureceu momentaneamente e ouviu-se soltando um grito agudo, enquanto rodava e caía de costas no chão, sentindo a pancada ao cair sobre a mochila e rodar apoiando no ombro direito. Automaticamente, levou a mão ao ombro e deu-se conta do que havia ocorrido. Um tiro fizera um buraco acima de seu peito. Pelo menos era isso que lhe parecia, enquanto sentia o sangue escorrer.

Enrique havia visto a cena que parecia ocorrer em câmera lenta, enquanto o garoto rodopiava e caía de costas. Só se dera conta do acontecido quando ouviu uma voz feminina gritando "tiro". A partir daí, um efeito dominó ocorreu e em alguns segundos toda a praça encontrava-se em um enorme tumulto. Pessoas corriam de todos os lados, gritando, perdidas e desesperadas. Enrique instintivamente olhou na direção contrária de Juan, procurando o autor do disparo. Não foi difícil, logo deparou-se com uma pessoa levantando-se na sacada do 1º andar e sua arma refletindo as luzes do lugar. Ao ver a figura, soltou a mochila no chão e como um relâmpago correu em direção ao bar que ficava embaixo da sacada. Se não fosse tamanha a algazarra e alguém estivesse prestando atenção, provavelmente ficaria impressionado com a velocidade com que ele correu, pulou sobre a mesa do bar e puxou um dos guarda-sóis que permaneciam fechados. Saltou em outras duas mesas, aproveitou o impulso e, espantosamente, pulou até a sacada, agarrando e se apoiando com a mão esquerda, enquanto a outra permanecia segurando o guarda-sol.

Miguel havia xingado entre dentes quando de repente, no último segundo, aquela criatura maldita virou-se e ele errou o tiro. Para completar seu infortúnio, ou maldito azar, como ele dizia, perceberam rapidamente o que estava acontecendo e uma confusão se generalizou. Os policiais não demorariam a chegar, então empertigou-se para dentro, buscando sua maleta para sair logo de lá. Mas fora obrigado a se virar quando ouviu um barulho que vinha da sacada.

Viu, totalmente atônito, Enrique erguendo-se e endireitando-se enquanto passava o pé direito pela grade, deixando livre a própria mão. Sem pestanejar, nem ao menos para raciocinar, Miguel empunhou a H&K e firmou-se, pronto a atirar. Nesse momento, Enrique abriu o guarda-sol e pulou sobre a grade, equilibrando-se de cócoras nela e escondendo seu corpo inteiro atrás do guarda-sol, fazendo o atirador perder toda a noção de onde disparar. Depois adentrou a sacada e fechou parcialmente o guarda-sol, para que passasse na porta, e deu uma pancada nas mãos de Miguel, fazendo-o soltar a arma. Antes, Enrique recebera um tiro de raspão na altura das costelas, mas ignorou a dor e continuou atacando-o.

Enrique desferiu mais dois golpes, dos quais seu oponente agilmente se esquivou. Quando deu o terceiro soco, aquela hábil figura conseguiu segurar o guarda-sol e chutou-o na parte central, rachando a arma improvisada e fazendo com que Enrique a largasse, devido à força do golpe. Os dois se encararam, agora ambos com as mãos livres, e começaram outra seqüência de golpes.

Juan respirou profundamente algumas vezes e tomou coragem para sentar-se, fazendo o ferimento latejar. Ele praguejou, acompanhando o buraco da bala se fechando, e só então começou a olhar à sua volta. Viu quase imediatamente a mochila de Enrique no chão, e depois foi fácil achar a luta, que a essa altura estava sendo travada na sacada - alguém segurava no pescoço de Enrique e tentava forçá-lo a cair. Juan largou sua mochila próxima à de Enrique e correu para lá, chutando a primeira mesa que viu para servir de plataforma, ajudando-o a subir. Enrique tentava a todo custo apoiar-se para não ser derrubado, até que colocou o pé direito sob o peito de seu atacante e, usando-o como alavanca, afastou-o, livrando-se dos braços em seu pescoço. Depois avançou ferozmente e, com mais dois socos, trouxe a luta outra vez para dentro do apartamento. Seu adversário atacou novamente, mas Enrique bloqueou o soco e fez o braço de Miguel girar, abrindo-lhe a guarda, enquanto cravava-lhe um chute no estômago, fazendo aquele corpo franzino dobrar-se.

Miguel sentira profundamente o último golpe. Tossiu levemente enquanto olhava aquele maldito parado em posição de luta, preparando-se para atacar novamente. Suas mãos correram para dentro da jaqueta e tirou uma pistola automática com silenciador, atirando em Enrique antes que este pudesse esboçar qualquer reação. Ouvia os estampidos surdos e taciturnos, que zuniam saindo de sua arma, enquanto essa fazia pular o corpo morto no chão. Não parou até ouvir um pequeno barulho metálico, indicando que sua munição acabara. Jogou a arma no chão e limpou um pequeno fiapo de sangue que escorria de seu nariz.

- Vai demorar pra um zumbi me vencer. Maldito!

Miguel escutou um grito vindo em sua direção. Juan arqueou seu corpo para a frente e, com os braços cruzados em cima da cabeça, acertou o estômago de Miguel e empurrou-o, fazendo-o bater contra a parede e segurando-o lá. Miguel logo revidou e começou a socar a lateral de Juan, acertando vários golpes na altura dos rins. Como os golpes surtiam pouco efeito, acertou então uma joelhada no rosto de Juan, obrigando-o a sair daquela posição que mantinha-o encurralado. Juan esboçou mais alguns socos mas, mesmo contra parede, aquela estranha figura se esquivou. Quando Juan tentou socar novamente, seu alvo se abaixou e ele golpeou a mão contra a parede, soltando um urro de dor.

Aquele grito foi o suficiente para que o contra-ataque de Miguel começasse. Deu vários golpes, afastando-se da parede e forçando o garoto para o meio do quarto. Quando se encontravam perto da cama, Miguel rodou dando um chute que acertou no peito de seu oponente, que já estava atordoado, fazendo-o tropeçar na cabeceira da cama e cair no chão, batendo a nuca.

Juan estava quase desmaiado, mas o outro não parou de atacar. Levantou-o pelo cabelo e continuou a esmurrar, deixando Juan à beira de perder os sentidos. Parou a mão no ar, pronto para dar o último soco:

- Vá para o inferno, zumbi!

Outro murro foi desferido em direção à face de Juan, mas foi detido no meio do caminho - Enrique se levantara e agora segurava a mão de Miguel. Com uma voz imperiosa, Enrique mandou que soltasse o garoto, sendo prontamente obedecido, enquanto sentia que as mãos do homem começavam a tremer. Miguel engasgou algumas palavras, gaguejou outras e só depois conseguiu dizer, em uma voz baixa e vacilante:

- Como?

Enrique acertou-o, fazendo com que se afastasse de Juan. Miguel, ainda trêmulo, esboçou um soco, mas sentiu seu braço sendo aparado e depois torcido, enquanto seu corpo girava e suas costas sentiam o impacto de seu corpo no chão. Ainda tentou se levantar mas, com um chute de Juan, caiu desmaiado.

*************

Enrique Muñoz queria ter ficado e feito aquela figura falar, mas o bom senso pesara quando ouviram as sirenes dos carros de polícia que se aproximavam. Saíram de lá o mais rápido possível, e deram sorte de suas mochilas ainda estarem no lugar onde as haviam deixado. Mesmo assim, Enrique se foi absorto em formular hipóteses: Por que aquela figura os chamara de zumbis? Por que raios ele tinha tentado matar os dois? Aliás, se fossem pessoas comuns teriam sido realmente mortos. Será que ele sabia o que eram? Mas se soubesse, porque usou armas de fogo e não utilizou nenhum golpe visando o pescoço de ambos? Essas e outras perguntas ainda rodavam na cabeça de Muñoz. O garoto também continuava em silêncio e era desnecessário falar com ele. Só o faria ficar mais confuso. Queria começar logo o Caminho de Santiago. Isso faria bem para os dois.

Dormiram numa pousada pequena e discreta e aguardaram a manhã para que continuassem a viagem.

*************

Miguel acordou, mas não se levantou. Arrastou-se e escorou-se na parede, ficando sentado. Os dois malditos já haviam ido embora e, pela quantidade de barulho que vinha da praça, os ânimos já haviam sido acalmados. Devia ter passado um bom tempo. Seu corpo estava doendo, não tinha vontade de levantar-se, seu orgulho estava ferido e acima de tudo estava confuso: Como?

Ouviu um barulho na porta. Seus músculos se retesaram, mas logo relaxaram quando viu uma figura conhecida. O recém-chegado vestia a mesma roupa de algumas horas atrás: camisa sem botões, calça social e um blazer por cima. Estava todo de preto. A única diferença é que agora vestia luvas que brilhavam bastante. Seus longos cabelos amarrados, também negros, caíam até a metade das costas. Tinha, numa corrente dourada no pescoço, um pingente em forma de cruz. A velha face que lhe causava arrepios continuava impassível.

- Como? Aqueles zumbis, aqueles malditos, eles... - Miguel começou a balbuciar.

O outro agachou-se perto dele e colocou o dedo sobre os próprios lábios, indicando silêncio e confrontando os olhos de Miguel. Levantou-se e apontou uma arma, atirando logo em seguida no meio da testa de Miguel Carrerè. Fez um sinal negativo com a cabeça enquanto remexia nos bolsos do morto. Tirou um papel amassado: uma foto impressa de Juan e Enrique. Guardou-a consigo e saiu do quarto, fechando a porta cuidadosamente e trancando-a com a chave. Olhou ao redor e chutou-a até que a fechadura ficasse destruída. Então saiu calmamente, deixando a porta entreaberta atrás de si.

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Notas explicativas:

1- H&K SGM-90 - Sniper Rifle com calibre de 7.62mm, capacidade para 10 tiros. Pode ter um alcance efetivo de até 900m usando esse calibre.

2- Drinque típico da Espanha.

3- Sanduíche típico da Espanha.

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Agradecimentos:
Aka Draven MacWacko
Thiago Salviatti

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