A Mitologia, o Big Bang para a Filosofia

  

  1.             O QUE É MITO?

 

O pensamento mítico teve início na Grécia, do séc. XXI ao VI a.c.. Nasceu do desejo de dominação do mundo, para afugentar o medo e a insegurança. A verdade do mito não obedece a lógica nem da verdade empírica, nem da verdade científica. É verdade intuída, que não necessita de provas para ser aceita. É portanto uma intuição compreensiva da realidade, é uma forma espontânea do homem situar-se no mundo.

Normalmente, associa-se, erroneamente, o conceito de mito a: mentira, ilusão, ídolo e lenda. O mito não é uma mentira, pois é verdadeiro para quem vive. A narração de determinada história mítica é uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre o qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel.

Como exemplo temos o mito de Pandora, que, enviada aos homens, abre por curiosidade a caixa onde saem todos os males. Pandora consegue fechá-la a tempo de reter a esperança, única forma do homem não sucumbir às dores e aos sofrimentos da vida. Assim, essa narração mítica explica a origem do males, sendo esta a única maneira de compreender tal realidade.

Não podemos afirmar também que o mito é uma ilusão, pois sua história tem uma racionalidade, mesmo que não tenha uma lógica, por trabalhar com a fantasia. Devemos diferenciar mito e ídolo, pois mesmo existindo uma relação entre eles, o mito é muito "maior" que o ídolo ( objeto de paixão, veneração).

Como exemplo temos a história do Super-Homem. Ele representa um ídolo, pois é venerado. Porém, sua história é mítica, devido ao fato de representar todos os momentos de fracassos do ser humano na pele de Clark Kent, e por outro lado, como Super-Homem assume a capacidade de ter sucesso pleno em todas as áreas. Assim, o Super-Homem é um ídolo, porém sua história é mítica, sendo a única forma de representar a incapacidade do pleno sucesso humano, sem frustrações; pois o único que conseguiria tal feito seria um super herói, e já que esse não existe, os seres humanos ficam mais conformados com suas limitações. E "criam" o mito do Super- Homem para poderem "falsamente" confortar-se com sua realidade.

O mito é muito confundido com o conceito de lenda, porém esta não tem compromisso nenhum com a realidade, são meras histórias sobrenaturais, como é o caso da mula sem cabeça e do saci pererê. O mito não é exclusividade de povos primitivos, nem de civilizações nascentes, mas existe em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender a realidade.

O mito hoje

Mas, e quanto aos nossos dias, os mitos são diferentes?

O homem moderno, tanto quanto o antigo, não é só razão, mas também afetividade e emoção. Hoje em dia, os meios de comunicação de massa trabalham em cima dos desejos e anseios que existem na nossa natureza inconsciente e primitiva. O mito recuperado do cotidiano do homem contemporâneo, não se apresenta com a abrangência que se fazia sentir no homem primitivo. Os mitos modernos não abrangem mais a totalidade do real como ocorria nos mitos gregos, romanos ou indígenas. Podemos escolher um mito da sensualidade, outro da maternidade, sem que tenham de ser coerentes entre si. Os super-heróis dos desenhos animados e dos quadrinhos, bem como os personagens de filmes (Rambo e outros), passam a encarnar o Bem e a Justiça, assumindo a nossa proteção imaginária.

A própria ciência pode virar um mito, quando somos levados a acreditar que ela é feita à margem da sociedade e de seus interesses, que mantém total objetividade e que é neutra. A nossa forma de compreensão do mundo dessacraliza o pensamento e a ação (isto é, retira dele o caráter de sobrenaturalidade), fazendo surgir a filosofia, a ciência e a religião.

Como mito e razão habitam o mesmo mundo, o pensamento reflexivo pode rejeitar alguns mitos, principalmente os que vinculam valores destrutivos ou que levam à desumanização da sociedade. Cabe a cada um de nós escolher quais serão nossos modelos de vida.

 

Hesíodo (700 a.C)

Homero (800 a.C)

 

  2.             Mitologia Greco-Romana

 

1. Mito, Rito e Religião

É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito, que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Em outros termos, mito, é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão-somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.

De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra "revelada", o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nível da linguagem, "ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento". "O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa".

O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes, o mito não pode, conseqüentemente, "ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma". Assim, não se há de definir o mito "pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere".

É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia, de mentiras, daí mitomania, mas não é este o sentido que hodiernamente se lhe atribui.

O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos vêem no mito tão-somente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.

Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung, como a conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta.

Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido.

Arquétipo, do grego "arkhétypos", etimologicamente, significa modelo primitivo, idéias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo foi empregado pela primeira vez por Yung. No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois tipos de imagens:

a) imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam a experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese individual;

b) imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não podem ser incorporados à história individual. Correspondem a certos elementos coletivos: são hereditárias.

A palavra textual de Jung ilustra melhor o que expôs: "Os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre a priori.

Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da dispersão por migrações, casos há e muito numerosos em que essas imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente coletivo. Mas, como este não é verbal, quer dizer, não podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego "sýmbolon", do verbo "symbállein", "lançar com", arremessar ao mesmo tempo, "com-jogar". De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de eqüivalência. Assim, para se atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma eqüivalência, uma "con-jugação", uma "re-união", porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato.

Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos princípios. "Traduzem" a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de um encontro.

Na expressão de Goethe, os mitos são as relações permanentes da vida.

Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo, então o que é mitologia?

Se mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela tradição e mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia é o "movimento" desse material: algo de estável e mutável simultaneamente, sujeito, portanto, a transformações. Do ponto de vista etimológico, mitologia é o estufo dos mitos, concebidos como história verdadeira.

Quanto à religião, do latim "religione", a palavra possivelmente se prende ao verbo "religare", ação de ligar.

Religião pode, assim, ser definida como o conjunto das atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido mais estrito, pode-se dizer que a religião para os antigos é a reatualização e a ritualização do mito. O rito possui, "o poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar o mito".

Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, "o sentido de uma ação essencial e primordial através da referência que se estabelece do profano ao sagrado". Em resumo: o rito é a praxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora.

Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram "nas origens", porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. "E o rito pelo qual se exprime (o mito) reatualiza aquilo que é ritualizado: re-criação, queda, redenção". E conhecer a origem das coisas - de um objeto, de um nome, de um animal ou planta - "eqüivale a adquirir sobre as mesmas um poder mágico, graças ao qual é possível dominá-las, multiplicá-las ou reproduzí-las à vontade". Esse retorno às origens, por meio do rito, é de suma importância, porque "voltar às origens é readquirir as forças que jorraram nessas mesmas origens". Não é em vão que na Idade Média muitos cronistas começavam suas histórias com a origem do mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo primordial e as bênçãos que jorraram illo tempore.

Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. É o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: "Um objeto ou um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetição ou participação; tudo que não possui um modelo exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade".

O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em verbo, sem o que ela é apenas lenda, "legenda", o que deve ser lido e não mais proferido.

À idéia de reiteração prende-se a idéia de tempo. O mundo transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas não aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível (pode-se "comemorar" uma data histórica, mas não fazê-la voltar no tempo), o tempo mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano é tempo da vida; o sagrado, o "tempo" da eternidade.

A "consciência mítica", embora rejeitada no mundo moderno, ainda está viva e atuante nas civilizações denominadas primitivas: "O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz as profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática".

 

2. Réia ou Cibele

Saturno, se bem que pai dos três principais deuses, Júpiter, Netuno e Plutão, não teve entre os poetas o título de Pai dos Deuses, talvez devido à crueldade que exerceu sobre os filhos, enquanto que Réia, sua esposa, era chamada a Mãe dos Deuses, a Grande Mãe, e era venerada com esse nome.

Os diferentes nomes com que é designada a mãe de Júpiter exprimiam sem dúvida atribuições diversas da mesma pessoa. Realmente essa deusa, sob qualquer dos seus muitos nomes, é sempre a Terra, mãe comum de todos os seres. Réia ou Cibele, que nas cerimônias dos cultos e crenças religiosas dos povos, parece ter sido o mais honrado. Eis o que se contava de Cibele:

Filha do Céu e da Terra, por conseguinte a própria Terra, Cibele, mulher de Saturno, era chamada a Boa Deusa, a Mãe dos Deuses, por ser mãe de Júpiter, de Juno, de Netuno, de Plutão e da maior parte dos deuses de primeira ordem. Logo depois de nascer, sua mãe expô-la em uma floresta, e os animais ferozes tomaram conta dela e alimentaram-na. Enamorou-se de Atis, jovem e formoso frígio, a quem confiou o cuidado do seu culto, sob a condição de que ele não violaria o seu voto de castidade. Atis esqueceu o juramento desposando a ninfa Sangarida, e Cibele puniu-o matando a rival. Atis ficou profundamente magoado; num acesso de delírio e desgraçado se mutilou; e ia enforcar-se, quando Cibele, com uma compaixão tardia, mudou-o em pinheiro.

O culto de Cibele tornou-se célebre em Frígia, de onde foi levado a Creta. Foi introduzido em Roma na época da segunda guerra púnica. O simulacro da Boa Deusa, uma grande pedra muito tempo conservada em Pessino, foi colocada no templo da Vitória, no monte Palatino. Foi um dos penhores da estabilidade do império, e se instituiu uma festa, com combates simulados, em honra de Cibele. Os seus mistérios, tão dissolutos como os de Baco, eram celebrados com um confuso ruído de oboés e címbalos; os sacrificadores davam uivos.

Sacrificavam-lhe uma porca, pela sua fertilidade, um touro ou uma cabra, e os padres, durante esses sacrifícios, sentados, batiam palmas no chão. O buxo e o pinheiro eram-lhe consagrados; o primeiro por ser a madeira de que se faziam as flautas, instrumentos empregados nas festas, e o segundo por causa do desgraçado Atis a quem Cibele tanto amara. Os seus sacerdotes eram os Cabiros, os Coribantes, os Curetes, os Dáctilos do monte Ida, os Galos, os Semíviros e os Telquinos, quase todos geralmente eunucos, em memória de Atis.

Representava-se Cibele com os traços e o garbo de uma mulher robusta, com uma coroa de carvalho, árvore que havia alimentado os primeiros homens. As torres sobre a sua cabeça representam as cidades que estão sob a sua proteção, e a chave que está em sua mão indica os tesouros que o seio da terra esconde no inverno e oferece no estio. É conduzida num carro tirado por leões. O carro é o símbolo da Terra que se balança e rola no espaço; os leões demonstram que nada, por mais feroz, deixará de ser domado pela ternura maternal, ou por outra, - que não há solo rebelde à indústria fecunda. As suas vestes são matizadas, geralmente verdes, alusão aos ornatos da natureza. O tambor que está a seu lado é o globo terrestre; os címbalos, os gestos violentos dos seus sacerdotes indicam a atividade dos lavradores e o ruído dos instrumentos da agricultura.

Alguns poetas supuseram que Cibele era a filha de Meon e Dindimo, rei e rainha da Frígia. Seu pai, tendo percebido que ela amava Atis, fez que este morresse com suas mulheres, e atirou os seus corpos em um montouro. Cibele ficou inconsolável.

Ops

Ops, o mesmo que Cibele e Réia ou a Terra, é representada como uma venerável matrona que estende a mão direita oferecendo socorro, e que com a esquerda dá pão ao pobre. Era também considerada com a deusa das riquezas. O seu nome quer dizer socorro, auxílio, assistência.

Não há que admirar de ver-se a Terra, tantas vezes personificada sob denominações diferentes. Fonte inesgotável de riquezas, mãe fecunda de todos os bens, ela se oferecia à adoração dos povos sob vários aspectos, conforme o clima e a região; daí, as múltiplas lendas e os seus inumeráveis símbolos.

Tártaro

De etimologia desconhecida, até o momento, é o local mais profundo das entranhas da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades. A distância que separa o Hades do Tártaro é a mesma que existe entre Géia, a Terra, e Úrano, o Céu. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em três compartimentos, Campos Elísios, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham o purgar, Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a sofrer, o Tártaro se tornou o local de suplício permanente dos grandes criminosos, mortais e imortais. Quando Zeus proíbe os Imortais de se imiscuírem nas batalhas entre aqueus e troianos, e ameaça lançar os recalcitrantes nas profundezas do Tártaro, observa-se que este é perfeito sinônimo de Hades, aonde iam ter, para todo o sempre, sem prêmio nem castigo, todas as almas. A divisão do Hades em compartimentos é pós-homérica.

Em Hesíodo a idéia de permanência eterna na outra vida já parece também existir, pelo menos para alguns deuses e mortais: lá foram lançados os Titãs e as almas dos homens da Idade de Bronze. Os Ciclopes tiveram mais sorte: duas vezes lançados no Tártaro, duas vezes de lá foram libertados, o que demonstra que para algumas divindades o Tártaro podia funcionar apenas como prisão temporária, ao menos até Hesíodo. Seja como for, é no Tártaro que as diferentes gerações divinas lançam sucessivamente seus inimigos, como os Ciclopes e depois os Titãs.

Hemera

Hemera, (Heméra), cuja base é o ino-europeu, "claridade". Hemera é a personificação do Dia, concebido como divindade feminina, formando com Éter um par, enquanto Érebo e Nix formam o outro.

Nix

Nix, é a personificação e a deusa da noite, cuja raiz é o indo-europeu - "escuridão". Habita o extremo Oeste, além do país de Atlas. Enquanto Érebo personifica as trevas subterrâneas, inferiores, Nix personifica as trevas superiores, de cima.

Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro puxado por quatro cavalos negros e sempre acompanhada das Queres. À Noite só se podem imolar ovelhas negras. Nix simboliza o tempo das gestações, das germinações e das conspirações, que vão surgir à luz do dia em manifestações de vida. É muito rica em todas as potencialidades de existência, mas entrar na noite é regressar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos, íncubos, súcubos e monstros. Símbolo do inconsciente, é no sono da noite que aquele se libera.

Montes. Montanhas

No grego hesiódico (Úrea), do verbo (óresthai), "elevar-se", personificados como filhos de Géia, são em Hesíodo a "agradável habitação das Ninfas". Por sua altura e por ser um centro, a montanha tem um simbolismo preciso. Na medida em que ela é alta, vertical, aproximando-se do céu, é símbolo de transcendência; enquanto centro de hierofanias (manifestações do sagrado) e de teofanias (manifestações dos deuses), participa do simbolismo da manifestação. Como ponto de encontro entre o céu e a terra, é a residência dos deuses e o termo da ascensão humana. Expressão da estabilidade e da imutabilidade, a montanha, segundo os sumérios, é a massa primordial não diferenciada, o Ovo do mundo. Residência dos deuses, escalar a montanha sagrada é caminhar em direção ao Céu, como meio de se entrar em contato com o divino, e uma espécie de retorno ao Princípio.

Todas as culturas têm sua montanha sagrada. Moisés recebeu as Tábuas da Lei no Monte Sinai; Garizim foi e continua a ser um cume sagrado nas montanhas de Efraim; o sacrifício de Isaac foi sobre a montanha; Elias obtém o milagre da chuva nos píncaros do monte Carmelo; uma das mais belas pregações de Cristo foi o Sermão da Montanha; a transfiguração de Jesus foi sobre uma alta montanha e sua ascensão, sobre o monte das Oliveiras...

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Acrescentemos, apenas, que o monte Olimpo era a morada dos deuses gregos; Dioniso foi criado no monte Nisa e Zeus o foi no Monte Ida. Montesalvat do Graal está situado no meio das ilhas inacessíveis.

Na realidade, Deus está sempre mais perto quando se escala a montanha.

Pontos

Em grego (Póntos), talvez da raiz * pent, ação de caminhar, o sânscrito tem, caminho, e o latim pons, ponte, passarela. Pontos é, pois, a marcha, o caminho, "os caminhos do mar". Personificado, passou a figurar como representação masculina do mar. Não possuindo um mito próprio, aparece apenas nas genealogias teogônicas e cosmogônicas. O mar simboliza a dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele retorna, tornando-se o mesmo, o lugar de nascimentos, transformações e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possíveis realidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida e da indecisão, que se pode concluir bem ou mal. Daí ser o mar simultaneamente a imagem da vida e da morte. Cretenses, gregos e romanos sacrificavam ao mar cavalos e touros, ambos símbolos de fecundidade. Símbolo também de hostilidade ao divino, o mar acabou por ser vencido e dominado por um deus. Segundo as cosmogonias babilônicas, Tiamat (O Mar), após contribuir para dar nascimento aos deuses, foi por um deles vencido. Javé, tinha domínio total sobre o mar e seus monstros, como diz Jó 7,12:  

"Acaso sou eu o mar ou baleia, para me teres encerrado como num cárcere?"

Criação de Deus (GN 1,9-10), o mar tem que lhe estar sujeito      (Jr 31,35). Cristo dá ordens aos ventos e ao mar, e as tempestades se transformam em bonança (Mt 8, 24-27).

João (Ap 21,1) canta o mundo novo, em que o mar não mais existirá.

 

3. Apolo Nascimento de Apolo e Diana

Apolo e Diana são filhos de Júpiter e de Latona, personificação da Noite, divindade poderosa cuja união com Júpiter produziu o Universo. Segundo a tradição, Latona vê-se, em seguida, relegada ao segundo lugar e quase não aparece na mitologia a não ser como vítima de Juno. A Terra, por instigação de Juno, quis impedi-la de achar lugar onde pudesse dar à luz os filhos que trazia no seio. Entretanto, Netuno, vendo que a infeliz deusa não encontrava abrigo onde quer que fosse, comoveu-se e fez sair do mar a ilha de Delos. Sendo essa ilha, a princípio, flutuante, não pertencia à Terra, que assim não pôde nela exercer a sua funesta ação.

Delos, diz o hino homérico, rejubilou-se com o nascimento do deus que atira os seus dardos para longe. Durante nove dias e nove noites, foi Latona dilacerada pelas cruéis dores do parto. Todas as deusas, as mais ilustres, reúnem-se-lhe em torno. Dionéia, Réa, Têmis que persegue os culpados, a gemedora Anfitrite, todas, exceto Juno dos braços de alabastro, que ficou no palácio do formidando Júpiter. Entretanto, somente Ilitia, deusa dos partos, é que ignorava a nova; achava-se sentada no topo do Olimpo, numa nuvem de ouro, retida pelos conselhos de Juno, que sofria um ciúme furioso, porque Latona dos cabelos formosos iria certamente dar à luz um filho poderoso e perfeito.

Então, a fim de levarem Ilitia, as demais deusas enviaram de Delos a ligeira Íris, prometendo-lhe um colar de fios de ouro, com nove cúbitos de comprimento. Recomendam-lhe sobretudo que a advirta, à revelia de Juno, de medo que esta a detenha com as suas palavras. Íris, rápida como os ventos, mal recebe a ordem, parte e cruza o espaço num instante.

Chegada à mansão dos deuses no topo do Olimpo, Íris persuadiu Ilitia, e ambas voam como tímidas pombas. Quando a deusa que preside aos partos chegou a Delos, Latona experimentava as mais vivas dores. Prestes a dar à luz, abraçava uma palmeira e os joelhos apertavam a relva mole. Em breve nasce o deus; todas as deusas dão um grito religioso. Imediatamente, divino Febo, elas te lavam castamente, purificam-te em límpida água e te envolvem num véu branco, tecido delicado, que elas cingem com um cinto de ouro. Latona não aleitou Apolo de gládio resplendente. Têmis, com as suas imortais mãos, oferece-lhe o néctar e a divina ambrósia. Latona alegrou-se enormemente por ter gerado o valoroso filho que empunha um temível arco.

Apolo e Diana nasceram, pois, em Delos, e é por isso que Apolo se chama, freqüentemente, o deus de Delos.

Latona e a Serpente Pitão

Entretanto Juno, não conseguindo perdoar à rival ter sido amada por Júpiter, instigou contra ela um monstruoso dragão, filho da Terra, chamado Delfíneo ou Pitão, que fora incumbido da guarda dos oráculos da Terra, perto da fonte de Castalia. Obedecendo às sugestões de Juno, Pitão perseguia sem cessar a infeliz deusa, que escapava da sua presença apertando entre os braços os filhos. Num vaso antigo, vemo-lo sob a forma de uma longa serpente que ergue a cabeça, desenrolando o corpo, e persegue Latona. A deusa teme, enquanto os filhos, que não percebem o perigo, estendem os bracinhos para o monstro.

Os Camponeses Carianos

Quando Latona, perseguida pela implacável Juno, fugia com os dois filhos ao colo, chegou à Caria. Num dia de intenso calor, deteve-se aniquilada pela sede e pelo cansaço às margens de um tanque do qual não ousava aproximar-se. Mas alguns camponeses ocupados em arrancar caniços impediram-na de beber, expulsando-a brutalmente. A infeliz Latona rogou-lhes, em nome dos filhinhos, que lhe permitissem sorver umas gotas de água, mas eles a ameaçaram se não afastasse quanto antes, e turvaram as águas com os pés e as mãos, a fim de que a lama revolvida aparecesse à tona. A cólera de que Latona se sentiu possuída fez com que se esquecesse da sede, e lembrando-se de que era deusa: "Pois bem, disse-lhes, erguendo as mãos ao céu, ficareis para sempre neste tanque". O efeito seguiu de perto a ameaça, e aqueles desalmados se viram transformados em rãs. Desde então, não cessam de coaxar com voz rouca e de chafurdar na lama. Alguns lobos, mais humanos que os camponeses, conduziram-na às margens do Xanto, e Latona pôde fazer as suas abluções nesse rio, que foi consagrado a Apolo. Rubens, no museu de Munich e Albane no Louvre possuem quadros em que vemos Latona e os filhos na presença dos camponeses de Caria, que a repelem e se transformam em rãs. Na fonte de Latona, em Versalhes, Balthazar Marsy representou a deusa, com os dois meninos, implorando a vingança do céu contra os insultos dos camponeses. Cá e lá, rãs, lagartos, tartarugas, camponeses e camponesas cuja metamorfose se inicia, lançam contra Latona jatos de água que se cruzam em todos os sentidos.

O Tipo de Apolo

Esplendente é o epíteto que se dá a Apolo, considerado deus solar. Apolo atira ao longe as suas setas, porque o sol dardeja ao longe os seus raios. É o deus profeta, porque o sol ilumina na sua frente e vê, por conseguinte, o que vai suceder; é o condutor das Musas e o deus da inspiração, porque o sol preside às harmonias da natureza; é o deus da medicina, porque o sol cura os doentes com o seu benéfico calor.

Apolo, o Sol, o mais belo dos poderes celestes, o vencedor das trevas e das forças maléficas, tem sido representado pela arte sob vários aspectos. Nos tempos primitivos, um pilar cônico, colocado nas grandes estradas, bastava para lembrar o poder tutelar do deus. Quando nele se pendem as armas, é o deus vingador que premia e castiga; quando nele se pendura uma cítara, torna-se o deus cujos harmoniosos acordes devolvem a calma à alma agitada.

O Apolo de Amicleu, reproduzido em medalhas, pode dar uma idéia do que eram, na época arcaica, as primeiras imagens do deus, sensivelmente afastadas do tipo que a arte adotou mais tarde. Em bronzes de data menos antiga, mas ainda anteriores à grande época. Apolo está representado com formas mais vigorosas do que elegantes, e os anéis achatados da sua cabeleira o aproximam um pouco das figuras de Mercúrio.

No tipo que tem dominado, Apolo usa cabelos longuíssimos, separados por uma risca no meio da cabeça e afastados de cada lado da testa. Às vezes, eles se prendem atrás, na nuca, mas, outras, flutuam. Vários bustos e moedas nos mostram tais diferentes aspectos.

Apolo é sempre representado jovem e emberbe, porque o sol não envelhece. Algumas das suas estátuas o mostram até com os caracteres da adolescência, por exemplo o Apollino de Florença. No Apolo Sauróctone, o jovem deus está acompanhado de um lagarto, que ele sem dúvida acaba de excitar com a flecha para o arrancar ao torpor e obrigá-lo a caminhar. Apolo, sem caráter, é considerado o sol nascente, ou o sol da primavera, porque a presença do lagarto coincide com os seus primeiros raios.

O grifo é um animal fantástico, que vemos freqüentemente perto da imagem do deus ou atrelado ao seu carro. Tem a cabeça e as asas de águia, com corpo, patas e cauda de leão. Os grifos têm por missão guardar os tesouros que as entranhas da terra ocultam, e é para obter o ouro de que são detentores, que os Arimaspes lutam constantemente contra eles. Os combates constituem o tema de grandíssimo número de representações, principalmente em terracotas ou em vasos. Os Arimaspes são guerreiros fabulosos, que usam vestes análogas às das amazonas.

Delfos, Centro do Mundo

O sol vê antes dos homens porque produz a luz com os seus raios; é por isso que prevê o futuro e pode revelá-lo aos homens. Esse caráter profético é um dos atributos essenciais de Apolo; dá os seus oráculos no templo de Delfos, situado no centro do mundo. Ninguém duvida de tal fato, porque tendo Júpiter soltado duas pombas nas duas extremidades da terra, elas voltaram a encontrar-se justamente no ponto em que está o altar de Apolo. Assim, em vários vasos, vemos Apolo sentado no omphalos (o umbigo da terra), de onde dá os oráculos.

Delfos chama-se também às vezes Pito, do nome da serpente Pitão, que ali foi morta por Apolo.

Apolo, provido de temíveis setas, quis experimentá-las ferindo o perseguidor da sua mãe. Mal o monstro se sente atingido, é presa das mais vivas dores e, respirando com esforço, rola sobre a areia, assobia espantosamente, torce-se em todas as direções, atira-se ao meio da floresta e morre exalando o hálito empestado.

Apolo contentíssimo com o triunfo, exclama: "Que o teu corpo seco apodreça nesta terra fértil; não serás mais o flagelo dos mortais que se nutrem dos frutos da terra fecunda, e eles virão imolar-me aqui magníficas hecatombes; nem Tifeu, nem a odiosa Quimera poderão arrancar-te à morte; a terra e o sol no seu curso celeste farão apodrecer aqui o teu cadáver." (Hino homérico).

Aquecidos pelos raios do sol, o monstro começa a apodrecer. Foi assim que aquela região tomou o nome de Pito: os habitantes deram ao deus o nome de Pítio, porque em tais lugares o sol, os seus raios devoradores, decompôs o terrível monstro.

Segundo as narrações dos poetas, o fato deve ter-se verificado quando Apolo era ainda adolescente, mas o crescimento dos deuses não está submetido às mesmas leis que o dos homens, e quando os escultores representam a vitória de Apolo, mostram o deus com as feições de um jovem que já atingiu a plenitude da força. É o que se nos depara numa das maiores obras-primas da escultura antiga, o Apolo do Belvedere. Essa estátua, de mármore de Luni, foi descoberta no fim do século quinze, perto de Capo d'Anzo, outrora Antium, e, adquirida pelo papa Júlio II, então cardeal em vésperas de ser eleito para o pontificado, mandou ele a colocassem nos jardins do Belvedere.

Todas as fórmulas da admiração foram esgotadas diante do Apolo do Belvedere, e a estátua, desde que se tornou conhecida, não deixou de provocar o entusiasmo dos artistas.

A Disputa do Tripé

Apolo, após matar a serpente Pitão, envolveu o tripé com a pele do monstro que, antes dele, possuía o oráculo. Uma medalha de Crotona nos mostra o tripé entre Apolo e a serpente: o deus dispara a seta contra o inimigo. Foi por ocasião dessa vitória que Apolo institui os jogos pítios.

Uma vivíssima disputa, freqüentemente representada nos baixos-relevos da época arcaica, verificou-se entre Apolo e Hércules em torno do famoso tripé. Hércules consulta Pítia em circunstância na qual esta se recusara a responder. O herói, enfurecido, apoderou-se do tripé, que Apolo resolveu imediatamente reconquistar. Foi tão viva a luta entre os dois combatentes que Júpiter se viu obrigado a intervir mediante o raio.

O tripé de Apolo foi freqüentemente representado na arte antiga, e restam-nos monumentos em que vemos até que ponto se unia o bom gosto à riqueza na escultura ornamental dos antigos.

O Oráculo de Delfos

O oráculo de Apolo, em Delfos, era o mais famoso da Grécia. Foi o acaso que levou ao descobrimento do lugar em que deveria erguer-se o santuário. Umas cabras errantes nos rochedos do Parnaso, aproximando-se de um buraco do qual saíam exalações malignas, foram tomadas de convulsões. Acorrendo à notícia daquele prodígio, os habitantes da vizinhança quiseram respirar as mesmas exalações e experimentar os mesmos efeitos, uma espécie de loucura misto de contorções e brados, e seguida de dom de profecia. Tendo-se alguns frenéticos atirado ao abismo de onde proviam os vapores proféticos, colocou-se sobre o buraco uma máquina chamada tripé, por três pés sobre os quais pousava, e escolheu-se uma mulher para a ele subir e poder, sem risco, receber a embriagadora exalação.

Na origem, a resposta do deus, tal qual a davam os sacerdotes, era sempre formulada em versos; mas tendo tido um filósofo a idéia de perguntar porque o deus da poesia se exprimia em maus versos, a ironia foi repetida por todos, e o deus passou a falar somente em prosa, o que lhe aumentou o prestígio.

A crença de que o futuro pudesse ser predito de maneira certa pelos oráculos, desenvolveu singularmente na antigüidade a idéia da fatalidade, que em nenhuma parte transparece tão nitidamente como na lenda de Édipo; os seus esforços não conseguem livrá-lo à sentença que lhe foi anunciada pelo oráculo, e tudo quanto ele faz para evitar o destino só lhe acelera os inclementes decretos.

 

4. Marte

Tipo e Atributos de Marte

Marte (Ares), deus sangüinário e detestado pelos imortais, nunca teve grande importância entre as populações helênicas. Em numerosas localidades, parece até haver sido inteiramente desconhecido, e se o seu culto conservou na Lacônia importância maior que alhures, deve-se à rudeza dos habitantes de tal país. Foi somente entre os romanos que Marte adquiriu importância verdadeira e permanente; o tipo de Palas conformava-se muito mais ao gênio grego. Com efeito, Palas é a inteligência guerreira, ao passo que Marte nada mais é do que a personificação da carnificina. Ávido de matar, pouco lhe importa saber de que lado está a justiça e cuida apenas de tornar mais furiosa a luta.

O deus da guerra e da violência aparece-nos sempre em atitude de repouso. Tem, por vezes, numa das mãos a Vitória, como Júpiter ou Minerva. Vemo-lo com tal aspecto numa famosa estátua da Villa Albani. Uma linda pedra gravada mostra Marte segurando com uma das mãos a Vitória e com a outra a oliveira, símbolo da paz proporcionada pela vitória.

A maioria das vezes usa um capacete e empunha uma lança ou gládio. Aparece, assim, em várias medalhas, mas as estátuas que o representam isoladamente não são demasiadamente comuns entre os gregos. Entretanto, a bela estátua do Louvre, conhecida pelo nome de Aquiles Borghese passa hoje por ser um Marte. Explica-se o elo que usa num dos pés pelo hábito de certos povos, e notadamente os lacedemônios, de agrilhoarem o deus da guerra.

Parece ter sido o escultor Alcameno de Atenas quem fixou o tipo de Marte, tal qual surge habitualmente nos monumentos artísticos. Os atributos habituais do deus são o lobo, o escudo e a lança com alguns troféus. Uma medalha cunhada na época de Seotímio Severo nos mostra Marte com uma lança, um escudo e uma escada para o ataque. Sob tal aspecto, Marte recebe o epíteto de Teichosipletes (que sacode as muralhas). Em geral, porém, não tem real importância na arte a não ser pela sua ligação com Vênus.

Num célebre quadro da galeria de Florença, Rubens representou Marte, que Vênus e Cupido se esforçam inutilmente por reter, e que, de gládio empunhado, segue a Discórdia precedida do Temor e do Espanto. As Artes chorosas, a Música, a Arquitetura e a Pintura, são pisadas pelo feroz deus: o comércio está destruído e os campos prestes a ser incendiados. Noutro quadro do mesmo pintor, vemos, ao contrário, Marte repelido por Minerva, enquanto a Terra oferece o seio fecundo do qual o leite jorra ao lado de um grupo de crianças que acorrem a ver uma cornucópia que lhes oferece , o deus da agricultura.

Marte na Guerra dos Gigantes

Claudiano descreveu o papel de Marte na guerra dos Gigantes. "O deus impele os seus furiosos corcéis contra a horda formidável e, imprimindo ao gládio um movimento irresistível, o monstruoso Peloro é atingido no ponto em que, por um estranho acoplamento, duas serpentes se lhe unem ao corpo que elas sustentam. Marte vendo-o tombar, faz passar as rodas do carro sobre o inimigo vencido, e o sangue que jorra desse corpo enorme avermelha as montanhas vizinhas.

"Entretanto, Peloro tinha um irmão, o gigante Mimas, que, ocupado em lutar noutra região, viu Peloro cair. Mimas pensa exclusivamente na vingança e, curvando-se para o mar, quer dele arrancar a ilha de Lemnos para atirá-la contra o deus. Marte evita o choque e com um golpe de lança fura a cabeça de Mimas, cujo cérebro se esparrama à direita e à esquerda.

Marte foi menos feliz com outros Gigantes. Fora aprisionado por Oto e Efialtes que o haviam mantido agrilhoado durante treze meses. O escultor Flaxman nos mostra o deus da guerra em posição humilhante. Oto e Efialtes tinham tentado escalar o céu colocando o monte Ossa sobre o Olimpo e o Pélion sobre o Ossa. Diana, para evitar-lhes a perseguição, viu-se obrigada a transformar-se em corça, e estando a fugir precipitadamente, os dois irmãos Gigantes, que vinham um em cada direção, atiraram contra ela, ao mesmo tempo, os seus dardos, e dessa maneira mataram um ao outro. (Apolodoro).

Vênus e Marte

A aliança entre a guerra e o amor, entre a força e a beleza, é uma idéia inteiramente conforme ao espírito grego. Apesar de brutalíssimo, não pôde Marte resistir a Vênus que o subjuga e domina com um sinal: da união de Marte e Vênus nasceu Harmonia. Vários monumentos antigos, notadamente o famoso grupo do museu de Florença e o do museu Capitolino, reproduzem essa ligação que também se vê em pedras gravadas.

Os romanos gostavam de fazer-se representar com suas mulheres, e usando os atributos de Marte e Vênus; era uma alusão à coragem do homem e à beleza da mulher. Aliás, os romanos consideravam Marte e Vênus autores da sua raça, e durante a época imperial, dava-se freqüentemente aos deuses a feição dos imperadores. Assim é que temos no Louvre um grupo, cuja personagem masculina parece ser Adriano ou Marco Aurélio, e que representa Marte ao lado de Vênus. Mas a imperatriz está vestida. Vários arqueólogos pensam que a Vênus de Milo estava ao lado da estátua de Marte. A arte dos últimos séculos ligou igualmente as duas divindades e, num encantador quadro do Louvre, le Poussin nos mostra o deus da guerra, esquecido dos seus atributos e do seu papel, sorrindo para a deusa, enquanto os cupidos brincam tranqüilamente com as armas, no meio de risonha paisagem.

Marte Ferido por Diomedes

Marte, na guerra de Tróia acirrado inimigo dos gregos, foi ferido por Diomedes e deu um grito semelhante ao clamor de dez mil combatentes numa furiosa batalha. Subiu ao Olimpo para dar vazão às suas queixas contra o herói grego e sobretudo contra Minerva que dirigira o golpe. "Tens por tua filha, diz a Júpiter, uma indigna fraqueza, porque tu sozinho foste quem gerou tão funesta divindade. Ei-la agora que excita contra os deuses o insensato furor de Diomedes. Ousado! Em primeiro lugar feriu Vênus na mão, depois atirou-se a mim, e se os meus pés velozes não me houvessem subtraído à sua cólera, lá teria ficado eu estendido sem força aos golpes do ferro."

Júpiter acolhe mal as queixas de Marte: "Divindade inconstante, exclama, cessa de importunar-me com os teus lamentos! De todos os habitantes do Olimpo, tu és o que eu mais odeio, pois só amas a discórdia, a guerra, a carnificina. Tens, sem dúvida, o intratável caráter de tua mãe Juno, que as minhas ordens soberanas mal conseguem domar. Os males que suportas hoje são o fruto dos seus conselhos. Mas não quero que sofras por mais tempo, visto que sou teu pai." O rei dos deuses manda, então, que se cure o filho e um bálsamo salutar lhe acalma as dores, porque os deuses não podem morrer.

Um interessante quadro da mocidade de Davi, que obteve o segundo prêmio em 1771, mostra Diomedes no momento em que acaba de lançar contra Marte o dardo dirigido por Minerva. Marte, ferido, está caído. O quadrinho é valioso, porque nos dá a conhecer Davi numa época em que o jovem artista não pensava absolutamente na reforma que, posteriormente, introduziu na pintura, e em que todo o seu talento estava impregnado do estilo dominante então na escola francesa.

Filomela e Progne

O caráter feroz das lendas concernentes a Marte mais ainda se exagera, quando elas se aplicam a seus filhos. Tivera ele de uma ninfa um filho chamado Tereu, rei da Trácia, que desposou Progne, filha do rei de Atenas Pandião. Tinha este outra filha chamada Filomela. Progne exprimiu ao marido o desejo de rever a irmã da qual se achava separada havia cinco anos. Tereu foi, então, a Atenas procurar Filomela, mas no caminho abusou dela, e, após lhe arrancar a língua para obrigá-la ao silêncio, encerrou-a numa torre. Disse, em seguida, a Progne que sua irmã morrera; mas Filomela, do fundo da masmorra, descobriu um modo de mandar à irmã, num pedaço de tela, a narração das suas aventuras.

Progne, com o auxílio das festas de Baco, conseguiu libertar Filomela, e ocultou-a num canto do palácio. Juntas, meditam clamorosa vingança. Tereu tinha um filho muito moço, chamado Ítis; chamam-no, matam-no, e cozem-lhe os membros que, de noite, Progne oferece ao marido. Tereu pergunta porque o filho não está à mesa, mas só quando termina o repasto é que Filomela, saindo subitamente do esconderijo, lhe anuncia que comeu a carne do próprio filho e, ao mesmo tempo, para que ele não duvide do que lhe afirma, lhe atira ao rosto a cabeça do infeliz rapaz. Tereu, não se contendo, quer levantar-se para estrangular as duas irmãs, mas os deuses, desejosos de pôr cobro a tão horrível família, metamorfoseiam Progne em andorinha, Filomela em rouxinol, Ítis em pintassilgo e Tereu em pomba. A bárbara história ministrou a Rubens tema para um quadro que está na Espanha; vemos Progne e Filomela mostrando a Tereu a cabeça do filho, cuja carne ele acaba de comer.

Os Sacerdotes Sálios

O culto de Marte tinha grande importância em Roma. Era exercido pelos sacerdotes sálios, instituídos por Numa para guardarem os ancilos. Os ancilos tinham sido feitos em Roma sobre o modelo de um escudo caído do céu, durante uma peste que dizimava a cidade, e eram considerados o palácio romano. Durante certas festas os sacerdotes sálios percorriam a cidade levando a passeio os ancilos cuja forma nos foi conservada num denário de prata cunhado sob Augusto. O barrete que está no meio é o ápex do flâmine.

Belona

A companheira habitual de Marte é Belona (Enio), personificação da chacina. Tinha ela por missão especial conduzir o carro do deus da guerra e excitar-lhe os cavalos com a ponta de uma lança. As figuras antigas de Belona são extremamente raras. Plínio narra que Apeles pintara um quadro representando Belona, de mãos atadas atrás das costas e presa ao carro triunfante de Alexandre: o quadro fora levado para Roma como troféu.

A Discórdia

Nos poetas, Belona é escoltada pelo Espanto, pela Fuga e pela Discórdia, divindades às quais a arte não destinou tipo particular. Contudo, tem a Discórdia grande importância na mitologia, pois foi ela que causou a ruína de Tróia, atirando a maça de ouro entre as deusas. Homero faz da Discórdia o retrato seguinte: "Deusa que, fraca no nascimento, cresce e em breve oculta a cabeça no céu, enquanto os pés lhe permanecem na Terra; é ela que, atravessando a multidão dos guerreiros, derrama em todos os corações o ódio fatal, precursor da carnificina. Faz retumbar a voz, dá gritos alucinantes, terríveis, e lança no coração de todos os guerreiros impressionante coragem. Apraz-se em ouvir os gemidos do soldado que morre e, quando todos os deuses se retiram do combate, é a única que permanece no campo de batalha para dar, como pasto aos olhos, o espetáculo dos mortos e dos moribundos."

Etéoclo e Polinice

A Discórdia preside às disputas que dividem os povos e as famílias. A Fábula de Etéoclo e Polinice nos mostra a sua ação. Os dois filhos de Édipo haviam expulsado o pai, que cobriu de maldições e lhes predisse que se matariam um ao outro. Os dois irmãos, temendo que a maldição paterna fosse ratificada pelos deuses, se continuassem a viver juntos, decidiram, de comum acordo, que Polinice seria o primeiro em se exilar voluntariamente da pátria, que deixaria o cetro a Etéoclo, e voltaria depois, para que cada um pudesse reinar, alternadamente, um ano. Mas Etéoclo, uma vez no trono, recusou-se a descer e proibiu ao irmão o regresso à pátria. Polinice, então, tratou de procurar aliados para a defesa dos seus direitos.

Anfiaraus

Adrasto, rei de Argos, acolheu Polinice, e prometeu-lhe repô-lo no trono de Tebas. Buscou, por conseguinte, aliados para empreender a luta, mas um poderoso chefe, Anfiaraus, tratou de dissuadir ambos, por ser adivinho e por lhe haver a ciência mostrado que a guerra seria fatal aos que a começassem, e que todos morreriam, com exceção apenas de Adrasto. Anfiaraus tinha uma mulher chamada Erifila, e por um velho juramento que fizera a Adrasto, comprometera-se, no caso de divergências entre eles, a submeter-se inteiramente à decisão de Erifila. Quando Polinice soube disso, empregou um ardil para forçar Anfiaraus a combater. Tinha em suas mãos o famoso colar que Vênus dera, noutros tempos, à Harmonia, no dia de suas núpcias com Cadmo. Deu-o de presente a Erifila, que, assim, se deixou corromper, e Anfiaraus, apesar da certeza que tinha de mau êxito do negócio, foi obrigado a combater com Adrasto e Polinice.

Um poderoso exército se reuniu em breve para marchar contra Tebas. Comandavam-no sete chefes: Adrasto, Polinice, Capaneu, Partenopeu, Anfiaraus, Hipomedonte e Tideu. Juraram todos que iriam combater sob as suas ordens.

Arquemoro

Durante o caminho, faltou-lhes água, e o exército começou a sofrer devoradora sede. Encontraram, então, uma criatura que tinha um filhinho, e perguntaram-lhe se não havia no país uma fonte. Chamava-se o menino Ofeltes e era filho do rei Neméia. A mulher era Hipsipila, outrora rainha de Lemnos, mas que, tendo sido vendida posteriormente como escrava, estava ao serviço do rei de Neméia, que lhe confiara a tutela do filho. Hipsipila pousou a criança sobre umas folhas de aipo e conduziu os sete chefes a uma fonte das proximidades. Durante a curta ausência, porém, uma serpente envolveu nas espiras a criança abandonada e sufocou-a. Ao regressarem, os chefes apressaram-se em matar a serpente e tomaram aos seus cuidados Hipsipila, para livrá-la da ira do rei de Neméia. Deram à criança o nome de Arquemoro, realizaram-lhe um magnífico funeral e instituíram em sua honra os jogos de Neméia, nos quais os vencedores se cobriam de luto e se coroavam de aipo.

Combate dos Dois Irmãos

Anfiaraus viu naquilo péssimo presságio. Mas era preciso partir, e assim chegaram todos a Tebas. Uma terrível batalha se feriu sob os muros da cidade, que Etéoclo não pretendia entregar. Como o sangue escorresse por toda parte, Etéoclo subiu a uma torre, mandou que se fizesse silêncio, e disse aos exércitos: "Generais da Grécia, chefes dos argivos que a guerra atrai para estes páramos, e vós, povo de Cadmo, não arrisqueis mais a vida nem por Polinice, nem por mim. Quero eu, sozinho, enfrentar o perigo, e desejo lutar contra meu irmão, de homem para homem. Se o matar, governarei sozinho; se for vencido, entregar-lhe-ei a cidade. Vós, portanto, abandonai o combate, voltai para Argos, não venhais mais aqui perder a vida; o povo tebano não deseja outras mortes." (Eurípedes).

Feriu-se, então, entre os dois irmãos um combate singular no qual foram mortos ambos. Os deuses haviam ouvido as derradeiras imprecações de Édipo. Esse combate figura num grandíssimo número de baixos-relevos antigos.

O exército sitiante foi vencido, e todos os chefes pereceram com exceção de Adrasto, que deveu a vida à rapidez do seu cavalo. Assim, realizou-se a profecia de Anfiaraus.

Funerais de Etéoclo e de Polinice

O senado de Tebas, que tomara partido pelos sitiados, decidiu que Etéoclo seria sepultado com honra, mas que seu irmão Polinice seria, em virtude da traição, deixado sem sepultura, para que o devorassem os cães e os abutres. Antígona quis enterrar o irmão, apesar das ordens dadas e, decidida a desobedecer, disse aos chefes do povo: "Pois bem! Eis o que respondo eu aos chefes dos de Cadmos. Se não há quem queira, comigo, enterrá-lo, hei de conseguir sozinha, e assumirei toda a responsabilidade. Não vejo vergonha nenhuma em sepultar meu irmão, nem que para isso devesse, rebelada, ir de encontro aos desejos da cidade. É coisa grave termos caído das mesmas entranhas, termos tido a mesma mãe, uma infeliz, o mesmo pai, outro infeliz. Sim, deliberadamente, hei de continuar irmã deste morto. Ah, não se fartarão da sua carne os lobos de ventre faminto. Hei de sozinha, apesar de mulher, incumbir-me de remover a terra e preparar uma cova. Trarei o pó nas dobras desta tela, e eu própria a recobrirei com ele o cadáver. Ninguém objetará! Terei essa coragem, e, o que é mais, terei ao meu lado todos os recursos de uma alma que quer conseguir." (Ésquilo).

Pausânias, na narração das suas viagens, diz que viu o túmulo dos filhos de Édipo. "Não assisti aos sacrifícios que ali se realizam, mas pessoas dignas de fé me asseguraram que nas ocasiões em que se assam as vítimas imoladas aos dois irmãos irreconciliáveis, a chama e a fumaça se dividem visivelmente por eles."

Creonte, rei de Tebas, sabendo que, não obstante a proibição, Antígona sepultara o irmão, pergunta-lhe se conhecia o decreto. A jovem não nega: "Não pensei, responde, que as leis dos mortais tivessem bastante força para superar as leis não escritas, obra imutável dos deuses. Para mim, o traspasse não tem nada de doloroso; mas se tivesse deixado sem sepultura o filho de minha mãe, teria sido infeliz; quanto à morte que me aguarda, em nada me assusta." Creonte, conformando-se à lei, ordenou a morte de Antígona e as suas ordens foram executadas; ao mesmo tempo, porém, soube da morte de seu filho único Hemon, que amava Antígona, e que se ferira mortalmente. Sua mulher morreu também ao saber da morte do filho, e Creonte ficou sozinho com toda a amargura. Assim terminou a família de Laio.

 

5. Vênus (Afrodite) Nascimento de Vênus

Da espuma do mar, fecundada pelo sangue de Urano (o Céu) nasceu uma jovem levada em primeiro lugar para a ilha de Cítera e em seguida a Chipre. Deusa encantadora, não tardou percorrer a costa, e as flores nasciam sob os seus pés delicados. Chama-se Afrodite (Vênus), ou Citeréia, do nome da ilha a que aportou, ou ainda Cipris, do nome da ilha em que é honrada. Pelo menos, é essa a tradição mais difundida, pois algumas lendas diferentes vieram confundir-se em Vênus que, às vezes, surge como filha de Júpiter e de Dionéia. É também a que devemos adotar, pois os artistas que representaram o nascimento de Vênus mostram sempre a deusa no momento em que sai das vagas.

Nas pinturas antigas, Vênus é freqüentemente representada deitada sobre uma simples concha; nas moedas, vemo-la num carro puxado pelos Tritões e pelas Tritônidas. Finalmente, numerosos baixos-relevos no-la apresentam seguida de hipocampos ou centauros marinhos. No século dezoito, os pintores franceses, e notadamente Boucher, viram no nascimento de Vênus um tema infinitamente gracioso e útil à decoração. Uma multidão de pequenos cupidos paira nos ares ou escolta a deusa. Aliás, os pintores franceses seguiram, nesse ponto, as tradições bebidas da Itália.

Conformando-se à narração dos poetas, Albane colocou a deusa num carro puxado por cavalos marinhos. Assim é que ela vai ter a Cítera, onde a aguarda Peitho (a Persuasão), que, na margem, estende os braços à jovem viajante. Cupido está sentado perto do mar; as Nereidas e os Amores montados em delfins formam o cortejo da deusa. Alegres Amores festejam a chegada de Vênus, e outros esvoaçam no ar semeando flores na passagem.

Num quadro dotado de grande frescor e brilho, que faz parte do museu de Viena, Rubens pintou a festa de Vênus em Cítera. Ninfas, sátiros e faunos dançam em torno da sua estátua, enquanto os Amores entrelaçam guirlandas de flores e enchem os ares de alegres cadências. Ao fundo, mostrou o pintor o templo da deusa.

O atavio de Vênus é um tema que a arte e a poesia fixaram bem. Enquanto as Horas estavam incumbidas da educação da deusa, as Graças presidiam aos cuidados do seu atavio. Uma multidão de quadros reproduziu tão encantadora cena, e os pintores não deixaram de acrescentar todos os pormenores que lhes sugeriu a imaginação. Quando Boucher faleceu, tinha sobre o cavalete um quadro representando o atavio de Vênus. Prudhon pintou Vênus estendida num leito antigo e servida pelos Amores que lhe perfumam os cabelos, lhe estendem um espelho, queimam perfumes em tôrno da deusa, trazem-lhe jóias e lhe entrelaçam guirlandas de flores. Rubens também faz intervir Cupido que segura um espelho no qual a mãe se fita; infelizmente, é uma velha que lhe arranja os cabelos. A velhice lenta e enrugada jamais deve aproximar-se de Vênus.

Albane, que está longe de ser artista de primeira ordem, é, no entanto, o que mais lembra, pela natureza de suas composições, as graciosas ficções da antigüidade sobre Vênus. O Atavio de Vênus, quadro que infelizmente escureceu, é talvez, a sua obra-prima como concepção mitológica. Num terraço, à beira-mar, Vênus contempla-se num espelho que o Cupido lhe apresenta, enquanto as Graças lhe perfumam a linda cabeleira, e lhe arranjam os atavios. Diante dela está uma fonte onde o Amor faz que matem a sede duas pombas. Um palácio aéreo, como convém a Vênus, aparece no fundo de um tanque, ao passo que, nas nuvens, Amores alados atrelam cisnes brancos ao carro de ouro que vai conduzir o passeio a deusa, e enchem os ares dos seus melodiosos concertos.

Tipo e Atributos de Vênus

"O culto sírio de Astarte, diz Ottfried Mueller, parece, encontrando na Grécia alguns inícios indígenas, ter dado nascimento ao culto célebre e difundido por toda parte de Vênus afrodite. A idéia fundamental da grande deusa Natureza, sobre a qual ela repousava, nunca se perdeu inteiramente; o elemento úmido que formava no Oriente o império reservado a essa divindade continuou a ser submetido ao poder de Vênus afrodite nas costas e nos portos em que era venerada; sobretudo o mar, o mar tranqüilo e calmo, refletindo o céu no espelho úmido das suas ondas, parecia, aos olhos dos gregos, uma expressão de sua divinal natureza. Quando a arte, no ciclo de Afrodite, deixou para trás as pedras grosseiras e os ídolos informes do culto primitivo, a idéia de uma deusa cujo poder se estende por toda parte e à qual ninguém pode resistir, animou as suas criações; gostava-se de a representar sentada num trono, segurando nas mãos os sinais simbólicos de uma natureza repleta de mocidade e esplendor, de uma luxuriante abundância; a deusa estava inteiramente envolta nas dobras das suas vestes (a túnica mal lhe deixava à mostra uma parte do seio esquerdo) que se distinguiam pela elegância, pois precisamente nas imagens de Vênus, a graça rebuscada das vestes e dos movimentos parecia pertencer ao caráter da deusa. Nas obras saídas da escola de Fídias, ou produzidas sob a influência dessa escola, a arte representa em Afrodite o princípio feminino e a união dos sexos em toda a sua santidade e grandeza. Vê-se ali, antes, uma união durável formada com o fito do bem geral, e não uma aproximação efêmera que deve terminar com os prazeres sensuais que ele proporciona. A nova arte ática foi a primeira que tratou do tema de Afrodite com um entusiasmo puramente sensual, e que divinizou, nas representações figuradas da deusa, já não mais apenas um poder ao qual o mundo inteiro obedecia, mas antes a individualidade da beleza feminina."

Vênus dá leis ao céu, à terra, às ondas e a todas as criaturas vivas. "Foi ela que deu o germe das plantas e das árvores, foi ela que reuniu nos laços da sociedade os primeiros homens, espíritos ferozes e bárbaros, foi ela que ensinou a cada ser a unir-se a uma companheira. Foi ela que nos proporcionou as inúmeras espécies de aves e a multiplicação dos rebanhos. O carneiro furioso luta, às chifradas, com o carneiro. Mas teme ferir a ovelha. O touro cujos longos mugidos faziam ecoar os vales e os bosques abandona a ferocidade, quando vê a novilha. O mesmo poder sustenta tudo quanto vive sob os amplos mares e povoa as águas de peixes sem conta. Vênus foi a primeira em despojar os homens do aspecto feroz que lhes era peculiar. Dela foi que nos vieram o atavio e o cuidado do próprio corpo." (Ovídio).

Vênus Celeste e Vênus Vulgar

Pausânias, na sua descrição de Tebas, assinala várias estátuas de Vênus, da mais alta antigüidade, pois haviam sido feitas com o lenho dos navios de Cadmo e consagradas pela própria Harmonia. "A primeira, diz ele, é Vênus celeste, a segunda Vênus vulgar, e a terceira é chamada preservadora. Foi a própria Harmonia que lhes impôs tais nomes para distinguir essas três espécies de Amores: um celeste, ou seja, casto, outro vulgar, ou seja, preso ao corpo, o terceiro desordenado, que leva os homens às uniões incestuosas e detestáveis. Era à Vênus preservadora que se dirigiam as preces para a preservação dos desejos culposos." (Pausânias).

Temos interessante exemplo desse último aspecto de Vênus, numa decisão do senado romano, o qual, segundo os livros sibilinos consultados pelos decênviros, ordenara a dedicação de uma estátua de Vênus vesticordia (convertedora), como meio de reconduzir as moças devassas ao pudor do sexo. (Valério Máximo).

A tartaruga, emblema da castidade das mulheres, era consagrada a Vênus celeste, e o bode, símbolo contrário, consagrado à Vênus vulgar. As imagens da deusa, que se encontravam em todas as casas, eram, além de tudo, acompanhadas de inscrições que indicavam o seu caráter. Eis aqui uma que chegou até nós: "Esta Vênus não é a Vênus popular, é a Vênus urânia. A casta Crisógona colocou-a na casa de Amphicles, a quem deu vários filhos, comoventes penhores da sua ternura e fidelidade. Todos os anos, o primeiro cuidado desses felizes esposos é de vos invocar, poderosa deusa, e em prêmio da sua piedade, todos os anos lhes aumentais a ventura. Prosperam sempre os mortais que honram os deuses." (Teócrito).

Vênus celeste está caracterizada pela veste estrelada. Vemo-la figurada numa pintura de Pompéia onde está representada de pé com um diadema na cabeça e um cetro na mão. O famoso escultor Scopas fizera para a cidade de Élis uma Vênus vulgar que pusera sentada sobre um bode; figura análoga se encontra em outra pedra gravada antiga. No século XIX, o pintor Gleyre compôs um belíssimo quadro sobre o mesmo tema. Essa Vênus era sobretudo honrada em Corinto, cidade marítima que sempre se celebrizou pelas cortesãs. Ali é que vivia a famosa Laís, em torno da qual se lê o seguinte epigrama na Antologia: "Eu, altiva Laís, de quem a Grécia era joguete, eu que tinha à porta um enxame de jovens amantes, consagro a Vênus este espelho, pois não desejo ver-me tal qual sou, e já não posso ver-me tal qual era."

Encontra-se na mesma coletânea outro trecho ainda mais interessante: "Minarete, que há pouco estendia os fios da trama e sem cessar fazia ressoar a lançadeira de Minerva, acaba de consagrar a Vênus o seu cesto de trabalho, as suas lãs e os seus fusos, todos instrumentos seus de labor, queimando-os no altar: "Desaparecerei, exclamou, instrumentos que deixais morrer de fome as pobres mulheres e murchais a beleza das jovens!" Depois, pegou coroas, um alaúde e pôs-se a levar vida alegre nas festas e nos banquetes. "Ó Vênus, diz ela à deusa, hei de trazer-te o dízimo dos meus benefícios; proporciona-me trabalho no teu interesse e no meu." (Antologia).

Pigmaleão e a sua Estátua

A ilha de Chipre era particularmente renomada pelas cortesãs. O escultor Pigmaleão que ali vivia sentiu-se de tal modo impressionado com a desfaçatez das mulheres do país, que resolver viver no celibato. Mas como a sua imaginação sonhasse constantemente com uma formosura de caráter diferente, esculpiu uma estátua de marfim, representando uma mulher que à castidade de expressão unia a pureza das formas. A imagem lhe agradou tanto, que por ela se apaixonou; infelizmente faltava a vida àquela pudica beleza, e quando Pigmaleão contemplava as mulheres vivas via nelas a beleza mas nunca o pudor. Ao chegar o dia da festa de Vênus, dia que com tamanha magnificência se celebra na ilha de Chipre, Pigmaleão dirigiu-se ao templo da deusa, que encontrou perfumado com incenso, e rodeado de novilhas brancas, cujas pontas haviam sido douradas e que seriam imoladas. "Grande deusa, exclamou abraçando o altar, faze com que me torne marido de mulher perfeita como a estátua que esculpi!"

Parece que não estava em poder da deusa descobrir em Chipre mulher provida da casta beleza sonhada pelo artista, pois Vênus, para lhe ser agradável, preferiu recorrer ao milagre. Com efeito, quando o escultor voltou, foi abraçar a estátua, e viu-lhe as faces corar: o marfim amoleceu-se e a estátua animou-se. Pigmaleão, encantado, agradeceu à deusa, que desejou pessoalmente assistir ao himeneu.

A história de Pigmaleão constitui o tema do último quadro pintado por Girondet, e que figurou no salão de 1819. Não se imagina a quantidade de brochuras aparecidas desde então para louvar ou criticar o pintor. O mais interessante foi que os médicos houveram por bem mesclar-se à discussão, e examinar, com ridícula seriedade, a questão de saber se o artista tivera razão em animar, primeiramente, a cabeça da estátua, cujas pernas continuam ainda de marfim, e se teria sido mais conveniente fazer recomeçar a vida pelo peito, que encerra o coração e os pulmões.

A estátua animada por Pigmaleão deu-lhe um filho que foi fundador de Pafos, cidade de Chipre, célebre pelo culto ali prestado a Vênus.

Vênus de Cnido

Na origem, não se tinha o hábito de representar Vênus, no instante em que sai da espuma do mar, ou seja, inteiramente nua. Assim, foi a obra de Praxíteles considerada novidade, e a própria deusa testemunha, pela boca de um antigo autor, o espanto por se ver assim desprovida de vestes. "Mostrei-me a Páris, Anquises e Adônis é verdade; mas onde foi que Praxíteles me viu?" (Antologia).

Narra Plínio que Praxíteles, a quem os habitantes de Cos haviam encomendado uma Vênus, lhes deu a escolher entre duas estátuas, uma das quais estava vestida, ao passo que a outra estava nua. Preferiram eles a primeira, e Praxíteles vendeu a segunda aos habitantes de Cnido que se congratularam com a compra, pois ela granjeou reputação e fortuna ao país. A Vênus de Cnido parece ter sido o tipo da maioria das estátuas da deusa, quando se representava no momento do nascimento. O Júpiter de Fídias e a Vênus de Cnido por Praxíteles eram considerados, nos diferentes gêneros, dois produtos dos mais perfeitos da escultura. Dizia Plínio: "De todas as partes da terra, navega-se em direção a Cnido, para contemplar a estátua de Vênus." O rei Nicomedes ofereceu aos cnidianos, em troca da estátua, a totalidade das dívidas deles, que eram importantes. Recusaram a oferta, e com razão, acrescenta Plínio, pois a obra-prima constitui o esplendor da cidade. Uma multidão de escritores da antigüidade nos legou sinais da admiração que lhes inspirava a obra-prima para a qual se fizera a seguinte inscrição: "Ao verem a Vênus de Cnido, Minerva e Juno disseram uma à outra: Não acusemos mais Páris."

Entre as numerosíssimas estátuas que podem prender-se à mesma série, a mais famosa é a Vênus de Médicis, situada na tribuna da Galeria de Florença. Eis a descrição que dela fazia o catálogo do Louvre, onde figurou durante quinze anos: "A deusa dos Amores acaba de sair da espuma do mar, onde nasceu; a beleza virginal aparece, na margem encantada de Cítera, sem outro véu que a atitude de pudor. Se a cabeleira lhe não flutua sobre os divinos ombros, é por que as Horas, com as suas mãos celestiais, acabam de lha arranjar (Hino homérico). Um delfim e uma concha estão aos seus pés: são os símbolos do mar, elemento natal de Vênus. Os dois Amores que o encimam não são os filhos da deusa. Um deles é o Amor primitivo (Eros) que desemaranhou o Caos; o outro é o Desejo (Himeros) que aparecera no mundo ao mesmo tempo que o primeiro ser sensível. Ambos a viram nascer e jamais se lhe afastaram dos passos (teogonia de Hesíodo). A Vênus de Médicis tem as orelhas furadas, como já se observou em outras estátuas da mesma deusa; sem dúvida pendiam delas esplêndidos brincos. O braço esquerdo conserva no alto o sinal evidente do bracelete chamado spinther, representado em escultura em várias das suas imagens. Uma inscrição colocada sobre o plinto nos diz que o autor da Vênus de Médicis é Cleômenes, ateniense, filho de Apolodoro."

Vênus nem sempre está de pé quando sai das águas, e uma numerosa série de estátuas, ordinariamente designadas com o nome de Vênus agachadas, apresenta-nos a deusa apoiando um dos joelhos ao chão para tornar a erguer-se. O nome da Vênus no banho também lhe é atribuído. Quando a deusa aperta a cabeleira úmida, chamam-lhe de Vênus anadiomene. Apeles fizera uma Vênus anadiomene da qual os antigos elogiavam bastante a beleza. Os habitantes de Cos exigiram outra Vênus semelhante, do mesmo artista, mas ele morreu deixando a obra incompleta.

A Vênus de Apeles foi celebrada várias vezes na Antologia: "Esta Vênus, que sai do seio materno das águas, é obra do pincel de Apeles. Vê como, pegando com a mão a cabeleira molhada, espreme a água! Agora as próprias Juno e Minerva dirão: "Não queremos mais disputar-lhe o prêmio da beleza." (Antologia).

Vênus Genitrix

Considerada como geradora do gênero humano, Vênus está sempre vestida. Nas estátuas, as dobras da sua veste indicam freqüentemente que está molhada, e às vezes traz um dos seios descobertos, por ser a nutriz universal. As medalhas a mostram vestida e com os dois seios cobertos, mas ela está freqüentemente acompanhada de um menino: a deusa, nesse caso, recebe o nome de Vênus genitrix. Temos no Louvre uma bela estátua de Vênus genitrix com um seio descoberto; de resto, o mesmo tipo se encontra quase idêntico em vários museus.

Vênus Vitoriosa

Dá-se este nome a Vênus quando ela usa as armas de Marte. Com efeito, vemos, em várias pedras gravadas, uma figura de Vênus segurando na mão um capacete. Às vezes está ainda acompanhada de um escudo ou de troféus de armas. Outras, segura numa das mãos o capacete, e na outra uma palma. Essas figuras nos mostram sempre Vênus triunfante contra Marte, como conseqüência da mesma idéia que deu nascimento à lenda de Hércules fiando aos pés de Onfales. É sempre a beleza a dominar a força.

A associação de Marte e Vênus está igualmente fixada em duas pinturas de Herculanum, onde se nos deparam Amores preparando o trono das duas divindades. Um capacete está representado no trono de Marte e uma pomba no de Vênus. A pomba é, com efeito, o atributo especial de Vênus, como o capacete é o atributo de Marte.

Colocam-se, outrossim, entre as Vênus vitoriosas uma série de estátuas que só têm vestes para cobrir os membros inferiores, e que têm por caráter determinante a colocação de um dos pés sobre uma pequena elevação. Tal postura implica a idéia da dominação sobre Marte, quando é um capacete que suporta o pé, e sobre o mundo, quando ele se apoia simplesmente num rochedo. Neste caráter, não tem a deusa a graça que se lhe dá como Vênus nascente; pelo contrário, assume as atitudes de heroína. As formas do corpo estão repletas de vigor e força, e as feições possuem uma expressão de brutalidade desdenhosa muito distante do sorriso. A Vênus de Milo é considerada o tipo mais completo dessa classe de estátuas. A beleza grave e sem afetação de tal figura nada tem do agradável coquetismo que a maioria dos artistas dos últimos séculos considera apanágio essencial da mulher. Foi no mês de fevereiro de 1820 que um pobre camponês grego a descobriu, remexendo as terras do seu jardim. A estátua, feita de mármore de Paros, está constituída por dois blocos cuja união se oculta mediante as dobras da túnica.

 

6. Hércules

Hércules (ou Héracles), o maior de todos os heróis gregos, era filho de Zeus e Alcmena. Alcmena era a virtuosa esposa de Anfitrião e, para seduzi-la, Zeus assumiu a forma de Anfitrião enquanto este estava ausente de casa. Quando seu marido retornou e descobriu o que tinha acontecido, ficou tão irado que construiu uma grande pira e teria queimado Alcmena viva, se Zeus não tivesse mandado nuvens para apagar o fogo, forçando assim Anfitrião a aceitar a situação. Nascido, o jovem Hércules rapidamente revelou seu potencial heróico. Enquanto ainda no berço, ele estrangulou duas serpentes que a ciumenta Hera, esposa de Zeus, tinha mandado para atacá-lo ao seu meio-irmão Íflico; enquanto ainda um menino, ele matou um leão selvagem no Monte Citéron. Na vida adulta, as aventuras de Hércules foram maiores e mais espetaculares do que as de qualquer outro herói. Por toda a antigüidade ele foi muito popular, o assunto de numerosas estórias e incontáveis obras de arte. Apesar das mais coerentes fontes literárias sobre suas façanhas datarem apenas do século III a.C., citações espalhadas por vários locais e a evidência de fontes artísticas deixam muito claro o fato que a maioria, se não todas, de suas aventuras era bem conhecida em tempos mais antigos.

Hércules realizou seus famosos doze trabalhos sob o comando de Euristeu, Rei de Argos de Micenas. Existem várias explicações da razão pela qual Hércules se sentiu obrigado a realizar os pedidos cansativos e aparentemente impossíveis de Euristeu. Uma fonte sugere que os trabalhos eram uma penitência imposta ao herói pelo Oráculo de Delfos quando, num acesso de loucura, matou todos os filhos de seu primeiro casamento. Enquanto os seis primeiros trabalhos se passam no Peloponeso, os últimos levaram Hércules a vários lugares na orla do mundo grego e além. Durante os trabalhos, Hércules foi perseguido pelo ódio da deusa Hera, que tinha ciúmes dos filhos de Zeus com outras mulheres. A deusa Atena, por outro lado, era uma defensora entusiasta de Hércules; ele também desfrutou da companhia e ajuda ocasional de seu sobrinho, Iolau.

O primeiro trabalho de Hércules era matar o leão de Neméia. Como esta enorme fera era invulnerável a qualquer arma, Hércules lutou com ele e acabou estrangulando-o apenas com suas mãos. A seguir, ele removeu a pele utilizando uma de suas garras, e passou a utilizá-la como uma capa, com as patas amarradas ao redor de seu pescoço, as presas surgindo sobre sua cabeça, e a cauda balançando em suas costas. O segundo trabalho exigiu a destruição da Hidra de Lerna, uma cobra aquática com várias cabeças, que estava flagelando os pântanos perto de Lerna. Sempre que Hércules decepava uma cabeça, duas cresciam em seu lugar, e, como se isso não fosse um problema suficiente, Hera enviou um caranguejo gigante para morder o pé de Hércules. Este truque desleal foi demais para o herói, que decidiu pedir ajuda a Iolau; enquanto Hércules cortava as cabeças, Iolau cauterizava os locais com uma tocha flamejante, de modo que novas cabeças não pudessem crescer, e finalmente dando cabo do monstro. A seguir, Hércules embebeu a ponta de suas flechas no sangue ou veneno da Hidra, tornando-as venenosas.

No Monte Erimanto, um feroz javali estava se portando violentamente e causando prejuízos. Euristeu rispidamente ordenou a Hércules que trouxesse este animal vivo à sua presença, mas as antigas ilustrações deste episódio, as quais mostram principalmente Euristeu acovardado refugiando-se num grande jarro, sugerem que ele veio a se arrepender desta ordem. Hércules levou um ano para realizar o trabalho a seguir, que era capturar a Corça do Monte Carineu. Este animal parecia ser mais tímido do que perigoso. Este animal era sagrado para a deusa Ártemis e, apesar de ser fêmea, possuía lindas aspas. De acordo com a lenda, Hércules finalmente aprisionou a Corça e a estava levando para Euristeu, encontrou-se com Ártemis, que estava muito zangada e ameaçou matar Hércules pelo atrevimento em capturar seu animal; mas quando ficou sabendo sobre os trabalhos, ela concordou em deixar Hércules levar o animal, com a condição que Euristeu o libertasse logo que o tivesse visto.

Os Pássaros Estinfalos eram tão numerosos que estavam destruindo todas as plantações nas vizinhanças do Lago Estinfalo em Arcádia; várias fontes dizem que eles eram comedores de homens, ou pelo menos podiam atirar suas penas como se fossem flechas. Não está muito claro como Hércules enfrentou este desafio: uma pintura de um vaso mostra Hércules atacando-os com um tipo de estilingue, mas outras fontes sugerem que ele os abateu com arco e flecha, ou os espantou para longe utilizando um címbalo de bronze feito especialmente para a tarefa pelo deus Hefesto. O último dos seis trabalhos do Peloponeso foi a limpeza dos currais Augianos. O Rei Áugias de Élida possuía grandes rebanhos de gado, cujos currais nunca tinham sido limpos, assim o estrume tinha vários metros de profundidade. Euristeu deve Ter pensado que a tarefa de limpar os estábulos num único dia seria impossível, mas Hércules uma vez mais conseguiu resolver a situação, desviando o curso de um rio e as águas fizeram todo o trabalho por ele.

Euristeu pede agora que Hércules capture o selvagem e fez touro de Creta, o primeiro trabalho fora de Peloponeso. Assim que Euristeu viu o animal, Hércules o soltou, este sobrevivendo até ser morto por Teseu em Maratona. A seguir, Euristeu enviou Hércules à Trácia para trazer os cavalos devoradores de homens de Diomedes. Hércules amansou estes animais alimentando-os com seu brutal senhor, e os trouxe de maneira segura a Euristeu. A seguir, ele foi imediatamente mandado, desta vez para as margens do Mar Negro, para buscar a cinta da rainha das Amazonas. Hércules levou um exército junto consigo nesta ocasião, mas nunca precisaria dele se Hera não tivesse criado problemas. Quando chegou à cidade das Amazonas de Temisquira, a rainha das Amazonas estava até feliz que ele levasse sua cinta; Hera, sentindo que estava sendo fácil demais, espalhou um boato que Hércules pretendia levar a própria rainha, iniciando-se uma sangrenta batalha. Hércules, é claro, conseguiu escapar com a cinta, mas após apenas duros combates e muitas mortes.

Para realizar seus três últimos trabalhos, Hércules foi completamente fora das fronteiras do mundo grego. Primeiro foi mandado além da borda do Oceano para a distante Eritéia no extremo ocidente, para buscar o Rebanho de Gérião.

Gérião era um formidável desafio; não apenas tinha um corpo triplo, mas para ajudá-lo a tomar conta de seu maravilhoso rebanho vermelho também utilizava um feroz pastor chamado Euritão e um cachorro de duas cabeças e rabo de serpente chamado Orto. Orto era o irmão de Cérbero, o cão que guardava a entrada do Mundo Inferior, e o encontro de Hércules com Gérião é algumas vezes interpretado como seu primeiro encontro com a morte. Apesar de Hércules Ter se livrado de Euritão e Orto sem muito dificuldade, Gérião, com seus três corpos pesadamente armados, provou ser um adversário mais formidável, e apenas após uma terrível luta Hércules conseguiu matá-lo. Quando retornou à Grécia, Euristeu enviou para uma jornada ainda mais desesperadora, descer ao Mundo Inferior e trazer Cérbero, o próprio cão do Inferno. Guiado pelo deus mensageiro Hermes, Hércules desceu ao lúgubre reino dos mortos, e com o consentimento de Hades e Perséfone tomou emprestado o monstro assustador e de três cabeças para mostrá-lo ao aterrorizado Euristeu; isto feito, devolveu o cachorro a seus donos de direito.

Mesmo assim, Euristeu solicitou um último trabalho: que Hércules lhe trouxesse os Pomos do Ouro de Hespérides. Estes pomos, a fonte da eterna juventude dos deuses, cresciam em um jardim nos confins da terra; foram um presente de casamento de Géia, a Terra, a Zeus e Hera. A árvore que dava as frutas douradas era cuidada pelas ninfas chamadas Hespérides e guardada por uma serpente. Os relatos variam sobre como Hércules resolveu este trabalho final. As fontes que localizam o jardim abaixo das montanhas Atlas, onde o poderoso Atlas sustenta os céus em suas costas, dizem que Hércules convenceu Atlas a pegar as maças por ele; enquanto fazia esta jornada Hércules sustentou, ele mesmo, o céu; quando Atlas retornou, Hércules teve algumas dificuldades em persuadi-lo a reassumir o seu fardo. Outra versão da estória sugere que o próprio Hércules foi ao jardim lutando e matando a serpente ou conseguindo convencer as Hespérides a lhe entregar as maças. As maças de Hespérides simbolizavam a imortalidade, e este trabalho final significaria que Hércules deveria ascender ao Olimpo, tomando seu lugar entre os deuses.

Além dos doze trabalhos, muitos outros feitos heróicos e aventuras foram atribuídos a Hércules. Na sua busca do jardim das Hespérides, teve que lutar com o deus marinho Nereu para compelir o deus a dar-lhe as informações que necessitava; em outra ocasião enfrentou outra deidade marinha, Tritão. Tradicionalmente foi na Líbia que Hércules encontrou o gigante Anteu: Anteu era filho de Géia, a Terra, e ele era invulnerável enquanto mantivesse contato físico com sua mãe. Hércules lutou com ele e ergueu-o do solo; desprovido da ajuda de sua mãe, ficou indefeso nos braços poderosos do herói. No Egito Hércules escapou por pouco de ser sacrificado pelas mãos do Rei Busíris. Um advinho tinha dito a Busíris que o sacrifício de estrangeiros era um método infalível de se lidar com as secas. Como o advinho era Cipriota, tornou-se a primeira vítima de seu próprio conselho; quando o método se mostrou efetivo, Busíris ordenou que todo o estrangeiro temerário o suficiente a entrar em seu reino seria sacrificado. Na vez de Hércules, deixou-se ser aprisionado e levado ao local do sacrifício antes de se voltar contra seus agressores e matar uma grande quantidade deles.

Hércules não raramente se envolvia em conflito com os deuses. Em uma ocasião, quando não recebeu uma resposta que estava esperando da sacerdotisa do Oráculo de Delfos, tentou fugir com o trípode sagrado, dizendo que iria criar um oráculo melhor por sua própria conta. Quando Apolo tentou detê-lo, ocorreu uma violenta discussão, que foi resolvida apenas quando Zeus arremessou um relâmpago entre eles.

Hércules era muito leal aos seus amigos; mais do que uma vez ele arriscou sua vida para ajudá-los, sendo o caso mais espetacular o de Alceste. Admeto, Rei de Feres na Tessália, tinha feito um acordo com Apolo que, quando chegasse a hora de sua morte, poderia continuar a viver se encontrasse alguém que quisesse morrer em seu lugar. Entretanto, quando Admeto estava se aproximando da hora da sua morte, mostrou-se ser mais difícil do que tinha calculado arranjar um substituto; após seus parentes mais velhos terem egoisticamente se recusado ao sacrifício, sua esposa Alceste insistiu para que fosse a sacrificada. Quando Hércules chegou, ela já tinha descido ao Mundo Inferior, indo ele imediatamente atrás dela. Então lutou com a morte e venceu, trazendo-a de volta em triunfo ao mundo dos vivos.

Hércules era o super-homem grego, sendo muitas das estórias de seus feitos interessantes contos de realizações sobre-humanas e monstros fabulosos. Ao mesmo tempo Hércules, assim como Ulisses, também atua como se fosse um homem comum, sendo suas aventuras como parábolas exageradas da experiência humana. Irritadiço, não extremamente inteligente, apreciador do vinho e das mulheres (suas aventuras amorosas são muito numerosas), era uma figura eminentemente simpática; e no geral seu exemplo deveria ser seguido, pois destruía o mal e defendia o bem, superando todos os obstáculos que o destino lhe colocou. Além de tudo, ofereceu alguma esperança para a derrota da ameaça última e crucial do homem, a morte.

O fim de Hércules foi caracteristicamente dramático. Uma vez, quando ele e sua nova noiva Dejanira estavam atravessando um rio, o centauro Nesso ofereceu-se para transportar Dejanira, e no meio da correnteza tentou raptá-la. Hércules matou-o com uma de suas flechas envenenadas, e ao morrer, Nessa, simulando arrependimento, incentivou Dejanira a pegar um pouco de sangue do seu ferimento e guardá-lo; se Hércules algum dia parecesse cansado dela, deveria embeber um traje no sangue e dá-lo para que ele o vestisse; após isso, ele nunca mais olharia para outra mulher. Anos mais tarde Dejanira lembrou-se deste conselho quando Hércules, voltando de uma distante campanha, mandou à frente uma linda princesa aprisionada pela qual estava evidentemente apaixonado. Dejanira mandou a seu marido um robe tingido pelo sangue; ao vestir a roupa, o veneno da Hidra penetrou na sua pele e ele tombou em terrível agonia. Seu filho mais velho, Hilo, levou-o ao Monte Eta e depositou seu corpo, retorcido porém ainda respirando, numa pira funerária, a qual acabou sendo acesa pelo herói Filoctetes. Entretanto, os trabalhos de Hércules asseguraram-lhe a imortalidade, assim ele subiu ao Olimpo e assumiu seu lugar entre os deuses que vivem eternamente.

 

7. Jasão e Medéia Velocino de Ouro

O Velocino de Ouro pertencia originalmente ao carneiro que tinha salvo os filhos de Atamante, Frixo e Hele, de serem sacrificados a Zeus sob as ordens de sua malvada madrasta Ino. De acordo com a lenda, o carneiro pegou as crianças em sua casa em Orcomenos e então voou para leste, com elas montadas em suas costas. Ao cruzarem o estreito canal que separa a Europa da Ásia, Hele caiu das costas do carneiro, dando seu nome ao mar abaixo, o Helesponto. Mas Frixo continuou o vôo até o Mar Negro, até que o carneiro desceu em Cólquida, na corte do rei Eestes. Eestes recebeu Frixo de maneira gentil, e, quando o menino sacrificou o carneiro a Zeus, entregou o maravilhoso velocino ao rei. Eestes dedicou o velocino a Ares e o depositou num bosque sagrado ao deus da guerra, sendo guardado por uma temível serpente.

Por que Jasão queria o Velocino de Ouro? Não era para apenas possuí-lo; assim como outros heróis, foi mandado a tentar o que se achava ser um feito impossível, para satisfazer as ordens de um feitor de coração empedernido, neste caso, Pélias, rei do Iolco. Jasão era filho de Éson, o legítimo rei de Iolco; Pélias era meio-irmão de Éson, e em algumas versões da estória Pélias deveria governar apenas até quando Jasão tivesse idade suficiente para assumir. Nestas circunstâncias, seria dificilmente surpreendente que, quando Jasão crescesse e exigisse sua herança de direito, Pélias o mandasse procurar e trazer o Velocino de Ouro. A busca do Velocino é a estória de viagem do Argo e as aventuras de sua tripulação, os Argonautas. A lenda é provavelmente mais antiga do que a Ilíada e a Odisséia, mas chega até nós principalmente através do poema épico muito posterior, o Argonáutica do alexandrino Apolônio de Rodes.

Os Argonautas eram em número aproximado de cinqüenta, e, apesar das fontes diferirem com respeito a seus nomes, os principais personagens estão claros. Além do próprio Jasão, havia Argo, construtor de Argo; Tífis, o timoteiro; o músico Orfeu; Zeto e Cálais, filhos do Vento Norte; os irmãos de Helena, Cástor e Pólux; Peleu, pai de Aquiles; Meléagro da Caledônia, famoso caçador de javalis; Laerte e Autólico, pai e avô de Ulisses; Admeto, que mais tarde deixaria sua esposa morrer em seu lugar; o profeta Anfiarau e, para a primeira parte da jornada, o próprio Hércules; ao lado destes nomes famosos, havia uma hoste de outros heróis. O navio, o Argo, cujo nome significa "Rápido", era o mais veloz já construído. Ele foi construído no porto de Pagasse na Tessália, sendo feito inteiramente de madeira do Monte Pélion, com exceção da proa, que era uma parte de um carvalho sagrado trazido pela deusa Atena do santuário de Zeus em Dodona. Esta peça de carvalho era profética, e poderia falar em determinadas ocasiões.

O Argo zarpou com augúrios favoráveis e se dirigiu ao norte, em direção ao Mar Negro. Na sua jornada para Cólquida, a sua tripulação encontrou muitas aventuras. Em Mísia perderam Aquiles, quando outro membro da tripulação, um belo jovem chamado Hilas, foi à procura de água fresca para uma festa e não voltou ao navio. As ninfas da fonte que tinha encontrado, apaixonou-se por sua beleza, o tinham seqüestrado e afogado; mas Hércules se recusou a interromper a procura, assim o Argo teve que partir sem ele.

Na margem grega do Bósforo os Argonautas encontraram Fineu, um visionário cego e filho de Posídon, sobre quem os deuses tinham lançado uma terrível maldição. Sempre que se sentava para comer, era visitado por uma praga de Harpias, terríveis criaturas, parte mulher e parte ave, que pegavam parte do alimento com seus bicos e garras e estragavam o restante com seu excremento. Os Argonautas armaram uma armadilha para estes monstros. Convidaram Fineu a partilhar de sua mesa, e, quando as Harpias surgiram, os filhos alados do Vento Norte sacaram suas espadas e as perseguiram até que, exaustas, prometeram desistir. Fineu revelou-lhes, então, o tanto que sabia com relação à viagem: o perigo principal que enfrentariam seriam as rochas movediças; quando chegassem ali, deveriam enviar primeiramente uma pomba. Se a pomba encontrasse a passagem entre as rochas, então o Argo também conseguiria, mas se a pomba falhasse, deveriam desviar o barco, pois a missão estaria condenada ao fracasso.

A pomba enviada conseguiu passar a salvo pelas rochas, deixando apenas sua pena mais longa da cauda nas rochas; o Argo também atravessou pêlo estreito canal, sofrendo apenas leves estragos nos costados da popa, e sem outras aventuras significativas os Argonautas chegaram a salvo em Cólquida.

Quando Jasão explicou a razão de sua vinda, o rei Eestes estipulou que antes que pudesse remover o Velocino de Ouro, deveria atrelar dois touros de cascos de bronze e que respiravam fogo, um presente do deus Hefesto, a um arado; a seguir deveria semear alguns dentes do dragão que Cadmo tinha morto em Tebas (Atena tinha dado estes dentes a Eestes), e quando homens armados surgissem, devia destruí-los. Jasão teve que concordar com todas estas condições, mas teve a sorte de receber a ajuda da filha do rei, Medéia, que era feiticeira. Medéia, que primeiramente fez Jasão prometer que a levaria para Iolco como sua esposa, deu-lhe uma poção mágica para passar sobre o corpo e sobre o escudo; isto o tornou invulnerável a qualquer ataque, fosse com fogo ou com ferro. Também o orientou sobre o que fazer com a safra de homens armados: deveria atirar pedras no meio deles, de modo que se atacassem entre si e não a Jasão. Assim armado e orientado, Jasão foi bem sucedido em todas as tarefas.

E estes, de alguma forma surpreso pelas façanhas de seu hóspede, ainda estava relutante em entregar o Velocino, e tentou mesmo atear fogo no Argo e matar a tripulação. Então, enquanto Medéia dava uma droga a serpente guardiã, Jasão rapidamente removeu o Velocino de Ouro do bosque sagrado, e juntamente com o restante dos Argonautas saíram silenciosamente para o mar. Quando Eestes percebeu a ausência tanto da sua filha como do Velocino, efetuou uma perseguição em outro barco, mas mesmo isto tinha sido previsto por Medéia. Tinha trazido junto seu jovem irmão Absirto, então o matou e o cortou em pequenos pedaços, os quais jogou no mar. Como tinha antecipado, Eestes parou para recolher os pedaços, e o Argo conseguiu fugir.

A rota da jornada de volta do Argo tem desconcertado muitos estudiosos. Ao invés de retornar através do Helesponto, Jasão deixou o Mar Negro através do Danúbio, o qual miraculosamente permitiu-lhe emergir no Adriático; não satisfeito com esta realização, o Argo continuou a velejar subindo o rio Pó e o Reno antes de alguma maneira encontrar sua rota mais familiar nas águas do Mediterrâneo. E em qualquer lugar que fossem, os Argonautas se defrontavam com fantásticas aventuras. Em Creta, por exemplo, encontraram o gigante de bronze Talo, uma criatura feita por Hefesto para atuar como uma espécie de sistema mecânico de defesa costeira para Minos, rei de Creta. Talo deveria caminhar ao redor de Creta três vezes por dia, mantendo os navios afastados, isto sendo feito com a retirada de pedaços de penhascos e atirando-os em qualquer navio que tentasse se aproximar. Era completamente invulnerável, exceto por uma veia em seu pé; se fosse danificada, sua força vital acabaria se exaurindo. Medéia conseguiu drogá-lo para que ficasse insano e se atirasse contra as rochas, acabando por danificar a veia causando sua morte.

Quando Jasão finalmente retornou a Iolco, casou-se com Medéia e entregou o Velocino de Ouro a Pélias. Existem várias versões sobre o que aconteceu a seguir. Uma versão de estória diz que Medéia enganou as filhas de Pélias para que matassem seu pai. Primeiro demonstrou seus poderes de rejuvenescimento misturando várias substâncias num caldeirão com água fervente e a seguir matou e picou um velho carneiro, jogando-o no caldeirão: imediatamente um jovem carneiro emergiu. Entusiasmadas e com a melhor das intenções, as filhas de Pélias apressaram-se em cortá-lo em pedaços e jogá-lo no caldeirão; infelizmente apenas conseguiram apressar seu fim.

Com o escândalo resultante, Jasão e Medéia fugiram para Corinto, onde viveram felizes por pelo menos dez anos e tiveram dois filhos. Porém, Jasão acabou se cansando de sua esposa e tentou deixá-la por Gláucia, a jovem filha do rei de Corinto. Medéia, furiosa com os ciúmes, mandou um vestido de presente a Gláucia; quando o vestiu, este grudou em sua pele e a rasgou; quando seu pai tentou ajudar sua torturada filha, ficou também aprisionado e ambos acabaram morrendo num terrível sofrimento. Para punir Jasão ainda mais, Medéia matou seus próprios filhos, antes de escapar para o céu numa carruagem flamejante. Jasão acabou retornando para governar Iolco.

 

8. Perseu e Medusa

De acordo com o estudioso alexandrino Apolodoro, Perseu, o lendário fundador de Micenas, nunca teria nascido se seu avô tivesse conseguido seu intento. Acrísio, rei de Argos, era pai de uma linda filha, Dânae, mas estava desapontado por não ter um filho. Quando consultou o oráculo sobre a ausência de um herdeiro homem, recebeu a informação que não geraria um filho, mas com o passar do tempo teria um neto, cujo destino era matar o avô. Acrísio tomou medidas extremas para fugir deste destino. Trancou Dânae no topo de uma torre de bronze, e lá permaneceu numa total reclusão até o dia em que foi visitada por Zeus na forma de uma chuva de ouro; assim deu à luz a Perseu. Acrísio ficou furioso, mas ainda achava que seu destino poderia ser evitado. Fez seu carpinteiro construir uma grande arca, dentro da qual Dânae foi forçada a entrar com seu bebê, sendo levados para o mar. Entretanto, conseguiram sobreviver às ondas, e após uma cansativa jornada a arca foi jogada nas praias de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades. Dânae e Perseu foram encontrados e cuidados por um honesto pescador, Dictis, irmão do menos escrupuloso rei de Sérifo, Polidectes.

Com o passar do tempo, Polidectes apaixonou-se por Dânae, mas enquanto crescia Perseu protegeu ciumentamente sua mãe dos indesejados avanços do rei. Um dia, durante um banquete, Polidectes perguntou a seus convidados que presente cada um estava preparado a oferecer-lhe. Todos os outros prometeram cavalos, mas Perseu ofereceu-se a trazer a cabeça da górgone. Quando Polidectes o fez cumprir sua palavra, Perseu foi forçado a honrar sua oferta. As górgones eram em número de três, monstruosas criaturas aladas com cabelos de serpentes; duas eram imortais mas a terceira, Medusa, era mortal e assim potencialmente vulnerável; a dificuldade era que qualquer um que a olhasse se transformaria em pedra. Felizmente, Hermes veio em sua ajuda, e mostrou a Perseu o caminho das Gréias, três velhas irmãs que compartilhavam um olho e um dente entre si. Instruído por Hermes, Perseu conseguiu se apoderar do olho e do dente, recusando-se a devolvê-los até que as Gréias mostrassem o caminho até as Ninfas, que lhe forneceriam os equipamentos que necessitava para lidar com Medusa. As Ninfas prestimosamente forneceram uma capa de escuridão que permitiria a Perseu pegar a Medusa de surpresa, botas aladas para facilitar sua fuga e uma bolsa especial para colocar a cabeça imediatamente após a ter decepado. Hermes sacou uma faca em forma de foice, e assim Perseu seguiu completamente equipado para encontrar Medusa. Com a ajuda de Atena, que segurou um espelho de bronze no qual podia ver a imagem da górgone, ao invés de olhar diretamente para sua terrível face, conseguiu finalmente despachá-la. Acomodando a cabeça de modo seguro na sua bolsa, retornou rapidamente a Sérifo, auxiliado por suas botas aladas.

Ao sobrevoar a costa da Etiópia, Perseu viu abaixo uma linda princesa atada numa rocha. Esta era Andrômeda, cuja fútil mãe Cassiopéia tinha incorrido na ira de Posídon ao espalhar que era mais bonita do que as filhas do deus do mar Nereu. Para puni-la, Posídon enviou um monstro marinho para devastar o reino; apenas poderia ser parado se recebesse a oferenda da filha da rainha, Andrômeda, que foi assim colocada na orla marítima para esperar o terrível destino. Perseu apaixonou-se imediatamente, matou o monstro marinho e libertou a princesa. Os pais dela, em júbilo, ofereceram Andrômeda como esposa a Perseu, e os dois seguiram na jornada para Sérifo. Polidectes não acreditava que Perseu pudesse retornar, e deve ter sido bastante gratificante para Perseu observar o tirano ficar lentamente petrificado sob o olhar da cabeça da górgone. Perseu deu então a cabeça a Atena, que a fixou como um emblema no centro de seu protetor peitoral.

Perseu, Dânae e Andrômeda seguiram então juntos para Argos, onde esperavam se reconciliar com o velho rei Acrísio. Mas quando Acrísio soube desta vinda, fugiu da presença ameaçadora de seu neto, indo para a Tessália, onde, não conhecendo um ao outro, Acrísio e Perseu acabaram se encontrando nos jogos fúnebres do rei de Larissa. Aqui a previsão do oráculo que Acrísio temia se realizou, pois Perseu atirou um disco, o qual se desviou do curso e atingiu Acrísio enquanto estava entre os espectadores, matando-o instantaneamente.

Perseu com sensibilidade decidiu que não seria muito popular voltar a Argos e reivindicar o trono de Acrísio logo após tê-lo morto; assim, ao invés, fez uma troca de reinos com seu primo Megapentes. Megapentes se dirigiu a Argos enquanto Perseu governou Tirinto, onde é considerado como responsável pelas fortificações de Midéia e Micenas.

 

9. Édipo e o Ciclo Tebano

O ciclo de mitos que tratam das sortes da cidade de Tebas e sua família real é certamente tão antigo quanto as estórias que compõem a Ilíada e a Odisséia, mas chega até nós através de fontes muito posteriores. Enquanto a fundação de Tebas é principalmente conhecida a partir de autores romanos como o poeta Ovidio, as estórias de Penteu e Édipo são contadas pelos dramaturgos atenienses, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.

Cadmo e a Fundação de Tebas

Cadmo era um dos três filhos de Agenor, rei de Tiro, na margem oriental do Mediterrâneo. A irmã deles, a linda Europa, estava brincando na praia quando foi levada através do mar por Zeus, na forma de um touro, até Creta. Agenor disse a seus filhos que encontrassem a irmã e que não voltassem sem ela. No decorrer de suas perambulações, Cadmo chegou em Delfos, onde o oráculo o avisou que uma vaca o encontraria ao deixar o santuário; foi instruído a fundar uma cidade onde a vaca finalmente parasse. O animal o levou ao local da futura Tebas. Quando a vaca se deitou para repousar, Cadmo percebeu que este era o local para a sua cidade e decidiu sacrificá-la aos deuses. Precisando de água, mandou seus ajudantes buscá-la em uma fonte próxima, a Fonte de Ares. A lagoa da fonte, entretanto, estava guardada por uma ameaçadora serpente, que atacou e matou todos os homens de Cadmo. Quando Cadmo veio a procura destes, encontrou apenas fragmentos de membros e o grande monstro saciado. Mesmo estando só e levemente armado, conseguiu subjugar a serpente e, a seguir, aconselhado por Atena, semeou os dentes do animal no solo. Deles surgiu um grupo de guerreiros, armados com espadas e lanças. Teriam atacado Cadmo, se este não tivesse tido a idéia de lançar uma grande pedra no meio deles; assim, começaram a atacar uns aos outros, parando apenas quando restavam apenas cinco deles; estes cinco se juntaram a Cadmo e se tornaram os fundadores das cinco grandes famílias de Tebas.

A cidade de Cadmo rapidamente tornou-se rica e poderosa, e seu fundador prosperou com ela. Casou-se com Harmonia, a filha de Ares e Afrodite, e tiveram quatro filhas, Ino, Autônoe, Agave e Sêmele, e um filho, Polidoro. Estes por sua vez também tiveram seus filhos. Autônoe era a mãe de Actéon, o grande caçador morto pelos seus próprios cães de caça quando Ártemis o transformou em veado como punição por tê-la visto nua. A linda Sêmele foi seduzida por Zeus e ficou grávida de seu filho, o deus do vinho Dionisio. A esposa divina de Zeus, Hera, estava com ciúmes e astutamente sugeriu a Sêmele que pedisse a Zeus que surgisse para ela na forma que tinha aparecido para Hera. Como Sêmele tinha feito Zeus prometer cumprir qualquer pedido que fizesse, foi obrigado a se revelar como um relâmpago, o que a queimou viva. Zeus retirou a criança do útero de Sêmele e a implantou em sua própria coxa, da qual a criança acabou nascendo no tempo devido.

A família de Sêmele se recusava a acreditar que Zeus fosse o responsável pela condição dela, ou sua morte. À medida que o culto de Dionisio espalhou-se pela Grécia, ocorreu com muito entusiasmo e pouca resistência, salvo em Tebas, onde o primo de Dionisio, Penteu, filho de Agave, recusava-se a aceitá-lo.

Penteu

A característica principal do culto de Dionisio nos tempos clássicos era a formação de grupos de mulheres conhecidas como Mênades; vagavam por dias a fio pelas áreas das montanhas, num transe ou frenesi, bebendo vinho, alimentando filhotes de animais, ou despedaçando-os e comendo-os, encantando serpentes e de uma maneira geral se portando de maneira selvagem. Devido a estes aspectos semelhantes a orgias e também pelos principais seguidores serem mulheres, a adoração de Dionisio era vista com desconfiança pelas autoridades masculinas, que gostavam de manter as mulheres em casa e sob o seu controle. A tragédia de Eurípedes, As Bacantes, mostram um caso extremo de festividade de Dionisio e suspeitas masculinas. Nesta peça, o próprio Dionisio vem a Tebas, determinado a punir a família de sua mãe por sua falta de fé, tanto nas suas irmãs como nele próprio. As mulheres de Tebas, incluindo as irmãs de Sêmele, seguem entusiasmadas o deus; no correr da festa, altos brados erguem-se do Monte Citéron devido as brincadeiras. Penteu, o senhor de Tebas, considera seu primo de longos cabelos e modos afeminados com razoável desconfiança, mas, como deus gradualmente o acaba deixando maluco, confessa seu desejo de ir à montanha e espionar as Mênades. Então, Dionisio o leva lá, e quando se aproximam das mulheres, os deuses curvam um alto pinheiro para que Penteu se alojasse no topo e pudesse ver tudo que desejasse. Como seria previsível, torna-se um alvo fácil para as Mênades, que derrubaram as árvores e o despedaçaram com as próprias mãos. Entre elas está, principalmente, Agave, a própria mãe de Penteu, que retorna triunfalmente a Tebas ostentando a cabeça do próprio filho, acreditando ser esta a cabeça de um jovem leão. Ao final da peça, acaba por perceber o que tinha feito, e todas admitem o poder do deus.

A Casa de Édipo

Édipo, o trineto de Cadmo, é hoje talvez o herói grego mais famoso depois de Hércules; ele é famoso por ter resolvido o enigma da Esfinge, mas ainda mais notório por sua relação incestuosa com sua mãe. Na antiga Grécia era famoso por ambos os episódios, mas o maior significado era como o modelo do herói trágico, cuja estória incluía os sofrimentos universais da ignorância humana - a falta da compreensão da pessoa sobre quem ela é sua cegueira em face do destino.

Édipo nasceu em Tebas, filho de Laio, o rei, e sua esposa Jocasta. Devido ao oráculo ter predito que Laio encontraria a morte nas mãos de seu próprio filho, o jovem Édipo foi entregue a um pastor do Monte Citéron, com os tornozelos perfurados de modo que não pudesse se mover. Esta foi a origem de seu nome que significa "pé inchado". Entretanto, o bom pastor não conseguia abandonar a criança, entregando-a então a outro pastor do lado oposto da montanha. Este pastor, por sua vez, levou a criança a Pólibo, rei de Corinto, o qual não tendo filhos, ficou feliz em criar o menino como sendo seu filho. Enquanto Édipo crescia, era ameaçado com comentários sobre não ser filho legítimo de Pólibo; apesar de Pólibo ter lhe assegurado que o era, Édipo decidiu-se finalmente a viajar para Delfos e consultar o oráculo. O oráculo não revelou quem eram seus pais verdadeiros, mas contou-lhe que estava destinado a matar seu pai e casar com sua mãe. Horrorizado, e tão chocado que esqueceu completamente suas próprias dúvidas sobre seus pais, deixou Delfos resolvido a nunca mais retornar a Corinto, onde viviam Pólibo e sua esposa.

Desconhecido para Édipo, seu pai verdadeiro Laio estava também viajando nas redondezas de Delfos. Num local onde três estradas se encontravam, Édipo se viu ao lado da carruagem de Laio; um membro da escolta de Laio ordenou rudemente que Édipo saísse do caminho, e este, sem disposição para obedecer, vociferou de volta. Ao passar a carruagem, o próprio Laio golpeou Édipo com um bastão e este respondeu derrubando Laio do veículo e o matando. Esqueceu, então, o incidente e continuou o seu caminho.

Voltando as costas a Corinto, acabou chegando em Tebas, a cidade de Laio, a qual estava sendo aterrorizada pela Esfinge, um monstro parte leão alado, parte mulher, que fazia uma pergunta que confundia: "O que é que anda com quatro pernas, duas pernas e três pernas?" Aqueles que tentaram e falharam em solucionar a charada eram jogados pela Esfinge num precipício, cujo fundo estava literalmente tomado por ossos das vítimas. Quando a morte de Laio se tornou conhecida em Tebas, o trono e a mão da rainha de Laio foram oferecidos ao homem que pudesse solucionar a charada e livrar a região da terrível Esfinge. Para Édipo a charada não ofereceu problema; rapidamente identificou seu sujeito como um "homem, que como um bebe engatinha de quatro, acaba crescendo e andando em duas pernas e com a idade necessita do suporte de uma terceira perna, uma bengala". Quando a Esfinge escutou esta resposta, ficou tão enraivecida e mortificada que se jogou no precipício causando sua morte.

Os cidadãos de Tebas receberam Édipo com deferência e o fizeram seu rei; casou-se com Jocasta e por muitos anos viveram em perfeita felicidade e harmonia. Édipo mostrou-se um governante sábio e benevolente, Jocasta deu-lhe dois filhos, Etéocles e Polínece, e duas filhas, Antígona e Ismênia. Eventualmente, entretanto, outra praga se abateu sobre a região de Tebas, e é neste ponto que começa a grande tragédia de Sófocles, Édipo Rei. A colheita estava morrendo nos campos e hortas, os animais estavam improdutivos, as crianças doentes e os bebês em gestação definhavam, enquanto os deuses estavam surdos a todos os apelos. Creonte, irmão de Jocasta, retornou de sua consulta ao Oráculo de Delfos, que ordenava que a maldição seria levantada apenas quando o assassino de Laio fosse trazido a justiça. Édipo, imediatamente e de maneira enérgica, tomou a tarefa de encontrá-lo, e como primeiro passo consultou o profeta cego Tirésias. Tirésias reluta em revelar a identidade do assassino, mas é levado gradualmente a se enfurecer pelas insinuações de Édipo sobre ter algo a ver com a morte. Acaba revelando que o próprio Édipo é o pecador que trouxe a maldição sobre a cidade; também profetiza que Édipo, que se considera tão inteligente e de visão larga, se recusará a aceitar a verdade de suas palavras, se recusará a reconhecer quem realmente é e o que tinha feito.

Édipo, enraivecido, suspeita que seu cunhado Creonte está mancomunado com Tirésias para assumir o trono; Creonte também nada pode dizer para acalmá-lo. Jocasta tenta acalmar a situação: é impossível que Édipo tenha morto Laio, diz ela, pois este foi morto numa encruzilhada de três estradas. Subitamente Édipo lembra seu encontro casual com um homem velho perto de Delfos; questionando Jocasta sobre a aparência de Laio (estranhamente, se parecia com o próprio Édipo) e o número de elementos na sua escolta, percebe que Laio foi provavelmente a sua vítima. Enquanto espera pela confirmação de um elemento da escolta que retornava a Tebas, um mensageiro chega de Corinto com a notícia que Pólibo tinha morrido de morte natural; Édipo, ainda não suspeitando de toda a extensão de seu crime, fica feliz por aparentemente ter se livrado de pelo menos uma parte da profecia do oráculo, mas resolve ter cautela antes que acabe se casando com sua mãe.

O mensageiro bem intencionado, ansioso em confortá-lo, assegura a Édipo que Pólibo e sua esposa não eram seus pais; o próprio mensageiro tinha recebido Édipo, então um bebê, das mãos de outro pastor do Monte Citéron e o entregou a Pólibo. Mesmo agora Édipo não consegue fazer a correta conexão, e enquanto a aterrorizada Jocasta tenta em vão persuadi-lo a parar a investigação, persiste nos seus esforços para chegar ao fundo do mistério e ordena que o pastor de Laio, agora um velho, seja trazido a sua presença. Por uma casualidade do destino, este homem é também a única testemunha ainda viva da morte de Laio. Quando finalmente aparece, o completo horror da situação finalmente chega a Édipo; o homem admite que tomou o filho de Laio e com pena o entregou ao pastor de Pólibo, ao invés de o deixar morrer. Esta criança era Édipo, que agora tinha sucedido seu pai no trono e no leito.

Jocasta não esperou pelo desfecho; tinha ido antes de Édipo para o palácio, e quando a seguiu, com o que parecia uma intenção assassina, descobriu que tinha se enforcado. Arrancando os broches de ouro do vestido dela, golpeia seguidamente seus olhos com eles, até que o sangue corra pela sua face. Como pode olhar para o mundo, agora que consegue ver a verdade? O coro da peça mostra a moral da estória: por mais seguro que um homem possa se sentir, mesmo sendo rico, poderoso e afortunado, ninguém pode se sentir seguro de escapar de um desastre; não é seguro chamar qualquer pessoa de feliz deste lado do túmulo.

Apesar de Ter solicitado a Creonte um banimento imediato, não foi permitido a Édipo partir de Tebas por vários anos, até que sua punição tivesse sido confirmada por um oráculo. Na ocasião em que foi mandado embora, estava muito menos ansioso para partir. Agora já um velho, estava condenado a vagar de lugar em lugar, pedindo comida e abrigo, suas passadas cegas guiadas por suas filhas Antígona e Ismênia. Apesar de elas trazerem algum conforto e alegria para ele, seus filhos, Polínice e Etéocles, estavam cada vez mais afastados dele, de seu tio Creonte e um do outro. Tinha sido combinado que se alternariam no governo, um ano para cada um, mas, quando o primeiro ano de Etéocles terminou, este se recusou a entregar o trono a seu irmão. Polínice se refugiou em Argos, onde agrupou a sua volta uma equipe de seis outros campeões, com os quais se propôs a sitiar sua cidade natal. É esta a situação no início da obra Édipo em Colona, de Sófocles, quando Édipo, chegando ao fim de sua vida, chega aos olivais de Colona, um distrito nos arredores de Atenas.

Ajudado por Antígona, Édipo se refugia num altar para aguardar a chegada de Teseu, rei de Atenas, quando Ismênia chega com notícias de Tebas. As facções rivais dos irmãos ficam a cada dia mais nervosas, e um oráculo se pronunciou dizendo que o lado que conseguisse o apoio de Édipo seria o vencedor. Édipo, igualmente irritado com Creonte e com seus dois filhos, está seguro que não apoiará qualquer um dos lados; podem lutar entre si, esperando que destruam um ao outro no processo. Quando Teseu chega, portanto, Édipo solicita que lhe seja permitido terminar seus dias em Atenas. Teseu escuta com atenção seu pedido e oferece a Édipo um local mais confortável, mas Édipo deseja permanecer no local onde está. Surge então Creonte, determinado a fazer Édipo acompanhá-lo de volta a Tebas, mas apenas à fronteira da cidade, de modo a ainda evitar a maldição de ter Édipo realmente no solo Tebano, para manter sua facção protegida de sua proximidade. Quando Édipo recusa a pretensão de amizade e rejeita a oferta imediatamente, Creonte se torna violento e ameaça levar Édipo a força; já tinha capturado Ismênia, e agora seus soldados tinham levado Antígona para muito longe de seu indefeso pai.

Teseu, retornando bem a tempo de evitar que Édipo seja retirado de seu altar, critica asperamente as ações de Creonte e promete devolver as filhas a Édipo; ordena que Creonte volte a Tebas. Chega então Polínice, juntamente com uma razão política para desejar a proteção de seu pai, o qual tinha ajudado a expulsar de Tebas; também é rejeitado, e Édipo anuncia sua intenção de permanecer em Colona até o fim de seus dias. A peça termina de maneira dramática: após Édipo desaparecer no arvoredo sagrado, um mensageiro emerge para contar seu fim miraculoso, testemunhado apenas por Teseu. Édipo, anuncia-se, tinha transferido as bênçãos que poderia ter dado a Creonte ou Polínice para Atenas, a qual seria daí em diante protegida por sua presença.

O ataque a Tebas feito por Polínice e seus aliados é o assunto da peça Sete contra Tebas, de Ésquilo. Sete campeões lideraram o ataque nos sete portões de Tebas, calhando a Polínice tomar o portão defendido por seu irmão Etéocles. Apesar dos tebanos finalmente repelirem o ataque sobre sua cidade, os dois irmãos morrem pelas espadas um do outro, cumprindo assim a praga de seu pai e prosseguindo a triste saga da casa de Édipo.

A ação dramática de Antígona de Sófocles começa neste ponto da estória. Com os dois herdeiros masculinos de Édipo mortos, Creonte assume o título de rei de Tebas. Decreta que, enquanto Etéocles devesse ser sepultado com toda a cerimônia, o traidor Polínice deveria ser deixado no local onde tombou, para ter seu corpo destruído pelos cães e pássaros predadores. Creonte mandou montar guarda ao lado do corpo para certificar-se que seu édito seria cumprido; logo seus soldados retornariam com Antígona, que tinha sido apanhada atirando punhados de terra sobre os restos desfigurados de seu irmão, num esforço de fornecer-lhe um sepultamento simbólico. Quando desafiada quanto a sua desobediência, replicou que as leis dos deuses, que dizem que os parentes sejam sepultados, são irrevogáveis e imutáveis, devendo ter precedência sobre a lei dos homens. Na sua Antígona, Sófocles utiliza o mito para explorar este conflito entre a lei humana e a divina: o que uma pessoa comum deve fazer quando duas destas leis entram em conflito? Apesar de, por fim, a resposta parecer ser que a lei divina deve ser obedecida a qualquer custo, esta conclusão não é de nenhuma forma evidente no início. Enquanto Antígona é mostrada como uma mulher forte e pouco feminina que não está feliz me permanecer no reino feminino tradicional do lar, mas aventura-se desafiando as leis de seu guardião masculino, Creonte aparece inicialmente como um homem que tenta fazer o máximo para governar a cidade pela regra do rei.

Quando Antígona não mostra qualquer remorso por seu crime, Creonte ordena que seja sepultada viva, um método cruel de execução calculado para absolvê-lo de responsabilidade direta pela morte. Neste ponto o noivo de Antígona, Hêmon filho de Creonte, vem a Creonte pedir pela sua vida, argumentando que a punição é bárbara e politicamente ruim, pois Antígona tem grande possibilidade de tornar-se heroína entre o povo de Tebas. Creonte, entretanto, permanece inflexível, como as árvores que não se curvarão frente corrente nas margens de um rio alagado, ou o marinheiro que não retirará suas velas antes da borrasca; assim, dá instruções para que a punição prossiga. Apenas quando aparece o profeta Tirésias, e revela a zanga dos deuses e a terrível punição que se abaterá sobre Creonte se persistir nesta ação, é que Creonte finalmente aceita o conselho e liberta Antígona da prisão. Nesciamente, como resultante, detém-se enquanto ia ao sepultamento de Etéocles e apenas chega ao túmulo para encontrar Hêmon segurando o corpo de Antígona - tinha se enforcado em sua cinta. Hêmon então volta sua espada contra seu próprio peito. Creonte retorna a sua casa recebendo a notícia que sua esposa Eurídice tinha se suicidado, amaldiçoando seu marido no seu leito de morte. Esmagado pela tragédia que o tinha atingido de maneira tão súbita, Creonte é conduzido para longe, deixando o coro refletindo sobre o fato da maior parte da felicidade ser a sabedoria, em conjunto com a devida reverência aos deuses.

 

10. Divindades das Águas

O Oceano

Para os antigos o Oceano primitivamente é um rio imenso que envolve o mundo terrestre. Na Mitologia é o primeiro deus das águas, filho de Urano ou do Céu e de Gaia, a Terra; é o pai de todos os seres. Homero diz que os deuses eram originários do Oceano e de Tétis. Conta o mesmo poeta que os deuses iam muitas vezes à Etiópia visitar o Oceano e tomar parte nas festas e sacrifícios que ali se celebravam. Conta-se enfim que Juno, desde o seu nascimento, foi por sua mãe Réia confiada aos cuidados de Oceano e de Tétis, para livrá-la da cruel voracidade de Saturno.

O Oceano é pois tão antigo como o mundo. Por isso representam-no sob a forma de um velho, sentado sobre as ondas, com uma lança na mão e um monstro marinho ao seu lado. Esse velho segura uma urna e despeja água, símbolo do mar, dos rios e das fontes.

Como sacrifício ofereciam-lhe geralmente grandes vítimas, e antes das expedições difíceis, faziam-se-lhe libações. Era não somente venerado pelos homens, mas também pelos deuses. Nas Geórgicas de Virgílio, a ninfa Cirene, ao palácio do Peneu, na fonte desse rio, oferece um sacrifício ao Oceano; três vezes seguidas, ela deita o vinho sobre o fogo do altar, e três vezes a chama ressalta até a abóbada do palácio, presságio tranqüilizador para a ninfa e seu filho Aristeu.

Tetis e as Oceânidas

Tetis, filha do Céu e da Terra, casou com o Oceano, seu irmão, e foi mãe de três mil ninfas chamadas Oceânidas. Dão-lhe ainda como filhos, não somente os rios e as fontes, mas também Proteu, Etra, mãe de Atlas, Persa, mãe de Circeu, etc. Conta-se que Júpiter, tendo sido amarrado e preso pelos outros deuses, Tetis pô-lo em liberdade, com auxílio do gigante Egeon.

Ela se chamava Tetis, palavra que em grego significa "ama, nutriz", sem dúvida porque é a deusa da água, matéria-prima que, segundo uma crença antiga, entra na formação de todos os corpos.

O carro dessa deusa é uma concha de maravilhosa forma e de uma brancura de marfim nacarado. Quando percorre o seu império, esse carro, tirado por cavalos-marinhos mais brancos do que a neve, parece voar, à superfície das águas. Ao redor dela, os delfins, brincando, saltam no mar; Tetis é acompanhada pelos Tritões que tocam trombeta com as suas conchas recurvas, e pelas Oceânidas coroadas de flores, e cuja cabeleira esvoaça pelas espáduas, ao capricho dos ventos.

Tetis, deusa do mar, esposa de Oceano, não deve ser confundida com Tetis, filha de Nereu e mãe de Aquiles.

Netuno (Poseidon)

Netuno ou Poseidon, filho de Saturno e de Réia, era irmão de Júpiter e de Plutão. Logo que nasceu, Réia o escondeu em um aprisco da Arcádia, e fez Saturno acreditar ter ela dado à luz a um potro que lhe deu para devorar. Na partilha que os três irmãos fizeram do Universo ele teve por quinhão o mar, as ilhas, e todas as ribeiras.

Quando Júpiter, seu irmão, a quem sempre serviu com toda a fidelidade, venceu os Titãs, seus terríveis competidores, Netuno encarcerou-os no Inferno, impedindo-os de tentar novas empresas. Ele os mantém por trás do recinto inexpugnável formado por suas ondas e rochedos.

Netuno governa o seu império com uma calma imperturbável. Do fundo do mar em que está sua tranqüila morada, sabe tudo quanto se passa na superfície das ondas. Se por acaso os ventos impetuosos espalham inconsideradamente as vagas sobre as praias, causando injustos naufrágios, Netuno aparece, e com a sua nobre serenidade faz reentrar as águas no seu leito, abre canais através dos baixios, levanta com o tridente os navios presos nos rochedos ou encalhados nos bancos de areia, - em uma palavra, restabelece toda a desordem das tempestades.

Teve como mulher Anfitrite, filha de Doris e de Nereu. Essa ninfa recusara antes desposar Netuno, e se escondeu para esquivar-se às suas perseguições. Mas um delfim, encarregado dos interesses de Netuno, encontrou-a ao pé do monte Atlas, e persuadiu-a que devia aceitar o pedido do deus; como recompensa foi colocada entre os astros. De Netuno ela teve um filho chamado Tritão, e muitas ninfas marinhas; diz-se também que foi a mãe dos Ciclopes.

O ruído do mar, a sua profundidade misteriosa, o seu poder, a severidade de Netuno que abala o mundo, quando com o tridente ergue os enormes rochedos, inspiram à humanidade um sentimento mais de receio do que de simpatia e amor. O deus parecia dar por isso, todas as vezes que se apaixonava de uma divindade ou de um simples mortal. Recorria então à metamorfose; mas mesmo assim, na maior parte das vezes, conservava o seu caráter de força e impetuosidade.

Representam-no mudado em touro, nos seus amores com a filha de Éolo; sob a forma de rio Enipeu, quando fazia Ifiomédia mãe de Ifialto e de Oto; sob a de um carneiro, para seduzir Bisaltis, como cavalo para enganar Ceres, enfim, como um grande pássaro nos amores com Medusa, e como um delfim quando se apaixonou por Melanto.

Asua famosa discórdia com Minerva, por causa da posse de Ática, é uma alegoria transparente em que os doze grandes deuses, tomados como árbitros, indicam a Atenas os seus destinos. Esse deus teve ainda uma desavença com Juno por causa de Micenas e com o Sol por causa de Corinto.

Quer a fábula de Netuno, expulso do céu com Apolo, por haver conspirado contra Júpiter, tenha construído as muralhas de Tróia, e que defraudado no seu salário, se tenha vingado da perfídia de Laomedonte destruindo os muros da cidade.

Netuno era um dos deuses mais venerados na Grécia e na Itália, onde possuía grande número de templos, sobretudo nas vizinhanças do mar; tinha também as suas festas e os seus espetáculos solenes, sendo que os do istmo de Corinto e os do Circo de Roma eram-lhe especialmente consagrados sob o nome de Hípio. Independente das Saturnais, festas que se celebravam no mês de julho, os romanos consagravam a Netuno todo o mês de fevereiro.

Perto do istmo de Corinto, Netuno e Anfitrite tinham as suas estátuas no mesmo templo, não longe uma da outra; a de Netuno era de bronze e media doze pés e meio de altura. Na ilha de Tenos, uma das Ciclades, tinha Anfitrite uma estátua colossal da altura de nove cúbitos. O deus do mar tinha sob a sua proteção os cavalos e os navegantes. Além das vítimas ordinárias e das libações em sua honra, os arúspices ofereciam-lhe particularmente o fel da vítima porque o amargor convinha às águas do mar.

Netuno é geralmente representado nu, com uma longa barba, e o tridente na mão, ora sentado, ora em pé sobre as ondas; muitas vezes; em um carro tirado por dois ou quatro cavalos, comuns ou marinhos, cuja parte inferior do corpo termina em cauda de peixe.

Proteu

Proteu, deus marinho, era filho de Oceano e de Tetis ou, segundo uma outra tradição, de Netuno e de Fênice. Segundo os gregos, a sua pátria é Palene, cidade da Macedônia. Dois dos seus filhos, Tmolos e Telégono, eram gigantes, monstros de crueldade. Não tendo podido chamá-los ao sentimento da humanidade, tomou o partido de retirar-se para o Egito, com o socorro de Netuno, que lhe abriu uma passagem sob o mar. Também teve filhas, entre as quais as ninfas Eidotéia, que apareceu a Menelau, quando voltando de Tróia esse herói foi levado por ventos contrários aobre a costa do Egito, e lhe ensinou o que devia fazer para saber de Proteu os meios de regressar à pátria.

Proteu guardava os rebanhos de Netuno, isto é, grandes peixes e focas. Para o recompensar dos trabalhos que com isso tinha. Netuno deu-lhe o conhecimento do passado, do presente e do futuro. Mas não era fácil abordá-lo, e ele se recusava a todos que vinham consultá-lo.

Eidotéia disse a Menelau que, para decidi-lo a falar, era preciso surpreendê-lo durante o sono, e amarrá-lo de maneira que não pudesse escapar, pois ele tomava todas as formas para espantar os que se aproximavam: a de leão, dragão, leopardo, javali; algumas vezes se metamorfoseava em árvore, em água e mesmo em fogo; mas se se perseverava em conservá-lo bem ligado, retomava a primitiva forma e respondia a todas as perguntas que se lhe fizessem.

Menelau seguiu ponto por ponto as instruções da ninfa. Com três dos seus companheiros, entrou de manhã, nas grutas em que Proteu costumava ir ao meio-dia descansar, juntamente com os rebanhos. Apenas Proteu fechou os olhos e tomou uma posição cômoda para dormir. Menelau e os seus três companheiros se atiraram sobre ele e o apertaram fortemente entre os braços. Era inútil metamorfosear-se: a cada forma que tomava, apertavam-no com mais força. Quando enfim esgotou todas as suas astúcias Proteu voltou à forma ordinária, e deu a Menelau os esclarecimentos que este pedia.

No quarto livro das Geórgicas, Virgílio, imitando Homero, conta que o pastor Aristeu, depois de haver perdido todas as suas abelhas, foi a conselho de Cirene, sua mãe, consultar Proteu sobre os meios de reparar os enxames, e para lhe falar, recorreu aos mesmos artifícios.

As Sereias

Quando, por uma noite calma de primavera ou de outono, o marinheiro deixa vogar docemente o barco perto das margens, nas paragens semeadas de rochedos ou de escolhos, ouve ao longe, no marulho das ondas, o gorjeio das aves marinhas. Esse gorjeio, entrecortado, às vezes, por gritos estridentes e zombeteiros, sobe aos ares e passa invisível com um estranho síbilo de asas, por cima da cabeça do marinheiro atento, dando-lhe a ilusão de um concerto de vozes humanas. A sua imaginação então lhe representa grupos de mulheres ou de raparigas que se divertem e procuram desviá-lo do seu caminho. Desgraçado dele se se aproxima do lugar em que a voz parece mais clara, isto é, dos rochedos à flor d'água onde, para as aves marinhas, a pesca é frutuosa; infalivelmente o seu barco se quebrará e se perderá entre os escolhos.

Tal é, sem dúvida, a origem da fábula das Sereias; mas a imaginação dos poetas criou-lhes uma lenda maravilhosa.

Elas eram filhas do rio Aqueló e da musa Calíope. Ordinariamente contam-se três: Parténope, Leucósia e Lígea, nomes gregos que evocam as idéias de candura, de brancura e de harmonia. Outros dão-lhes os nomes de Aglaufone, Telxieme e Pisinoe, denominações que exprimem a doçura da sua voz e o encanto das suas palavras.

Conta-se que no tempo do rapto de Prosérpina, as Sereias foram à terra de Apolo, isto é, a Sicília, e que Ceres, para puni-las por não haverem socorrido a sua filha, mudou-as em aves.

Ovídio, ao contrário, diz que as Sereias, desoladas com o rapto de Prosérpina, pediram aos deuses que lhes dessem asas para que fossem procurar a sua jovem companheira por toda a terra. Habitavam rochedos escarpados sobre as margens do mar, entre a ilha de Capri e a costa de Itália.

O oráculo predissera às Sereias que elas viveriam tanto tempo quanto pudessem deter os navegantes à sua passagem; mas desde que um só passasse sem para sempre ficar preso ao encanto das suas vozes e das suas palavras, elas morreriam. Por isso essas feiticeiras, sempre em vigília, não deixavam de deter pela sua harmonia todos os que chegavam perto delas e que cometiam a imprudência de escutar os seus cantos. Elas tão bem os encantavam e os seduziam que eles não pensavam mais no seu país, na sua família, em si mesmos; esqueciam de beber e de comer, e morriam por falta de alimento. A costa vizinha estava toda branca dos ossos daqueles que assim haviam perecido.

Entretanto, quando os Argonautas passaram nas suas paragens, elas fizeram vãos esforços para atraí-los. Orfeu, que estava embarcado no navio, tomou a sua lira e as encantou a tal ponto que elas emudeceram e atiraram os instrumentos ao mar.

Ulisses, obrigado a passar com o seu navio adiante das Sereias, mas advertido por Circe, tapou com cera as orelhas de todos os seus companheiros, e se fez amarrar, de pés e mãos, a um mastro. Além disso, proibiu que o desligassem se, por acaso, ouvindo a voz da Sereias, ele exprimisse o desejo de parar. Não foram inúteis essas precauções. Ulisses, mal ouviu as suas doces palavras e as suas promessas sedutoras, apesar do aviso que recebera e da certeza de morrer, deu ordem aos companheiros que o soltassem, o que felizmente eles não fizeram. As Sereias, não tendo podido deter Ulisses, precipitaram-se no mar, e as pequenas ilhas rochosas que habitavam, defronte do promontório da Lucárnia foram chamadas Sirenusas.

As Sereias são representadas ora com cabeça de mulher e corpo de pássaro, ora com todo o busto feminino e a forma de ave, da cintura até os pés. Nas mãos têm instrumentos: uma empunha uma lira, outra duas flautas, e a terceira gaitas campestres ou um rolo de música, como para cantar. Também pintam-nas com um espelho. Não há nem um autor antigo que nos tenha representado as Sereias como mulheres-peixe. Como muita gente atualmente as representam.

Pausânias conta ainda uma fábula sobre as Sereias: "As filhas de Aqueló, diz ele, encorajadas por Juno, pretenderam a glória de cantar melhor do que as Musas, e ousaram fazer-lhes um desafio, mas as Musas, tendo-as vencido, arrancaram-lhes as penas das asas, e com elas fizeram coroas." Com efeito, existem antigos monumentos que representam as Musas com uma pena na cabeça. Apesar de temíveis ou perigosas, as Sereias não deixaram de participar das honras divinas; tinham um templo perto de Sorrento.

 

11. Zeus

 

 

12. Baco Cadmo e o Oráculo

O rei de Tiro, Agenor, não encontrando sua filha Europa, que Júpiter mandara fosse levada para Creta, ordenou ao filho Cadmo que percorresse a terra até descobrir o paradeiro da irmã, e proibiu-lhe voltar à Fenícia sem ela. Cadmo, após buscá-la em vão, foi consultar o oráculo de Apolo para saber o que devia fazer, e dele recebeu a seguinte resposta: "Encontrarás num campo deserto uma novilha que ainda não suportou jugo nem puxou arado; segue-a, e ergue uma cidade no pasto em que ela se detiver. Darás ao lugar o nome de Beócia." Mal Cadmo saiu do antro de Apolo, viu uma vaca que ninguém vigiava e que caminhava lentamente; não lhe notou no cangote sinal nenhum de jugo; por conseguinte, seguiu-a, adorando em respeitoso silêncio o deus que lhe servia de guia. Passara o rio Cefisa e atravessara os campos de Panope, quando a novilha se deteve e, erguendo a cabeça, mugiu. Em seguida, olhou para os que a tinham seguido, e deitou-se sobre a relva.

Os Companheiros de Cadmo

Cadmo, após beijar a terra estrangeira e dirigir votos às montanhas e às planícies do país, resolveu oferecer um sacrifício a Júpiter, e ordenou aos companheiros que fossem buscar água. Havia nas proximidades uma antiga floresta que o ferro jamais tocara, no meio da qual existia uma gruta coberta de espinheiros; a entrada era baixíssima; e dela jorrava água em abundância. Tratava-se do retiro do dragão de Marte: o monstro era horrível, tinha a cabeça coberta de escamas amarelas, que brilhavam como ouro, dos olhos saia-lhe fogo e o corpo parecia inchado pelo veneno que continha. Exibia três fileiras de aguçadíssimos dentes e três línguas dotadas de movimentos incrivelmente rápidos.

Mal os companheiros de Cadmo entraram no antro do dragão, com a intenção de tirar água, o ruído que fizeram despertou o monstro, o qual começou a salivar; os infelizes fenícios foram todos mortos pelo dragão que a uns dilacerava com os dentes, a outros sufocava, enrodilhando-se-lhes em torno, ou envenenava com o hálito.

O Dragão de Marte

Entretanto Cadmo, espantado por notar que os companheiros não regressavam, tratou de procurá-los. Cobrindo-se da pele de um leão, empunhou a lança e o dardo, e entrou na floresta onde imediatamente percebeu o dragão de Marte, deitado sobre o corpo dos fiéis companheiros, sugando-lhes o sangue. Pegou, então, uma pedra de enorme tamanho, e atirou-a contra o monstro com tal impetuosidade que até as mais fortes muralhas e torres houveram estremecido.

Enquanto o herói contemplava o enorme tamanho do dragão abatido, ouve a voz de Palas que lhe ordenava semeasse os dentes do animal nos sulcos que trataria de abrir na terra. Cadmo obedece à ordem da deusa; imediatamente os torrões começaram a mover-se, e deles saiu uma safra de combatentes. Em primeiro lugar saíram lanças, depois os capacetes ornados de penas; em seguida perceberam-se os ombros, o peito e os braços armados dos novos homens, que começaram a lutar uns contra os outros, mal viram a luz. Igual fúria animou o bando inteiro; os infortunados irmãos encharcaram com o sangue a terra que os formara, e mataram-se a ponto de só restarem cinco. Estes passaram a ser companheiros de Cadmo, que os empregou na construção da cidade de Tebas, ordenada pelo oráculo. (Ovídio).

Núpcias de Cadmo e Harmonia

Harmonia, filha de Vênus e de Marte, foi a esposa que Júpiter destinava a Cadmo, e todos os deuses quiseram assistir às suas núpcias, realizadas na cidade recém-fundada. Cada um deles levou um presente a Harmonia, e Vênus entregou-lhe, entre outras coisas, um colar que se tornou famoso nas lendas tebanas. Segundo certas tradições, Júpiter teria dado Harmonia a Cadmo, para recompensar o herói pelos serviços recebidos na luta contra Tifão, que descobrira o raio do rei dos deuses e conseguira apoderar-se dele.

Júpiter e Semele

Cadmo teve do seu casamento com Harmonia um filho, Polidoro, e quatro filhas, Autonoe, Ino, Semele e Agave. Semele foi amada de Júpiter e tornou-se mãe de Baco; mas a nova paixão do senhor dos deuses não podia ficar por muito tempo oculta a Juno, que resolveu vingar-se antes do nascimento da criança trazida por Semele no seio. "A implacável deusa, resolvida a perder a rival, revestiu-se do aspecto de Beroé, a velha nutriz de Semele, e indo visitar a jovem, fez habilmente com que a conversação recaísse sobre Júpiter. Prouvera ao céu, disse à filha de Cadmo que seja o próprio Júpiter quem te ama! Mas eu temo por ti: quantas moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! Se aquele de quem me falas for verdadeiramente Júpiter, ele saberá dar-te provas certas, vindo visitar-te com a majestade que o acompanha, quando se aproxima de Juno." Enganada por tão artificiosas palavras, a filha de Cadmo pediu a Júpiter que lhe concedesse uma graça, sem especificar qual, e o pai dos deuses e dos homens jurou pelo Estige que a concederia. Descontente e inquieto com o que ela lhe pedira, mas não podendo retirar um juramento pelo Estige, reuniu os trovões e os raios e foi visitar Semele. Mas a habitação de um mortal não poderia resistir àquilo, e mal o deus se aproximou do palácio de Semele o incêndio se generalizou. A filha de Cadmo ficou reduzida a cinzas, e Júpiter mal teve tempo para retirar-lhe do seio o menino que ela ia dar à luz e encerrá-lo na sua coxa, onde ficou até o dia designado para o nascimento". (Ovídio).

Esse menino foi Dionísos, chamado pelos latinos Baco, ou Líber, que assim nasceu duas vezes e foi educado pelas ninfas de Nisa.

A Coxa de Júpiter

O poeta Nonnos assim narra o nascimento de Baco, ao sair da coxa de Júpiter: "Entretanto, ao vê-lo sair de Semele já queimada, Júpiter acolheu Baco semiformado, fruto de tal nascimento produzido pelo raio, encerrou-o na coxa, e aguardou o curso da lua que traria a maturidade. Dali a pouco a rotundidade amoleceu sob as dores do parto, e o menino, que passara do regaço feminino ao regaço masculino, nasceu sem deixar uma mãe, pois a mão do filho de Saturno, presidindo pessoalmente o parto, destruiu os obstáculos e soltou os fios que cosiam a coxa geradora. Mal se livrou do divino parto, as Horas, que lhe haviam estipulado o tempo, coroaram Baco de grinaldas de hera como presságio do futuro. Cingiram-lhe a cabeça carregada de flores e ornada dos chifres de touro (alusão a Baco-Hébon). Depois, tirando-o da colina da Dracônia que o vira nascer, Mercúrio, filho de Maia, voou, segurando-o, e foi o primeiro em chamá-lo de Dionisos, como lembrança de sua origem paterna. Com efeito, na língua de Siracusa, Niso quer dizer coxo, e Júpiter caminhava coxeando quando trazia na coxa o peso do filho. Chamaram-no igualmente Erafriotes, deus cosido, por ter estado cosido na coxa do próprio pai. (Nonnos).

Cita Diodoro de Sicília algumas das explicações dadas no seu tempo sobre o segundo nascimento ou encarnação de Baco. Segundo uns, tendo a vinha desaparecido pelo dilúvio de Deucalião, reapareceu na terra, quando as chuvas cessaram. Ora, a vinha nada mais é do que Baco que se mostrou aos homens pela segunda vez, após ter sido conservado por algum tempo na coxa de Júpiter, segundo a fórmula mitológica. Diziam outros que Baco nascia realmente duas vezes, contando como primeiro nascimento a germinação da planta, e como segundo a época em que a vinha dá uvas. Enfim, os que acreditavam na realidade histórica da personagem sustentavam que havia vários Bacos, reunidos pela credulidade popular num único.

É assim, diz Nonnos, que em conseqüência desses partos sobrenaturais, Mercúrio, seu aliado, leva nos braços o menino já semelhante à lua e que não verte uma lágrima. Incumbiu ele as ninfas, filhas do rio Lamos, de cuidar do enjeitado de Júpiter, de cabeleira ornada de cachos de uvas. Elas o acolheram nos braços e cada uma ofereceu o leite do seu seio. Deitado nos joelhos delas, e jamais dormitando, o deus lançava constantemente o olhar para o céu, e divertia-se batendo o ar com os pés. À vista do pólo, novo para ele, observava com estupefação a rotundidade dos astros da pátria, e sorria.

A Nutriz de Baco

"Mas em breve, diz Nonnos, a esposa de Júpiter notou o filho divino, e zangou-se. Por efeito da sua terrível cólera, as filhas de Lamos enfureceram-se sob a vergasta da péssima divindade. Em suas casas, precipitavam-se contra os que as seguissem; nas encruzilhadas, degolavam os viajantes. Lançavam gritos horríveis, e no meio de violentas convulsões, os seus esgares lhes desfiguravam o rosto; corriam de um lado a outro, entregues ao frenesi, umas vezes girando e saltando, outras fazendo esvoaçar ao vento a cabeleira. Os véus açafroados do peito tornavam-se brancos sob a espuma que lhes caía da boca. Na sua demência, teriam despedaçado o próprio Baco, ainda menino, se Mercúrio, deslizando passo a passo e em silêncio, não o tivesse raptado segunda vez para depô-lo na casa de Ino, que havia pouco dera à luz. Acabava ela de dar à luz o filho Melicerte, e estava a acalentá-lo; o seio regurgitava-lhe de leite. O deus falou-lhe com voz afetuosa: "Mulher, eis aqui um menino; recebe-o. É o filho de tua irmã Semele. Os raios do quarto nupcial não o atingiram, e as faíscas que perderam sua mãe o pouparam. Deixa-o ficar ao pé de ti, oculto, e cuida de que nem o olho do Sol, durante o dia, nem o da Lua, durante a noite, o vejam fora do teu palácio. Senão, Juno será capaz de o descobrir." Assim falando, Mercúrio, agitando nos ares as ágeis asas talares, voa e desaparece nos céus. Ino obedece; e ternamente abraça Baco, privado de mãe, e oferece o seio a ele e ao filho."

"Ino confiou Baco à particular vigilância da ninfa Místis, a de luxuosa cabeleira, que Cadmo criara, desde a infância, para o serviço íntimo de Ino. Ela é que tirava o menino do seio onde se alimentava, e o encerrava em tenebroso esconderijo. Mas a resplendente luz da testa anunciava, por si, o enjeitado de Júpiter: os muros mais sombrios do palácio se iluminavam, e o esplendor do invisível Baco dissipava todas as trevas. Ino, durante toda a noite, assistia aos folguedos do menino; e muitas vezes Melicerte, inseguro, engatinhava em direção a Baco, que balbuciava o grito de Evoé, e ia sugar com os lábios rivais o seio vizinho. Após o leite da ama, Místis dava ao jovem deus os demais alimentos e vigiava-o sem nunca adormecer. Hábil no seu inteligente zelo, e exercitada na arte mística cujo nome trazia, foi ela que instituiu as festas noturnas de Baco; foi ela que, para expulsar das iniciações o sono, inventou o tamborim, o guizos ruidosos e o duplo bronze dos ensurdecedores címbalos. Foi a primeira em acender os archotes para iluminar as danças da noite, e fez ressoar Evoé em honra de Baco amigo da insônia. Foi também a primeira, curvando as hastes das flores em grinalda, a cingir a cabeleira de uma faixa de pâmpanos, e teceu a hera em torno do tirso; depois, ocultou-lhe a ponta de ferro sob as folhas, para que o deus se não ferisse. Quis que os falos de bronze fossem presos aos seios nus das mulheres, e aos seus quadris as peles de cervos; inventou o rito do cesto místico, todo repleto dos instrumentos da divina iniciação, brinquedos da infância de Baco, e foi a primeira em prender em volta do corpo essas correias entrelaçadas, de répteis." (Nonnos).

"Foi ali, sob a guarda e sob os numerosos ferrolhos da discreta Místis, num canto do palácio, que os olhares infalíveis da desconfiadíssima Juno descobriram Baco. Jurou ela, então, pela onda infernal e vingadora do Estige, que inundaria de desventuras a casa de Ino; e sem dúvida teria exterminado o próprio filho de Júpiter, se Mercúrio, prevenido, o não tivesse imediatamente levado às alturas da floresta de Cíbele; Juno para lá correu com toda a velocidade dos seus pés. Mas Mercúrio chegou antes, e levou o deus chifrudo à deusa." (Nonnos).

Ino e Palemon

Entretanto Juno, que não conseguira atingir Baco, perseguiu com a sua cólera so que estavam ligados ao deus.

A morte de Semele, mãe de Baco, não lhe bastava. Quis ela ainda golpear Ino, irmã de Semele, que servira de nutriz a Baco. Ino orgulhava-se de ser filha de Cadmo e mulher de Atamas, rei de Tebas, a quem dera vários filhos. Juno desceu aos infernos em busca de Tisífona, uma das Fúrias, e ordenou-lhe que afligisse de loucura furiosa Atamas e Ino. A serva de Juno mal entra no palácio faz com que, tanto o rei como a rainha, sintam os terríveis efeitos da sua presença. Atamas, acometido de súbita fúria, corre pelo palácio, gritando: "Coragem, companheiros, estendei as redes nesta floresta; acabo de perceber uma leoa com dois leõezinhos." Põe-se, então, a perseguir a rainha que ele supõe ser um animal feroz, arranca-lhe dos braços o jovem Learco, seu filho, o qual, divertindo-se com o arrebatamento do pai, lhe estendia os braços, e, fazendo-o girar duas ou três vezes, atira-o contra uma parede, esmagando-o. Depois, ateia fogo ao palácio. Ino, tomada de semelhante furor, por efeito da dor que lhe causara a morte do filhinho, ou pelo fatal veneno espalhado sobre ela por Tisífona, dá gritos horríveis, trazendo ao colo Melicerte, e dizendo: Evoé, Baco! Juno sorri quando ouve pronunciar o nome desse deus. "Que teu filho, diz-lhe ela, te auxilie a passar o tempo nesse fúria que te possui."

À margem do mar, encontra-se um rochedo escarpado, cujo fundo serve de refúgio às águas que o cavaram; o alto está eriçado de pontas e avança bastante para o mar; Ino, a quem o furor dava novas forças, monta sobre esse rochedo e se precipita com Melicerte: as ondas que a recebem se cobrem de espuma e a sorvem. (Ovídio).

Vênus, que era aliada da família de Cadmo por sua filha Harmonia, foi ao encontro de Netuno e, mediante os cuidados de ambos, Ino e Melicerte, perdendo o que tinham de mortal, tornaram-se divindades marinhas. Ino tomou, então, o nome de Leucotéia e Melicerte o de Palemon.

Mal a notícia de tais fatos se espalhou pela cidade, as damas tebanas correram à margem do mar em busca da rainha e, seguindo-lhe as pegadas, chegaram ao rochedo de onde ela se havia atirado. Na aflição que lhes causa tão trágico desfecho, rasgam as vestes, arrancam os cabelos, e deploram as desventuras da infeliz casa de Cadmo, zangam-se com Juno, e censuram-lhe a injustiça e crueldade.

A deusa, ofendida com as suas queixas, diz-lhes: "Ides ser vós outras os mais terríveis exemplos dessa crueldade que tanto me censurais." O efeito segue-se à ameaça. A que mais afeiçoada fora a Ino, prestes a lançar-se ao mar, imobiliza-se e vê-se presa ao rochedo. Outra, enquanto fere o próprio seio, sente os braços tornarem-se duros e inflexíveis. Outra, com os braços estendidos para o mar, não mais consegue movê-los. E mais outra, que estava arrancando os cabelos com as mãos, sente que estas, e os cabelos se transformaram em pedra. A maioria sofre mudanças análoga e fica na mesma atitude em que estavam no momento da metamorfose. As demais companheiras da rainha, transformadas em aves, desde então esvoaçam no mesmo lugar e roçam as ondas com a ponta das asas. (Ovídio).

  

13. Baco na Corte de Cíbele

Vimos que o jovem deus, após inúmeras peripécias, acabou por ser conduzido a Cíbele.

Segundo outra tradição, Baco teria ido procurar Cíbele sem outro auxílio, a não ser o dele próprio. Juno, que não conseguia perdoar-lhe ser filho de Júpiter, feriu-o de loucura na infância, e o jovem deus quis, para curar-se, ir consultar o oráculo de Dodona, mas um lago formado subitamente lhe obstaculou a passagem. Logrou, contudo, atravessar, graças ao burro no qual estava montado, e em breve soube que Cíbele lhe devolveria a saúde, iniciando-o nos seus mistérios. Após errar por algum tempo presa ao delírio, chegou à Frígia, onde Cíbele o curou realmente, ensinando-lhe o seu culto. O uso dos címbalos, dos archotes, dos animais ferozes para conduzir o deus, provém com efeito dos cultos orientais.

A Infância de Baco

Nonnos, a quem é preciso sempre recorrer, quando se trata de Baco, assim narra a maneira pela qual se passaram os anos da sua infância: "A deusa criou-o, e, bem mocinho ainda, o fez montar no carro puxado por ferozes leões... Aos nove anos, já possuído da paixão da caça, ultrapassa na corrida as lebres; com a sua mãozinha, dominava o vigor dos veados malhados; trazia sobre o ombro o tigre intrépido de pele malhada, livre de qualquer laço, e mostrava a Réa nas mãos os filhotes que acabara de arrancar ao leite abundante da mãe; depois, arrastava terríveis leões vivos; e, fechando-lhes entre os punhos os pés reunidos, dava-os de presente à mãe dos deuses, a fim de que ela os mandasse atrelar ao seu carro. Réa observava sorrindo e admirava tal coragem e tais feitos do jovem deus, ao passo que à vista do filho vencedor de formidáveis leões, os olhos paternais de Júpiter irradiavam maior alegria ainda. Baco, mal ultrapassou o limite da infância, revestiu-se de suaves peles, e ornou os ombros com o envoltório malhado de um veado, imitando as variadas manchas da esfera celeste. Reuniu linces nos seus estábulos da planície da Frígia, e atrelou ao seu carro panteras, honrando a imagem cintilante da morada dos seus maiores. Foi assim que, desde cedo, desenvolveu o gosto montanhês ao pé de Réa, amiga das elevadas colinas; nos picos, os pãs rodeiam nos seus giros o jovem deus, também hábil dançarino; atravessam barrancos com os seus pés peludos, e, celebrando Baco nos seus tremendos saltos, fazem ressoar o chão debaixo dos seus pés de bode." (Nonnos).

Baco e Ampelos

Quando Baco estava na Ásia Menor, banhando-se com os sátiros nas águas do Pactolo e brincando com eles nas costas da Frígia, ligou-se da mais estreita amizade com um jovem sátiro chamado Ampelos. Em breve, tornaram-se inseparáveis; mas um touro furioso matou um dia o infeliz Ampelos, e Baco, não podendo consolar-se, derramou ambrósia nos ferimentos do amigo que foi metamorfoseado em vinha, e é precisamente esse divino suco que deu à uva a qualidade embriagadora. (Nonnos).

Baco, realmente, colheu um cacho de uvas e, espremendo o suco, disse: "Amigo, a partir deste instante serás o remédio mais poderoso contra as dores humanas."

Foi então que Baco começou a percorrer o Oriente: no Egito, vemo-lo em relação a Proteu; na Síria, luta contra Damasco, que se opõe à introdução da cultura da vinha. Vencedor, continua a viagem, atravessa os rios sobre um tigre, lança uma ponte sobre o Eufrates, e empreende a gigantesca expedição contra os indianos.

A Conquista da Índia

A lenda heróica de Baco parece ser apenas a história da plantação da vinha, e a narração dos efeitos produzidos pela embriaguez, desde que o vinho se tornou conhecido. O temor desses terríveis efeitos explica naturalmente a oposição que se lhe depara por toda parte, quando ensina aos homens o uso do vinho por ele personificado.

O culto de Baco apresenta grandes relações com o de Cíbele, e o caráter ruidoso das suas orgias relembra a algazarra que se fazia em homenagem à deusa. Mas a história da conquista da Índia dá às tradições em torno de Baco um caráter especialíssimo. Segundo vários mitólogos, as narrações que a isso se prendem só se teriam popularizado após a conquista de Alexandre. Creuzer considera, pelo contrário, essa história bastante antiga.

Nessa expedição memorável, as ninfas, os rios e Sileno, sempre montado no seu burro, formavam o cortejo particular do deus, mas o cortejo era engrossado por numeroso bando de pãs, de faunos, de sátiros, de Curetes e de seres estranhos, dos quais nos dá Nonnos uma nomenclatura pormenorizada no seu poema das Dionisíacas. Toda essa narração apresenta caráter fantástico e maravilhoso. Quando o rei da Índia, Deríades, quis atirar-se contra Baco, uns pâmpanos que brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os esforços: quando o exército do deus se encontra nas margens de um rio, o rio se transforma em vinho, a um sinal do deus, e os indianos sedentos que pretendem beber são imediatamente tomados por um delírio desconhecido.

"A voz do indiano, diz Nonnos, os seus negros compatriotas acorrem em multidão às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo, mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede, mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendo-se sobre o chão da margem, aspira profundamente o orvalho de Baco. Este, debruçado, aproxima-se da fonte tão vizinha, apoia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só tem à mão o fundo do pote quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos. Após assim sorverem o vinho à vontade, vêem as pedras duplicar-se, e julgam que a água se escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer ferver uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez inunda o inimigo. Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas, e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando dos bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma sombra de vitória. Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os júbilos guerreiros dos Coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os escudos. Um se deixa levar pelos cantos da musa báquica, e salta como nos coros dos sátiros; outro se enternece com o som do tamborim, e no seu gosto impelido ao delírio pelo sonoro ruído, atira ao vento a aljava inútil."

Baco em Tebas

Após percorrer a Ásia, Baco, que nascera em Tebas, quis também que esta cidade fosse a primeira da Grécia e conhecer-lhe o culto: disso é que lhe provém o nome de Baco tebano.

No começo da tragédia das bacantes, de Eurípedes, Baco dá a conhecer a sua encarnação e a sua chegada a Tebas. "Eis-me nesta terra dos tebanos, eu, Baco, gerado pela filha de Cadmo, Semele, após ser visitada pelo fogo dos raios; deixei a forma divina por outra mortal e venho visitar a fonte de Dirce e as águas de Ismenos. Vejo perto deste palácio o túmulo de minha mãe atingida pelo raio, e as ruínas fumegantes de sua morada, e a chama do fogo celeste ainda viva, eterna vingança de Juno contra minha mãe. Aprovo a piedade de Cadmo, que, tornando este lugar inacessível aos pés dos profanos, o consagrou à filha; e eu o sombreei por toda parte de pâmpanos verdejantes. Deixei os vales da Lídia, onde abunda o ouro, e os campos dos frígios; atravessei as planícies ardentes da Pérsia e as cidades da Bactriana, a Média coberta de pedras e a feliz Arábia, e a Ásia inteira, cujo mar salgado banha as margens cobertas de cidades florescentes, povoadas simultaneamente por uma mistura de gregos e de bárbaros, e é essa a primeira cidade grega em que entrei após ter conduzido para lá as danças sagradas e celebrado os meus mistérios, para manifestar a minha divindade aos mortais. Tebas é a primeira cidade da Grécia em que fiz ouvir os brados das bacantes cobertas de nébrida e armadas do tirso envolto em hera."

Baco e Licurgo

Baco, tendo levado o seu culto à Trácia, foi perseguido pelo rei do país, chamado Licurgo., o qual muito provavelmente assustado pelos efeitos da embriaguez, mandara fossem arrancadas todas as vinhas. Baco viu-se obrigado, para salvar-se, a atirar-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis, a quem deu, como recompensa pela hospitalidade, uma taça de ouro feita por Vulcano. Todas as bacantes e os sátiros que o haviam acompanhado foram lançados à prisão. Foi por castigo a tal feito que a região se viu atingida de esterilidade, e Licurgo, enlouquecido, matou pessoalmente seu próprio filho Drias. Tendo o oráculo declarado que o país só recobraria a fertilidade, depois de morto o rei ímpio, os súditos o encadearam ao monte Pangeu, e ali o pisaram com os cavalos. As bacantes livres, ensinaram os mistérios do novo deus à Trácia. A luta entre Baco e Licurgo está representada com diversas variantes nos monumentos antigos.

Baco e Perseu

A lenda de Baco, atirado ao mar e recolhido por Tétis a quem oferece uma taça de ouro, prende-se, segundo Ateneu, ao fabrico do vinho e traduz mitologicamente o hábito existente em certas regiões de se servir da água do mar para acelerar a fermentação da uva.

Em Argos, onde Juno era especialmente honrada, o culto de Baco encontrou graves dificuldades para se estabelecer. Os habitantes recusaram-se a honrá-lo, e mataram as bacantes que o acompanhavam. O deus feriu de loucura furiosa as mães, que começaram a dilacerar os próprios filhos. O herói Perseu, protetor de Argos, decidiu então combater Baco, e segundo um vaso grego, em que a cena está figurada, não parece ter tido vantagem. Entretanto, segundo outras tradições, teria sido vencedor e teria até lançado Baco ao lago de Lerna. Pausânias diz simplesmente que, quando a disputa terminou, Baco foi honrado em Argos, onde se lhe ergueu um templo.

Cita Creuzer uma vaso cujo tema consagra a introdução da vinha na Etólia. "Vemos ali, diz ele, Altéia, mulher rei de Calidon, conversando com Dionisos por ela apaixonado, do alto de uma janela, onde também no-la mostra uma pintura que completa esta, e que oferece o deus adormecido diante da porta, cujo limiar acaba de ser cruzado pelo marido que lhe cede o lugar. Sabe-se que, como preço de tal complacência, recebeu o presente da vinha, e que Altéia teve de Baco a famosa Dejanira, esposa de Hércules, como teve de Marte o herói Meleagro."

Baco e Erígone

Foi no reinado de Padião, filho de Erecteu, rei de Atenas, que Baco, acompanhado de Ceres, visitou pela primeira vez a Ática. Esse incidente mitológico tem certa importância na história, para mostrar que na opinião dos atenienses o cultivo da vinha e do trigo foi precedido no país pelo da oliveira, que Minerva lhes ensinara no mesmo instante da fundação da cidade.

Baco, chegado, foi à casa de um ateniense chamado Icário, que o recebeu muito bem; como recompensa pela hospitalidade Baco lhe ensinou a maneira de fazer vinho. Icário, fazendo-o, quis que o provassem os camponeses da redondeza, que o acharam delicioso. Mas embriagaram-se completamente, e, julgando que Icário os havia envenenado, atiraram-no a um poço. A visita de Baco a Icário está figurada em vários baixos-relevos.

Tinha Icário uma filha de extrema beleza, chamada Erígone, por quem Baco se apaixonou. A fim de unir-se a ela, metamorfoseou-se em cachos de uvas, e quando a jovem o percebeu sob tal forma, apressou-se em colhê-lo e comê-lo; foi assim que se tornou esposa do deus, de quem teve um filho chamado Estáfilos, cujo nome significa uva. Foi ele que, mais tarde, ensinou aos homens que, misturando-se água ao divino licor, este não mais produzia a embriaguez.

Quando Icário foi morto, Erígone nada sabia do que se passara, mas inquieta por não o ver regressar, tratou de procurá-lo e não tardou em ser atraída pelos uivos da pequenina cachorra Moera, que chorava ao pé do poço a que Icário fora atirado. Quando Erígone soube o que sucedera ao infeliz pai, foi tal o seu desespero que se enforcou. Baco, encolerizado, enviou aos atenienses um delírio furioso que os levou a se enforcarem no mesmo lugar em que haviam morrido Icário e a filha. O oráculo, consultado, consultado, respondeu que o mal cessaria quando tivessem sido punidos os culpados e prestadas homenagens às vítimas. Júpiter colocou Icário entre os astros e dele fez a constelação de Bootes. Erígone tornou-se a da Virgem, e a cachorra Moera passou a ser a da Canícula. Todas essas tradições se prendem à introdução do cultivo da vinha na Ática, e aos efeitos imprevistos da embriaguez. O sono de Erígone foi freqüentemente representado; Girodet fez dele o tema de uma das suas composições mais graciosas.

 

14. Pisque

Beleza de Psique

Tinha um rei três filhas belíssimas. Mas, por mais encantadoras que fossem as duas mais velhas, era possível encontrar na linguagem humana elogios proporcionados ao seu mérito, ao passo que a menor era de perfeição tão rara, tão maravilhosa, que não havia termos que a exprimissem. Os habitantes do país, os forasteiros, enfim todos acorriam, atraídos pela reputação de semelhante prodígio; e depois de contemplarem tal beleza de que nada se aproximava, ficavam confusos de admiração, e, prosternando-se, a adoravam com religioso respeito, como se se tratasse da própria Vênus.

Em breve, espalhou-se a nova de que era a própria Vênus que vinha habitar a terra sob a aparência de simples mortal, e o prestígio da verdadeira deusa ficou abalado. Ninguém mais ia a Cnido, ninguém mais ia a Pafos, ninguém mais navegava para a risonha ilha de Cítera. Os antigos templos de Vênus estavam vazios, as cerimônias negligenciadas, os sacrifícios suspensos, e os seus altares solitários só apresentavam uma cinza fria no lugar do fogo onde antes ardiam incensos. Mas quando Psique passava, o povo, apinhado, tomando-a por Vênus, lhe apresentava grinaldas, atirava-lhe flores, dirigia-lhe votos e preces. De todas as partes do mundo vinham peregrinos oferecer-lhe vítimas.

Ciúme de Vênus

Vênus, que do alto do céu via tudo, não pôde refrear a indignação. "Como? Dizia ela. Eu, Vênus, a primeira alma da natureza, origem e germe de todos os elementos, eu que fecundo o universo inteiro, devo partilhar com uma simples mortal as honras devidas à minha posição suprema! Deverá o meu nome, que é consagrado no céu, ser profanado na terra, terei eu de ver os meus altares descuidados por uma criatura destinada a morrer? Ah, a que assim usurpa os meus direitos vai arrepender-se da sua insolente beleza!"

Imediatamente chama o filho, o menino de asas, tão audaz, o qual, na sua perversidade, desafia a moral pública, arma-se de archotes e setas, cometendo com impunidade as maiores desordens e jamais fazendo o menor bem. Excita-o com as suas palavras, e diante dele dá vazão a todo o seu enorme despeito. "Meu filho, em nome da ternura que te une a mim, vinga tua mãe ultrajada; mas vinga-a plenamente. Só te peço uma coisa: faze que a jovem se inflame da mais violenta paixão pelo último dos homens, por um infeliz condenado pela sorte a não ter nem posição social, nem patrimônio, nem segurança de vida; enfim, por um ser de tal modo ignóbil que no mundo inteiro não se encontre outro igual!" Assim falando, beijava o filhinho amado.

O Oráculo de Apolo

Vênus, por sua vez, extravasava sua cólera, cujos efeitos já se faziam sentir, porque, enquanto as duas irmãs de Psique desposavam reis, a infeliz jovem, culpada de excesso de beleza, encontra por toda parte adoradores, mas não marido, e seu pai, desconfiado de que uma divindade qualquer obstaculasse o himeneu da filha, vai consultar o oráculo de Apolo que lhe ordena expor a filha num rochedo para um himeneu de morte. Seu marido não será um mortal: traz asas como as aves de rapina cuja crueldade ele possui, e escraviza os homens e os próprios deuses. Sempre é necessário obedecer, quando um deus fala. Após vários dias consagrados ao pranto e à tristeza, prepara-se a pompa do fúnebre himeneu. O archote nupcial é representado por archotes cor de fuligem e cinza. Os cantos jubilosos de himeneu se transformam em uivos lúgubres, e a jovem noiva enxuga as lágrimas com o próprio véu de casamento.

Psique Raptada por Zéfiro

Uma vez terminado o cerimonial de morte, conduziram a infeliz Psique ao rochedo em que deveria aguardar o esposo. Era uma montanha alcantilada. Quando ali chegou, apagaram-se os archotes nupciais que haviam iluminado a festa fúnebre do triste himeneu, e cada um voltou para casa. Os pais de Psique, encerrados no palácio, recusaram-se a sair, condenando-se às trevas eternas. Tremendo de espanto, Psique afogava-se nas lágrimas no pico da montanha, quando de súbito o delicado sopro do Zéfiro, agitando amorosamente os ares, faz ondular dos dois lados a veste que a protegia, cujas dobras se enchem invisivelmente. Soerguida se, violência, Psique reconhece que um sopro tranqüilo a transporta suavemente.

Mais leves que as nuvens, os graciosos meninos alados se elevam docemente no ar e arrebatam Psique sem lhe perturbarem o sono tranqüilo. Daí a pouco Psique desliza por um declive insensível até um profundo vale situado abaixo dela, e vê-se sentada no meio de uma relva coalhada de flores.

Deposta sobre espessa e tenra relva que formava um fresco tapete de verdura, ela olha em volta de si e percebe uma fonte transparente como cristal, no meio de árvores altas e copadas. Perto das margens, ergue-se uma morada real não construída por mãos mortais senão mediante arte que só pode ser divina. Os muros estão recobertos de baixos-relevos de prata e os soalhos são de mosaico de pedras preciosas cortadas em mil pedacinhos e combinadas em variadas pinturas.

O Palácio de Psique

Comovida pelo encanto de tão lindo lugar, Psique cria ânimo a ponto de ultrapassar o limiar, e, cedendo à atração de tão grande número de maravilhas, lança cá e lá olhares de admiração. Mas o que ao mesmo tempo a impressiona é a solidão absoluta em que se encontra. Uma voz saída de um corpo invisível lhe fere, subitamente, os ouvidos: "Por que, soberana minha, vos admirais de tão grande opulência? Tudo quanto vedes é vosso. Entrai nestes aposentos, aguarda-vos um banho, para refazerdes as forças, e o banquete real que vos é destinado não se fará esperar. Nós, cuja voz estais ouvindo, estamos às vossas ordens, e executaremos atentamente as vossas ordens."

Psique viu realmente um repasto magnificamente preparado. Sentou-se, então, à mesa, e diante dela se sucediam os vinhos mais deliciosos, as iguarias mais incomuns, mas aparentemente trazidas por um sopro, pois não distinguia nenhum ser humano. Um delicioso concerto a alegrou, mas os cantores eram invisíveis. Admirada, e ao mesmo tempo, assustada, pensando no esposo que aguardava, cedeu, no entanto, à fadiga e adormeceu sem que ninguém lhe perturbasse o repouso. Quando desperta, ouve as mesmas vozes misteriosas que na véspera, e recebe os mesmos cuidados de seres que não consegue distinguir. Vários dias transcorrem sem que lhe seja dado ver alma viva. Se o esposo invisível a visitou foi com certeza quando estava adormecida, pois ela nada enxergou, e o amo do palácio em que está lhe é tão desconhecido como os criados que a servem.

A borboleta, símbolo da alma, esvoaça sobre a cabeça da jovem sentada num cabeço de relva; o seu aspecto ingênuo e algo espantado se explica pela presença de Cupido que, invisível para ela, lhe dá um beijo na testa.

No entanto, o esposo existia, pois embora ela o não visse, lhe ouvia a doce voz a preveni-la de um perigo que correria. "Psique, minha doce amiga, dizia a voz, minha companheira adorada, a sorte cruel te ameaça de um terrível perigo; tuas irmãs, já turbadas com a idéia da tua morte, procuram-te, e não tardarão em chegar a este rochedo. Não te comovas com os seus falsos queixumes, e não cedas aos perniciosos conselhos que elas te derem para levar-te a me ver. E acrescentou que a sacrílega curiosidade os separaria para sempre e a mergulharia num abismo de males. Psique agradeceu ao marido os conselhos. Aliás, o tom daquela voz era tão penetrante que se sentia atraída a ele por uma força desconhecida. Assim, prometeu-lhe que obedeceria.

As Irmãs de Psique

Entretanto, Psique, lembrando-se do oráculo de Apolo, tremia de espanto, pensando que, apesar da voz tão doce, fosse o esposo sem dúvida um horrível monstro, visto que o temiam homens e deuses. Estando a devanear, ouviu de súbito, ao longe, vozes de mulheres, de mistura com gemidos e soluços, e, pouco depois, escutando, reconheceu-as pelas de suas irmãs que a choravam. Comoveu-se, apesar de tudo, e, desejando tranqüilizar a família, pediu mentalmente ao invisível marido permissão para dispor de Zéfiro.

As duas irmãs foram então arrebatadas como o fora Psique e transportadas para o palácio. Após os primeiros abraços e beijos, Psique, com insistência de criança, mostrou-lhes os magníficos móveis, os deliciosos jardins, os terraços de onde se descortinavam horizontes sem fim. Tantas maravilhas só lograram aumentar o ciúme nutrido pelas duas irmãs havia tempo, e elas a cobriram de perguntas embaraçadoras sobre o esposo que tanta riqueza lhe proporcionava. A pobre Psique, que ainda não o vira, não pôde satisfazer-lhes a indiscreta curiosidade. Todos os dias elas lhe pintavam o marido como horrível dragão repulsivo. A infeliz não resistiu.

A Gota de Azeite

Chegada a noite, espera que todos estejam dormindo na casa. Acende, então, a sua lâmpada, aproxima-se do leito e reconhece o filho de Vênus, perto de quem estão o arco, a aljava e as setas. Psique pega uma e fere levemente um dos dedos, inoculando, assim, em si própria e em elevada dose de amor ao próprio Cupido. Mas enquanto contempla com arrebatamento o deus que lhe é esposo, cai sobre o ombro de Cupido uma gota de azeite. A partir de então, já Psique não tem mais esposo, pois Cupido desaparece, deixando-a no seu palácio solitário.

Psique, desesperada, corre à doida pelos campos e se precipita a um rio de águas revoltas. Mas o rio não a quer, e as ondas a devolvem sã e salva à margem. O deus , que lá se encontrava, lhe revela as impiedosas ordens que Cupido recebera de Vênus.

As irmãs de Psique, desejosas de saber se o conselho fora seguido, vão ao rochedo do qual Zéfiro as arrebatara. Quando o vento começa a soprar, julgam que é o mensageiro que vai conduzi-las ao pé da irmã e, entregandose-lhe sem desconfiança, tombam ao pé do rochedo onde foram encontradas no dia seguinte, mortas. Zéfiro, com efeito, não pôde receber ordens de Cupido, pois Cupido está doente, e, vigiado no leito, ouve as censuras de sua mãe ultrajada: "Que lindo pai de família não seríeis! Dizia-lhe Vênus. E eu, por minha vez, não tenho idade e dignidade para que me chamem de vovó?

Cólera de Vênus

Vênus manda procurar Psique por toda a terra, e, na sua cólera cheia de ciúme, pergunta a si própria que suplício lhe deve infligir. Não contente de mandar que a vergastem, quer impor-lhe trabalhos superiores às suas forças, e ordena-lhe que vá aos infernos pedir a Prosérpina uma caixa de beleza de que necessita para o seu atavio. Psique parte, certa de que nunca mais voltará; mas no caminho encontra uma velha torre que sabe falar e lhe ensina como deve proceder, recomendando-lhe bem, quando estiver de posse da caixa, que não ceda à tentação de uma curiosidade que já lhe foi funesta uma vez.

Esclarecida pela torre, Psique atravessa o rio das mortes na barca de Caronte, faz calar Cérbero atirando-lhe um bolo com mel e chega à presença de Prosérpina que lhe entrega a caixa de beleza exigida por Vênus. Quando volta à terra, Psique, sozinha, e de posse da caixa cujo conteúdo conhece, começa a refletir. Por que não há de servir à própria Psique essa beleza que o seu odioso tirano a mandou procurar no meio de mil perigos? E se roubasse uma partezinha, quem sabe se não conseguiria reconquistar o marido desaparecido? Após muita hesitação, a caixa cede finalmente ao esforço por ela feito, mas em vez de beleza o que sai é um vapor sonífero e Psique, desmaiada, tomba com a face voltada para o chão. Perto dela, todavia, está um amigo, o próprio Cupido, que, vigiado de perto no palácio de sua mãe, conseguiu, não obstante, escapar pela janela. Desperta Psique com a ponta de uma das suas setas e pede-lhe que vá à casa de sua mãe, que ele se incumbirá do resto.

As Núpcias de Psique

Cupido voa ao pé do trono de Júpiter que, enternecido pelas suas lágrimas, dá a imortalidade a Psique e convida todos os deuses para o banquete de núpcias.

Psique, admitida ao seio dos imortais, torna-se inseparável do marido. O sentido da alegoria é fácil de compreender. Psique é o símbolo da alma: uma indiscreta curiosidade a impeliu e ela sofreu espantosas torturas. Mas, purificada por uma série de provas de que saiu vitoriosa, encontra a felicidade com a imortalidade.

"A ficção do Amor e de Psique, reúne em maravilhosa aliança o gênio da forma, que lisonjeia os sentidos, e o do fundo que mergulha a alma num devaneio sem fim. Eros, segurando uma borboleta suspensa acima de um archote é, encarado poeticamente, um perfeito emblema dos tormentos do amor; encarado no sentido dos mistérios, esse emblema contém a idéia profunda e salutar das manchas da matéria e dos sofrimentos da alma purificada pelo fogo do impuro contato."

A Alma Humana

Segundo as crenças admitidas pelos filósofos, e que, de acordo com alguns escritores, teriam sido objeto de ensino especial nos mistérios, as almas existem anteriormente ao nascimento terreno, e são atraídas para a vida pela volúpia, ou se assim quisermos, por Vênus. Giram em torno da terra, como as borboletas em torno da luz, e, quando chegam bem perto, não podem mais afastar-se e são condenadas à vida, cuja imagem sedutora vêem num espelho místico, tão freqüentemente representado nas urnas fúnebres. Sofrem a tentação de beber na taça da vida, na taça de Baco, e, mal tocam com os lábios o licor sagrado, se encarnam num corpo. "A união das almas com os corpos mortais, diz Creuzer, se deve a várias causas: diversos motivos as impelem para as esferas inferiores. Algumas ali descem, porque ainda não tinham descido e são necessárias à manutenção da economia do mundo. São as almas novas ou noviças. Outras voltam aos corpos para expiarem culpas anteriores. Outras, enfim, cedem voluntariamente à sua inclinação pela terra. Tal inclinação provém de haverem elas contemplado o espelho, o mesmo espelho em que se vira Dionísio, antes de criar as existências individuais. Mal vêem a própria imagem, um desejo violento se apodera de todas elas, e o que almejam é descer e viver individualmente. As almas, na sua sede de existência individual, abandonam a morada celestial e partem em busca de novos destinos. Uma vez que tenham bebido na taça de Liber-Pater, embriagadas, apaixonadas pela matéria, perdem pouco a pouco a recordação da origem. E é tal esquecimento que as impele a unir-se aos corpos. As melhores dentre elas, temendo o nascimento, evitam a fatal beberagem cuja sedução as conduzirá à terra. Até entre as que não sabem resistir, há uma diferença. As mais nobres bebem comedidamente, prendem-se fortemente ao Gênio tutelar que lhes é destinado para acompanhá-las na Terra, têm os olhos fitos nele e obedecem-lhe à voz. Outras, porém, não são assim. Bebem a largos sorvos, e este mundo, que não passa de tenebrosa caverna, lhes parece belo. Acabam, pois, de esquecer-se, fascinadas pelos atrativos, pelas delícias da gruta de Dionísio, símbolo do mundo sensível e das suas voluptuosidades." (Creuzer).

"O que chamamos vida, diz Cícero, é uma verdadeira morte. A nossa alma só começa a viver quando, livres dos entraves do corpo, participa da eternidade e, de fato, as antigas tradições nos ensinam que a morte foi concedida pelos deuses imortais, como recompensa aos que eles amavam." (Cícero).

"Os que choramos não nos foram tirados para sempre, e não estão perdidos para nós; estão apenas distantes da nossa vista e do nosso contato por determinado tempo. Assim, quando nós também chegarmos ao termo que a natureza nos prescreveu, voltaremos a privar com eles." (Cícero).

 

15a. A Primeira Geração Divina e Urano a Crono

À primeira fase do Cosmo segue-se o que se poderia chamar estágio intermediário, em que Úrano (Céu) se une a Géia (Terra), de que procede numerosa descendência: Titãs, Titânidas, Ciclopes, Hecatonquiros, além dos que nasceram do sangue de Úrano e de todos os filhos destes e daqueles.

A união de Úrano e Géia é o que se denomina hierogamia, um casamento sagrado, cujo objetivo precípuo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra. É que, o casamento sagrado, "atualiza a comunhão entre os deuses e os homens; comunhão, por certo passageira, mas com significativas conseqüências. Pois a energia divina convergia diretamente sobre a cidade - em outras palavras, sobre a "Terra" - santificava-a e lhe garantia a prosperidade e a felicidade para o ano que começava". Essas hierogamias se encontram em quase todas as tradições religiosas. Simbolizam não apenas as possibilidades de união com os deuses, mas também uniões de princípios divinos que provocam certas hipóstases. Uma das mais célebres dessas uniões é a de Zeus (o poder, a autoridade) e Têmis (a justiça, a ordem eterna) que deu nascimento a Eunomia (a disciplina), Irene (a paz) e Dique (a justiça).

Curioso que o casamento, instituição que preside à transmissão da vida, aparece é muitas aureolado de um culto que exalta e exige a virgindade, simbolizando, vezes assim, a divina da vida, de que as uniões do homem e da mulher são apenas origem projeções, receptáculos, instrumentos e canais transitórios. No Egito havia as esposas de Amondeus da fecundidade. Eram normalmente princesas, consagradas ao deus e , que dedicavam sua virgindade a essa teogamia. Em Roma, as Vestais, sacerdotisas de Vesta, deusa da lareira doméstica, depois deusa da Terra, a Deusa Mãe, se caracterizavam por uma extrema exigência de pureza.

Retornando à primeira geração divina, temos, inicialmente, o seguinte quadro:

Úrano è Géia

Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono

Titânidas: Téia, Réia, Têmis, Mnemósina, Febe, Tétis

Ciclopes: Arges, Estérope, Brontes

Hecatonquiros: Coto, Briaréu, Gias

Titãs

Em grego (Titán), é aproximado, em etimologia popular, de (títaks),  rei, e (titéne), rainha, termos possivelmente de procedência oriental: nesse caso, Titã significaria "soberano, rei". Carnoy prefere admitir que os Titãs tenham sido primitivamente deuses solares e seu nome se explicaria pelo "pelágico" tita, brilho, luz. A primeira hipótese parece mais clara e adequada às funções dos violentos Titãs no mito grego. Os Titãs simbolizam, "as forças brutas da terra e, por conseguinte, os desejos terrestres em atitude de revolta contra o espírito", isto é, contra Zeus. Juntamente com os Ciclopes, os Gigantes e os Hecatonquiros representam eles as manifestações elementares, as forças selvagens e insubmissão da natureza nascente, prefigurando a primeira etapa da gestação evolutiva. Ambiciosos, revoltados e indomáveis, adversários tenazes do espírito consciente, patenteado em Zeus, não simbolizam apenas as forças brutas da natureza, mas, lutando contra o espírito, exprimem a oposição à espiritualização harmonizante. Sua meta é a dominação, o despotismo.

Oceano

Em grego (Okeanós), sem etimologia ainda bem definida. É possível que se trate de palavra oriental com o sentido de "circular, envolver". Parece que Oceano era concebido, a princípio, como um rio-serpente, que cercava e envolvia a terra. Pelo menos esta é a idéia que do mesmo faziam os sumérios, segundo os quais a Terra estava sentada sobre o Oceano, o rio-serpente. No mito grego, Oceano é a personificação da água que rodeia o mundo: é representado como um rio, o Rio-Oceano, que corre em torno da esfera achatada da terra, como diz Ésquilo em Prometeu Acorrentado: Oceano, cujo curso, sem jamais dormir, gira ao redor da Terra imensa.

Quando, mais tarde, os conhecimentos geográficos se tornaram mais precisos, Oceano passou a designar o Oceano Atlântico, o limite ocidental do mundo antigo. Representa o poder masculino, assim como Tétis, sua irmã e esposa, simboliza o poder e a fecundidade feminina do mar. Como deus, Oceano é o pai de todos os rios, que, segundo a Teogonia, são mais de três mil, bem como das quarenta e uma Oceânidas, que personificam os riachos, as fontes e as nascentes. Unidas a deuses e, por vezes, a simples mortais, são responsáveis por numerosa descendência.

O em razão mesmo de sua vastidão, aparentemente sem limites, é a imagem Oceano, da indistinção e da indeterminação primordial.

De outro lado, o simbolismo do Oceano se une ao da água, considerada como origem da vida. Na mitologia egípcia, o nascimento da Terra e da vida era concebido como uma emergência do Oceano, à imagem e semelhança dos montículos lodosos que cobrem o Nilo, quando de sua baixa. Assim, a criação, inclusive a dos deuses, emergiu das águas primordiais. O deus primevo era chamado a Terra que emerge. Afinal, as águas, "simbolizam a soma de todas as virtualidades: são a fonte, a origem e o reservatório de todas as possibilidades de existência. Precedem a todas as formas e suportam toda a criação".

Oceano e suas filhas, as Oceânidas, surgem na literatura grega como personagens da gigantesca tragédia de Ésquilo, Prometeu Acorrentado. Oceano, apesar de personagem secundária na peça, um mero tritagonista, é finalmente marcado por Ésquilo: tímido, medroso e conciliador, está sempre disposto a ceder diante do poderio e da arrogância de Zeus. Com o caráter fraco de seu pai contrastam as Oceânidas, que formam o coro da peça: preferem ser sepultadas com Prometeu a sujeitar-se à prepotência do pai dos deuses e dos homens.

Mesmo quando os Titãs, após a mutilação de Úrano, se apossaram do mundo, Oceano resolveu não participar das lutas que se seguiram, permanecendo sempre à parte como observador atento dos fatos...

Dada a pouca ou nenhuma importância dos Titãs Ceos, Crio e Hiperíon no mito grego, a não ser por seus casamentos, filhos e descendentes, vamos diretamente a Crono.

Ciclope

Em grego (Kýklops), "olho redondo", pois os Ciclopes eram concebidos como seres monstruosos com um olho só no meio da fronte. Demônios das tempestades, os três mais antigos são chamados, por isso mesmo, Brontes, o trovão, Estéropes, o relâmpago, e Arges, o raio.

Os mitógrafos distinguem três espécies de Ciclopes: os Urânios (filhos de Úrano e Géia), os Sicilianos, companheiros de Polifemo, como aparece na Odisséia de Homero e os Construtores. Os primeiros, Brontes, Estéropes e Arges são os urânios. Encadeados pelo pai, foram, a pedido de Géia, libertados por Crono, mas por pouco tempo. Temendo-os, este os lançou novamente no Tártaro, até que, advertido por um oráculo de Géia de que não poderia vencer os Titãs sem o concurso dos Ciclopes, Zeus os libertou definitivamente. Estes, agradecidos, deram-lhe o trovão, o relâmpago e o raio. A Plutão ou Hades ofereceram um capacete que podia torná-lo invisível e a Posídon, o tridente. Foi assim, que os Olímpicos conseguiram derrotar os Titãs.

A partir de então tornaram-se eles os artífices dos raios de Zeus.

Como o médico Asclépio, filho de Apolo, fizesse tais progressos em sua arte, que chegou mesmo a ressuscitar vários mortos, Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, fulminou-o. Apolo, não podendo vingar-se de Zeus, matou os Ciclopes, fabricantes do raio, que eliminaria o deus da medicina.

O segundo de Ciclopes, impropriamente denominados sicilianos, tendem a confundir-se com aqueles de que fala Homero na Odisséia. Estes eram selvagens, gigantescos, dotados de uma força descomunal e antropófagos. Viviam perto de Nápoles, nos chamados campos de Flegra. Moravam em cavernas e os únicos bens que possuíam eram seus rebanhos de carneiros. Dentre esses Ciclopes destaca-se Polifemo, imortalizado pelo cantor de Ulisses e depois, na época clássica, pelo drama satírico de Eurípedes, o Ciclope, o único que chegou completo até nós.

Na época alexandrina, os Ciclopes "homéricos" transformaram-se em demônios subalternos, ferreiros e artífices de todas as armas dos deuses, mas sempre sob a direção de Efesto, o deus por excelência das forjas. Habitavam a Sicília, onde possuíam uma oficina subterrânea. De antropófagos se transmutaram na erudita poesia alexandrina em frágeis seres humanos, mordidos por Eros.

A terceira leva de Ciclopes proviria da Lícia. A eles era atribuída a construção de grandes monumentos da época pré-histórica, formados de gigantescos blocos de pedra, cujo transporte desafiava as forças humanas. Ciclopes pacíficos, esses Gigantes se colocaram a serviço de heróis lendários, como Preto, na fortificação de Tirinto, e Perseu, na construção da fortaleza de Micenas.

 

15b. A Segunda Geração Divina

 

Crono

Réia

Héstia

Hera

Deméter

Hades

Posídon

[Zeus]

 

 

Consumada a mutilação de Úrano e seu afastamento do governo do mundo, Crono, tendo lançado no Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, apoderou-se do poder, casando-se com sua Irmã Réia. Desse enlace nasceram Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon e Zeus.

Héstia, deusa da lareira. Da mesma família etimológica que o latim Vesta (Vesta), cuja fonte é o indo-europeu wes, "queimar", "passar pelo fogo, consumir". Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou, mais precisamente, é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto pré-helênico do lar.

Se bem que muito cortejada por Apolo e Posídon, obteve de Zeus a prerrogativa de guardar para sempre a virgindade. Foi ininterruptamente cumulada de honras excepcionais, não só por parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades, tornando-se a única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo. Assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos deuses. Essa imobilidade, todavia, fez que a deusa da lareira não desempenhasse papel algum no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um princípio abstrato, a Idéia da lareira, do que como uma divindade pessoal, o que explica não ser a grande deusa necessariamente representada por imagem, uma vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la.

Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de qualquer ato ou acontecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida nutriente, sem ser ela própria fecundante. É preciso observar, além do mais, que toda realização, toda prosperidade, toda vitória são colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia, como Vesta e suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeando-lhes êxito e proteção.

Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de seu simbolismo será sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as "chamas" do nível telúrico, do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto do próprio Agni.

Consoante o I Ching, o fogo correspondente ao sul, à cor vermelha, ao verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões, particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento intuitivo. A significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito divino: Brahma é idêntico ao fogo (Gîtâ, 4,25).

O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na noite de Páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro, destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado como instrumento de punição e juízo de Deus (Sl 50,3; Mc 9,49; Tg 5,3; Ap 8,9). Cristo fala de um fogo que não se apagará (Mt 5,32; 18,8; 25,41). Deus será como um fogo distinguindo o bom do menos bom (Sl 17,3; 1Cor 3,15). Sua força, que tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de agir como fogo (Mt 3,11).

Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do condicionamento humano, uma verdadeira apoteose, como a de Héracles, que, para se despir do invólucro mortal, subiu a uma fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmos taoístas, entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica, fogo este que é simbolizado pela Salamandra.

O fogo sacrificial do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro carnal. O aspecto destruidor do fogo comporta igualmente uma relação negativa e o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a forja: seu fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de demiurgo e de demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, "o que leva a luz celeste", precipitado nas fornalhas do inferno: um fogo que brilha sem consumir, mas exclui para sempre toda e qualquer possibilidade de regeneração.

Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação, as mais das vezes, ritos de passagem, são característicos de culturas agrárias. Configuram certamente os incêndios dos campos, que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de epidemias. O grande político e excepcional escritor Caio Júlio César (100-44 a.C.) nos fala, no B. Gal., 6, 16, 9, de gigantescos manequins, confeccionados de vime, que os mesmos druidas enchiam de homens e animais e transformavam em fogueira.

O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a seu princípio contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh do mito maia, após sua incineração, renascem de um rio, onde suas cinzas foram lançadas.

Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, Maia-Quiché, efetuando uma nova diferenciação dos princípios antagônicos, fogo e água, que lhes presidiram à morte e ao renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é complementar da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de dilúvios, grandes secas ou incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre, ctônio, representa a força profunda que permite a complexio oppositorum, a união dos contrários, a ascensão, a sublimação da água em nuvens, isto é, a transformação da água terrestre, água impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o motor, o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o fogo ctônio configura a sabedoria humana e o urânico, a sabedoria divina.

Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela está intimamente ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo pela fricção, pelo atrito, pelo vaivém, imagem do ato sexual, enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à aquisição do mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a "progenitura" de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma, o caráter ambivalente do fogo: pode ser tanto de origem divina quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas.

Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de purificação e regeneração, mas o é igualmente de destruição. Temos aí nova inversão do símbolo. Purificadora e regeneradora a água também o é. Mas o fogo se distingue da água na medida em que ele configura a purificação pela compreensão, até sua forma mais espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do desejo até sua forma mais sublime, a bondade.

Hera

Hera, nome de etimologia controvertida. Talvez seja da mesma família etimológica que (Héros), herói, como designativo dos mortos divinizados e protetores e, nesse caso, Hera significaria a protetora, a guardiã. A base seria o indo-europeu serua, da raiz ser-, "guardar", donde o latim seruare, "conservar, velar sobre".

Como todas as suas irmãs e irmãos, exceto Zeus, foi engolida por Crono, mas salva pelo embuste de Métis e os combates vitoriosos de seu futuro esposo.

Durante todo o tempo em que Zeus lutava contra os Titãs, Réia entregou-a aos cuidados de Oceano e Tétis, que a criaram nas extremidades do mundo, o que irá provocar para sempre a gratidão da filha de Crono. Existem outras tradições que lhe atribuem a educação às Horas, ao herói Têmeno, filho de Pelasgo, ou ainda às filhas de Astérion, rei de Creta. Após seu triunfo definitivo, Zeus a desposou, em núpcias soleníssimas. Era, na expressão de Hesíodo, a terceira esposa (a primeira foi Métis e a segunda, Têmis), à qual o deus se uniu em "justas núpcias". Conta-se, todavia, que Zeus e Hera se amavam há muito tempo e que se haviam unido secretamente, quando o deus Crono ainda reinava sobre os Titãs. O local, onde se realizaram essas "justas núpcias" varia muito, consoante as tradições. A mais antiga e a mais "canônica" dessas variantes coloca-as no Jardim das Hespérides, que é, em si mesmo, o símbolo mítico da fecundidade, no seio de uma eterna primavera. Os mitógrafos sempre acentuaram, aliás, que os pomos de ouro do Jardim das Hespérides foram o presente de núpcias que Géia ofereceu a Hera e esta os achou tão belos, que os plantou em "seu Jardim", nas extremidades do Oceano. Homero, na Ilíada, desloca o casamento divino do Jardim das Hespérides para os píncaros do monte Ida, na Frígia. Outras tradições fazem-no realizar-se na Eubéia, por onde o casal passou, quando veio de Creta. Em diversas regiões da Grécia, além disso, celebravam-se festas para comemorar as bodas sagradas do par divino do Olimpo. Ornamentava-se a estátua da deusa com a indumentária de uma jovem noiva e conduziam-na em procissão pela cidade até um santuário, onde era preparado um leito nupcial. O idealizador de tal cerimônia teria sido o herói beócio Alalcômenes (Alalcômenes é um herói da Beócia, fundador da cidade do mesmo nome. Atribui-se a ele a invenção das hierogamias de Zeus e Hera, isto é, cerimônias religiosas em que se re-atualizava o casamento dos dois. Conta-se que Hera, constantemente enganada por Zeus e cansada das infidelidades do esposo, veio até Alalcômenes queixar-se do marido. O herói aconselhou-a a que mandasse executar uma estátua dela mesma, mas confeccionada de carvalho (árvore consagrada a Zeus), e fizesse transportá-la solene e ricamente paramentada, seguida de grande cortejo, como se fosse uma verdadeira procissão nupcial. A deusa assim o fez, instituindo uma festa denominada Festas Dedáleas. Segundo a crença popular, este rito re-atualizava, rejuvenescia a união divina e conferia-lhe eficácia por magia simpática, pondo um freio, ao menos temporário, às infidelidades do marido...).

Como legítima esposa do pai dos deuses e dos homens, Hera é a protetora das esposas, do amor legítimo. A deusa, no entanto, sempre foi retratada como ciumenta, vingativa e violenta. Continuamente irritada contra o marido, por suas infidelidades, moveu perseguição tenaz contra suas amantes e filhos adulterinos. Héracles foi uma de suas vítimas prediletas. Foi ela a responsável pela imposição ao herói dos célebres Doze Trabalhos. Perseguiu-o, sem tréguas, até a apoteose final do filho de Alcmena. Por causa de Héracles, aliás, Zeus, certa vez a puniu exemplarmente. Quando o herói regressava de Tróia, após tomá-la, Hera suscitou contra seu navio uma violenta tempestade. Irritado, Zeus suspendeu-a de uma nuvem, de cabeça para baixo, amarrada com uma corrente de ouro e uma bigorna em cada pé. Foi por tentar libertar a mãe de tão incômoda posição, que Hefesto foi lançado no vazio pelo pai. Perseguiu implacavelmente Io, mesmo metamorfoseada em vaca, lançando contra ela um moscardo, que a deixava como louca. Mandou que os Curetes, demônios do cortejo de Zeus, fizessem desaparecer Épafo, filho de sua rival Io. Provocou a morte trágica de Sêmele, que estava grávida de Zeus. Tentou quanto pôde impedir o nacimento de Apolo e Ártemis, filhos de seu esposo com Leto. Enlouqueceu Átamas e Ino, por terem criado a Dioníso, filho de Sêmele. Aconselhou Ártemis a matar a ninfa Calisto, que Zeus seduzira, disfarçando-se na própria Ártemis ou em Apolo, segundo outros, porque a ninfa, por ser do cortejo de Ártemis, tinha que guardar a todo custo sua virgindade. Zeus, depois, a transformou na constelação da Ursa Maior, porque, conforme algumas fontes, Ártemis, ao vê-la grávida, a metamorfoseou em ursa e a liquidou a flechadas. Outros afirmam que tal metamorfose se deveu à cólera de Hera ou a uma precaução do próprio Zeus, para subtraí-la à vingança da esposa.

Para escapar da vigilância atenta de Hera, Zeus não só se transformava de todas as maneiras, em cisne, em touro, em chuva de ouro, no marido da mulher amada, mas ainda disfarçava, a quem desejava poupar da ira da mulher: Io o foi em vaca; Dioniso, em touro ou bode... De resto, o relacionamento entre os esposos celestes jamais foi muito normal e a cólera e vingança da filha de Crono se apoiavam em outros motivos. Certa vez, Hera discutia com o marido para saber quem conseguia usufruir de maior prazer no amor, se o homem ou a mulher. Como não conseguissem chegar a uma conclusão, porque Zeus dizia ser a mulher a favorecida, enquanto Hera achava que era o homem, resolveram consultar Tirésias, que tivera sucessivamente a experiência dos dois sexos. Este respondeu que o prazer da mulher estava na proporção de dez para um relativamente ao do homem. Furiosa com a verdade, Hera prontamente o cegou.

Tomou parte, como se sabe, no célebre concurso de beleza e teve por rivais a Atená e Afrodite, e cujo juiz era o troiano Páris. Tentou, para vencer, subornar o filho de Príamo, oferecendo-lhe riquezas e a realeza universal.

Como Páris houvesse outorgado a maça de ouro a Afrodite, que lhe ofereceu amor, Hera fez pesar sua cólera contra Ílion, tendo tomado decisivamente o partido dos gregos. Seu ódio, por sinal, se manifestou desde o rapto de Helena por Páris. Quando da fuga do casal, de Esparta para Tróia, a magoada esposa de Zeus suscitou contra os amantes uma grande borrasca, que os lançou em Sídon, nas costas da Síria. Tornou-se, além do mais, a protetora natural do herói grego Aquiles, cuja mãe Tétis fora por ela criada. Conta-se, além do mais, que era grata a Tétis, porque esta sempre repeliu as investidas amorosas de Zeus. Mais tarde, estendeu sua proteção a Menelau, tornando-o imortal. Participou da luta contra os Gigantes, tendo repelido as pretensões pouco decorosas de Porfírio.

Ixíon, rei dos Lápitas, tentou seduzí-la, mas acabou envolvendo em seus braços uma nuvem, que Zeus confeccionara à semelhança da esposa. Dessa "união" nasceram os Centauros. Para castigá-lo, Zeus fê-lo alimentar-se de ambrosia, o manjar da imortalidade, e depois lançou-o no Tártaro. Lá está ele girando para sempre numa roda de fogo. Protegeu o navio Argo, fazendo-o transpor as perigosas Rochas Ciâneas, as Rochas Azuis, e guiou-o no estreito fatídico entre Cila e Caribdes.

Sua ave predileta era o pavão, cuja plumagem passava por ter os cem olhos com que o vigilante Argos guardava sua rival, a "vaca" Io. Eram-lhe também consagrados o lírio e a romã: o primeiro, além de símbolo da pureza, o é também da fecundidade, como a romã.

Pelo fato de ser esposa de Zeus, Hera possui alguns atributos soberanos, que a distinguem das outras imortais, suas irmãs. Como seu divino esposo, exerce uma ação poderosa sobre os fenômenos celestes. Honrada como ele nas alturas, onde se formam as borrascas e se amontoam as nuvens, que derramam as chuvas benfazejas, ela pode desencadear as tempestades e comandar os astros que adornam a abóbada celeste. A união de Zeus e Hera é como um símbolo da natureza inteira. É por intermédio de ambos, do calor, dos raios do sol e das chuvas, que penetram o solo, que a terra é fecundada e se reveste de luxuriante vegetação. Ainda como Zeus, Hera personifica certos atributos morais, como o poder, a justiça, a bondade. Protetora inconteste dos amores legítimos, é o símbolo da fidelidade conjugal. Associada à soberania do pai dos deuses e dos homens, é respeitada pelo Olimpo inteiro, que a saúda como sua rainha e senhora. É verdade que, por vezes, uma rainha irascível e altiva, mas que jamais deixou de ser, em seus rompantes ou em sua majestade serena, a grande divindade feminina do Olimpo grego, cujo grande deus masculino é Zeus.

 

16. Deuses Gregos e Romanos

A mitologia grega é bastante rica em termos de contos e explicações da origem do mundo, a tudo atribuindo os poderes dos deuses gregos, que segundo a crença geral, moravam no Monte Olimpo.

Dizem as lendas gregas que, no princípio, havia somente o grande Caos, do qual surgiram os Velhos Deuses, ou Titãs, dirigidos pelo deus Cronos (Tempo). Zeus era um filho de Cronos e chefiou a rebelião da nova geração dos deuses - chamados Deuses Olímpicos - que dominaram a Grécia em toda a sua época clássica. Os principais deuses olímpicos são

Zeus

É o deus principal, governante do Monte Olimpo. Rei dos deuses e dos homens, era o sexto filho de Cronos. Como seus irmãos, deveria ser comido pelo pai, mas a mãe deu uma beberagem a Cronos e este vomitou novamente o filho; este e seus irmãos, também vomitados na mesma hora, uniram-se contra o pai, roubaram os raios e venceram a batalha. Os raios, fabricados pelo deus Hefaistos, eram o símbolo de Zeus.

Zeus para os gregos e Júpiter para os romanos.

Palas Atena ou Atenéia

Deusa virgem, padroeira das artes domésticas, da sabedoria e da guerra. Palas nasceu já adulta, na ocasião em que Zeus teve uma forte dor de cabeça e mandou que Hefaistos, o deus ferreiro, lhe desse uma machadada na fronte; daí saiu Palas Atena. Sob a proteção dessa deusa floresceu Atenas, em sua época áurea. Dizia-se que ganhou a devoção dos atenienses quando presenteou a humanidade com a oliveira, árvore principal da Grécia.

Palas para os gregos e Minerva para os romanos.

Apolo

Deus do sol e patrono da verdade, da música, da medicina e pai da profecia. Filho de Zeus, fundou o oráculo de Delfos, que dava conselhos aos gregos através da Pitonisa, sacerdotiza de Apolo que entrava em transe devido aos vapores vindos das profundezas da terra.

Apolo para os gregos Ártemis

A Diana dos romanos, era a deusa-virgem da lua, irmã gêmea de Apolo, poderosa caçadora e protetora das cidades, dos animais e das mulheres. Na Ilíada de Homero, desempenhou importante papel na Guerra de Tróia, ao lado dos troianos.

Ártemis para os gregos e Diana para os romanos.

Afrodite

Deusa do amor e da beleza, era esposa de Hefaistos e amante de Ares, a quem deu vários filhos (entre eles Fobos = Medo, e Demos = Terror). Afrodite era também mãe de Eros.

Afrodite para os gregos e Vênus para os romanos.

Hera

Esposa de Zeus, protetora do casamento, das mulheres casadas, das crianças e dos lares. Era também irmã de Zeus, uma das filhas vomitada por Cronos.

Hera para os gregos e Juno para os romanos.

Démeter

Era a deusa das colheitas, dispensadora dos cereais e dos frutos. Quando Hades, deus do inferno, levou sua filha Perséfone como sua esposa, negou seus poderes à terra, e esta parou de produzir alimentos; a solução de Zeus foi que Perséfone passaria um terço do ano no inferno, com seu marido, e o restante do tempo com sua mãe, no Olimpo. Dessa forma, Démeter abrandou sua ira e tornou a florescer nas colheitas.

Démeter para os gregos e Ceres para os romanos.

Hermes

Filho de Zeus e mensageiro dos mortais, era também protetor dos rebanhos e do gado, dos ladrões, era guardião dos viajantes e protetor dos oradores e escritores.

Hermes para os gregos e Mercúrio para os romanos.

Poseidon

É o deus do mar e dos terremotos, foi quem deu os cavalos para os homens. Apesar disso, era considerado um deus traiçoeiro, pois os gregos não confiavam nos caprichos do mar.

Poseidon para os gregos e Netuno para os romanos.

Dionísio

Era o deus do vinho e da fertilidade. Filho de Zeus e uma mortal, foi alvo do ciúme de Hera, que matou sua mãe e transtornou o seu juízo. Assim, Dionísio vagueava pela terra, rodeado de sátiros e mênades. Era o símbolo da vida dissoluta.

Dionísio para os gregos e Baco para os romanos.

Ares

O deus guerreiro por excelência. Seu símbolo era o abutre. Seus pais, Zeus e Hera, detestavam-no, mas era protegido por Hades, pois povoava o inferno com as numerosas guerras que provocava. Sua vida estava longe de ser exemplar - foi surpreendido em adultério com Afrodite, esposa de Hefaistos, que os prendeu em fina rede; foi ferido por três vezes por Héracles (Hércules). Era muito respeitado pelos gregos por sua força e temperamento agressivo.

Ares para os gregos e Marte para os romanos.

Hefaistos ou Hefesto

Deus ferreiro, do fogo e dos artífices. Filho de Zeus e Hera, foi lançado do Olimpo por sua mãe, desgostosa por ter um filho coxo. Refugiou-se nas profundezas da terra, aprendendo com perfeição o ofício de ferreiro. De suas forjas saíram muitas maravilhas, inclusive a primeira mulher mortal, Pandora, que recebeu vida dos deuses. Construiu no Olimpo um magnífico palácio de bronze para si próprio, e era estimado em Atenas. Para compensá-lo de sua feiúra, seu pai deu-lhe por esposa Afrodite, a deusa da beleza. Era artesão dos raios de Zeus.

Hefaistos para os gregos e Vulcano para os romanos.

Além desses deuses, que junto a muitos outros pululavam no Olimpo, havia heróis (filhos de deusas ou deuses com mortais), semideuses, faunos, sátiros e uma infinidade de entidades mitológicas que explicavam por lendas todos os fenômenos da natureza. Entre os heróis mais populares, podemos citar:

Io amada por Zeus, que a transformou em novilha para escondê-la da ciumenta Hera.

Deucalião e Pirra únicos sobreviventes do dilúvio que Zeus mandou ao mundo pervertido.

Héracles ou Hércules, autor dos famosos Doze Trabalhos; era filho de Zeus e da moratal Alcmena.

Édipo que matou a esfinge e casou-se com sua própria mãe.

Perseu que matou a Medusa, uma das Górgonas, e libertou a princesa Andrômeda da serpente marinha.

Cadmo que matou um dragão e no local fundou a cidade de Tebas.

Europa irmã de Cadmo, foi amada por Zeus que lhe apareceu sob a forma de um touro e, em suas costas, atravessou o mar.

Jasão chefe dos Argonautas, equipe de heróis - Héracles, Orfeu, Castor e Pólux, e outros - que navegou no navio "Argos" em busca do Velocino de Ouro.

Teseu que penetrou o labirinto de Creta e matou o Minotauro, acabando por unificar a Ática.

Atalanta mulher aventurosa que se casou com o ardiloso Hipomenes.

Belerofonte que matou o monstro Quimera e domou o cavalo alado, Pégaso.

Os heróis de Tróia Aquiles, Heitor, Ájax, Agaménon, Ulisses - autor da idéia do cavalo de Tróia - e outros.

 

17. A Grécia e a Chegada dos Indo-europeus

Por uma questão de clareza, não se pode falar do mito grego sem antes traçar, embora esquematicamente, um esboço histórico do que era a Grécia antes da Grécia, isto é, antes da chegada dos Indo-Europeus ao território de Hélade.

Vamos estampar, de início, como já o fizera Pierre Léveque, um quadro, um sistema cronológico, com datas arredondadas, sujeitas portanto a uma certa margem de erros. A finalidade dos dados cronológicos, que se seguem, é apenas de orientar e chamar a atenção para o "estado religioso" da Hélade pré-helênica e ver até onde o antes influenciou o após no curso da mitologia grega.

 

 

Neolítico I

~ 4500-3000

Neolítico II

~ 3000-2600

Bronze Antigo ou Heládico Antigo

~ 2600-1950

Primeiras Invasões Gregas (Jônios) na Grécia

~ 1950

Bronze Médio ou Heládico Médio

~ 1950-1580

Novas Invasões Gregas (Aqueus e Eólios?)

~ 1580

Bronze Recente ou Heládico Recente ou Período Micênico

~ 1580-1100

Últimas Invasões Gregas (Dórios)

~ 1200

 

Se os restos paleolíticos são muito escassos e de pouca importância, no Neolítico I o solo grego é coberto por uma série de "construções", obra, ao que parece, de populações oriundas do Oriente Próximo asiático. A transição do Neolítico I para o Neolítico II é marcada, na Grécia, pela invasão de povos, cuja origem não se pode determinar com segurança. O sítio neolítico mais bem conhecido é Dimini, na Tessália, e que corresponde ao Neolítico II. Trata-se de uma acrópole, de uma cidade fortificada, fato raro para a época. O reduto central contém um mégaron, ou grande sala, o que revelaria uma organização monárquica. Trata-se, e é isto que importa, de uma civilização agrícola. O homem cuida dos rebanhos e a mulher se encarrega da agricultura, o que patenteia a crença de que a fecundidade feminina exerce uma grande e benéfica influência sobre a fertilidade das plantas. A divindade soberana do Neolítico II, na Grécia, é a Terra-Mãe, a Grande Mãe, cujas estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam deusas de formas volumosas e esteatopígicas. A função dessas divindades, hipóstases da Terra-Mãe, é fertilizar o solo e tornar fecundos os rebanhos e os seres humanos.

Na virada do Neolítico II para o Bronze Antigo ou Heládico Antigo, ~2600-1950, chegam à Grécia novos e numerosos invasores, provenientes da Anatólia, na Ásia Menor. Cortejando a civilização anterior com o progresso trazido pelos anatólios, o mínimo que se pode dizer é que se trata de uma grande civilização, cujo centro mais importante foi Lerna, na Argólida, cujos pântanos se tornariam famosos, sobretudo por causa de um dos Trabalhos de Herácles. Uma das contribuições mais sérias dessa civilização foi a lingüística: a partir do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, montes, rios e cidades gregas recebem nome, o que permite acompanhar o desenvolvimento e a extensão da conquista anatólia, que se prolonga da Macedônia, passando pela Grécia continental, pelas Cíclades, e atingem a ilha de Creta, que também foi submetida pelos anatólios. O grande marco dessa civilização, no entanto, foi a introdução do bronze, início evidentemente de uma nova era.

De outro lado, a existência comprovada de palácios fortificados denuncia uma sólida organização monárquica. Em se tratando de uma civilização agrícola, a divindade tutelar continua a ser a Grande Mãe, dispensadora da fertilidade e da fecundidade. As estatuetas, com formas também opulentas e esteatopígicas, adotam, por vezes, nas Cíclades, uma configuração estilizada de violino, o que, aliás, as tornou famosas. As tumbas são escavadas nas rochas ou se apresentam em forma de canastra. As numerosas oferendas nelas depositadas atestam a crença na sobrevivência da alma.

Nos fins do segundo milênio, entre ~2000-1950, ou seja, no apagar das luzes da Idade do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, a civilização anatólia da Grécia propriamente desapareceu, com a irrupção de novos invasores. Dessa feita, eram os gregos que pisavam, pela primeira vez, o solo da futura Grécia.

Os gregos fazem parte de um vasto conjunto de povos designados com o nome convencional de Indo-Europeus. Estes, ao que parece, se localizavam, desde o quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso, sem jamais, todavia, terem formado uma unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma civilização material comum. Talvez tenha existido, isto sim, uma certa unidade lingüística e uma unidade religiosa. Pois bem, essa frágil unidade, mal alicerçada num "aglomerado de povos", rompeu-se, lá pelo terceiro milênio, iniciando-se, então, uma série de migrações, que fragmentou os Indo-Europeus em vários grupos lingüísticos, tomando uns a direção da Ásia (armênio, indo-iraniano, tocariano, hitita), permanecendo os demais na Europa (balto, eslavo, albanês, celta, itálico, grego, germânico). A partir dessa dispersão, cada grupo evoluiu independentemente e, como se tratava de povos nômades, os movimentos migratórios se fizeram no tempo e no espaço, durante séculos e até milênios, não só em relação aos diversos "grupos" entre si, mas também dentro de um mesmo "grupo". Assim, se as primeiras migrações indo-européias (indo-iranianos, hititas, itálicos, gregos) estão séculos distantes das últimas (baltos, eslavos, germânicos...), dentro de um mesmo grupo as migrações se fizeram por etapas. Desse modo, o grupo itálico, quando atingiu a Itália, já estavam fragmentado, "dialetado", em latinos, oscos e umbros, distantes séculos uns dos outros, em relação à chegada a seu habitat comum. Entre os helenos o fato ainda é mais flagrante, pois, como se há de ver, os gregos chegaram à Hélade em pelo menos quatro levas: jônios, aqueus, eólios e dórios e, exatamente como aconteceu com o itálico, com séculos de diferença entre um grupo e outro. Para se ter uma idéia, entre os jônios e os dórios medeia uma distância de cerca de oitocentos anos!

Se não é possível reconstruir, mesmo hipoteticamente, o império indo-europeu e tampouco a língua primitiva indo-européia, pode-se, contudo, estabelecer um sistema de correspondência entre as denominadas línguas indo-européias, mormente, e é o que importa no momento, no que se refere ao vocabulário comum e, partindo deste, chegar a certas estruturas religiosas dessa civilização.

O vocabulário comum mostra a estrutura patrilinear da família, o nomadismo, uma forte organização militar, sempre pronta para as conquistas e os saques. Igualmente se torna claro que os indo-europeus conheciam bem e praticavam a agricultura; criavam rebanhos e conheciam o cavalo. Os termos mais comuns, são, resumidamente, os que indicam:

 

Parentesco

pai, mãe, filho, filha, irmã;

Grupo Social

rei, tribo, aldeia, chefe da casa e da aldeia;

Atividades Humanas

lavrar, tecer, fiar, ir de carro, trocar, comprar, conduzir (= casar);

Animais

boi, vaca, cordeiro, ovelha, bode, cabra, abelha, cavalo, égua, cão, serpente, vespa, mosca e produtos: leite, mel, lã, manteiga;

Vegetais

álamo, faia, salgueiro, azinheira;

Objetos

machadinha, roda, carro, jugo, cobre, ouro, prata;

 

Principais partes do corpo; nomes distintos para os dez primeiros números; nomes das dezenas, a palavra cem, mas não mil.

 

O vocabulário religioso é extremamente pobre. São pouquíssimos os nomes de deuses comuns a vários indo-europeus.

Básico é o radical * deiwos, cujo sentido preciso, segundo Frisk, é alte Benennung des Himmels, quer dizer, "antiga denominação do céu", para designar "deus", cujo sentido primeiro é luminoso, claro, brilhante, donde o latim deus, sânscrito deváh, iraniano div, antigo germânico tívar. Este mesmo radical encontra-se no grande deus da luz, o "deus-pai" por excelência: grego Zeús, sânscrito Dyáuh, latim Iou (de * dyew-) e com aposição de piter (pai), tem-se (Iuppiter), "o pai do céu luminoso", Júpiter, bem como o sânscrito Dyauh pitã, grego Zeùs, patér, cita Zeus-Papaios, isto é, Zeus Pai.

Zeus é, portanto, o deus do alto, o soberano, "o criador". Cosmogonia e paternidade, eis seus dois grandes atributos. ¹

Além de Zeus, para ficar apenas no domínio grego, podem citar-se ainda "o deus solar" Hélios (Hélio), védico Sûnrya, eslavo antigo Solnce, e o "deus-Céu", grego Ouranós (Úrano), sânscrito Varuna, a abóbada celeste.

De qualquer forma, como acentua Mircea Eliade, "Os Indo-Europeus tinham elaborado uma teologia e uma mitologia específicas. Praticavam sacrifícios e conheciam o valor mágico-religioso da palavra e do canto (* Kan). Possuíam concepções e rituais que lhes permitiam consagrar o espaço e 'cosmizar' os territórios em que se instalavam (essa encenação mítico-ritual é atestada na Índia antiga, em Roma, e entre os celtas), as quais lhes permitiam, de mais a mais, renovar periodicamente o mundo (pelo combate ritual entre dois grupos de celebrantes, rito de que subsistem traços na Índia e no Irã)". Eliade conclui, mostrando que a grande distância que separa as primeiras migrações indo-européias das últimas, impossibilita a identificação dos elementos comuns ao vocabulário, na teologia e na mitologia da época histórica.

Essas longas e lentas migrações, por outro lado, face ao contato com outras culturas e mercê dos empréstimos, sincretismos e aculturação, trouxeram profundas alterações ao acervo religioso indo-europeu. E se muito pouco nos chegou de autênctico dessa religião, esse pouco foi brilhantemente enriquecido, sobretudo a partir de 1934, pelas obras excepcionais de Georges Dumézil. Partindo da mitologia comparada, mas sem os exageros e erros de Max Müller e sua escola, apoiado em sólida documentação, Dumézil fez que se compreendesse melhor toda a riqueza acerca do que se possui do mito e da religião de nossos longínquos antepassados. Uma de suas conclusões maiores foi a descoberta da estrutura trifuncional da sociedade e da ideologia dos indo-europeus, estrutura essa fundamentada na tríplice função religiosa dos deuses.

Não há dúvida de que é entre os indo-iranianos, escandinavos e romanos que a "trifunção" está mais acentuada, mas entre os gregos, ao menos da época histórica, a mesma estrutura pode ser observada, ao menos como hipótese:

 

Soberania

Força

Fecundidade

(Sacerdotes)

(Guerreiros)

(Campônios)

Indo-Iranianos

Varuna e Mit

Indra

Nasátya

Escandinavos

Odin e Tyr

Tor

Freyr

Romanos

Iuppiter

Mars

Quirinus

Gregos

Zeús

Áres

Deméter

 

No que tange à Hélade, esta divisão há de perdurar, religiosamente, até o fim.

Eis aí, em linhas gerais, o que foi a Grécia antes da Grécia e a primeira contribuição religiosa dos indo-europeus gregosà sua pátria, nova e definitiva.

¹ Deus em grego se diz theós, mas este, segundo H. Frisk, theós significa espírito, alma: a idéia de theós como deus é recente e teria se desenvolvido a partir da divinização dos mortos ou talvez o vocábulo signifique, a princípio, cipo, estela.

 

18. O Caos, da origens

O estado primordial, primitivo do mundo é o Caos. Era, segundo os poetas, uma matéria que existia desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível, indescritível, na qual se confundiam os princípios de todos os seres particulares. Caos era ao mesmo tempo uma divindade, por assim dizer, rudimentar, capaz, porém, de fecundar. Gerou primeiro a Noite, e depois o Érebo.

A Noite

A Noite, deusa das Trevas, filha do Caos, é na verdade a mais antiga das divindades. Certos poetas a consideram como filha do Céu e da Terra; Hesíodo dá-lhe um lugar entre os Titãs e o nome de Mãe dos Deuses, porque sempre se acreditou que a Noite e as trevas haviam precedido a todas as coisas. Desposou Érebo, seu irmão, de quem teve o Éter e o Dia. Mas sozinha, sem unir-se a nenhuma outra divindade, procriara o inevitável e inflexível Destino, a Parca Negra, a Morte, o Sono, a legião dos Sonhos, Momo, a Miséria, as Hespérides, guardadoras dos pomos de ouro, as desapiedadas Parcas, a terrível Nemesias, a Fraude, a Concupiscência, a triste Velhice e a obstinada Discórdia; em resumo, tudo quanto havia de doloroso na vida passava por ser obra da Noite. Algumas vezes dão-lhe os nomes gregos de Eufrone e Eulalia, isto é, - Mãe do bom conselho. Há quem marque o seu império ao norte do Ponto-Euxino, no país dos Cimérios; mas a situação geralmente aceita é na parte da Espanha, - a Esméria, na região do poente, perto das colunas de Hércules, limites do mundo conhecido dos antigos.

Quase todos os povos da Itália viam a Noite, ora com um manto volante, recamado de estrelas, por cima de sua cabeça, ou com um outro manto azul e archote derrubado, ora representada por uma mulher nua, com longas asas de morcego e um fanal na mão. Representam-na também coroada de papoulas e envolta num grande manto negro, estrelado. Às vezes num carro arrastado por dois cavalos pretos ou por dois mochos, e a deusa cobre a cabeça com um vasto véu semeado de estrelas. Muito freqüentemente colocam-na no Tártaro, entre o Sono e a Morte, seus dois filhos. Algumas vezes um menino precede-a, empunhando uma tocha, - símbolo do crepúsculo. Os romanos não a punham em carro, e representavam-na ociosa e adormecida.

O Érebo

O Érebo, filho do Caos, irmão e esposo da Noite, pai do Éter e do Dia, foi metamorfoseado em rio e precipitado nos Infernos, por ter socorrido os Titãs. Faz parte do Inferno e é mesmo considerado como o próprio Inferno. Pela palavra Éter, os gregos compreendiam os Céus, separados dos corpos luminosos. O vocábulo dia, sendo feminino em grego (Hèméra); dizia-se que o Éter e o Dia foram o pai e a mãe do Céu. Essas estranhas uniões significam somente que a Noite existia antes da criação, que a Terra estava perdida na obscuridade que a cobria, mas que a Luz, penetrando através do Éter, havia aclarado o universo.

Em linguagem de menor valor mitológico, poderia se simplificar, e dizer que a Noite e o Caos precederam à criação dos céus e da luz.

Eros e Anteros

Foi pela intervenção de um poder divino, eterno como os elementos do próprio Caos, pela intervenção manifesta de um deus que, sem ser propriamente o amor, tem entretanto alguma conformidade com ele, que o Caos, a Noite, o Érebo puderam unir-se para a procriação.

Em grego, esse deus antigo, ou melhor, anterior a toda antigüidade, chama-se Eros. É ele que inspira ou produz esta invisível simpatia entre os seres, para os unir em outras procriações. O poder de Eros vai além da natureza viva e animada: ele aproxima, une, mistura, multiplica, varia as espécies de animais, de vegetais, de minerais, de líquidos, de fluídos, em uma palavra, de toda a criação. Eros é pois o deus da união, da afinidade universal; nenhum outro ser pode furtar-se à sua influência ou à sua força: Eros é invencível.

Entretanto, tem como adversário no mundo divino - Anteros, isto é, a antipatia, a aversão. Esta divindade tem todos os atributos opostos aos do deus Eros: separa, desune, desagrega. Tão salutar, tão forte e poderoso talvez como Eros, Anteros impede que se confundam os seres da natureza dissemelhante; se algumas vezes semeia em torno de si a discórdia e o ódio, se prejudica a afinidade dos elementos, ao menos a hostilidade que entre eles cria contém cada um nos limites marcados, e destarte a natureza não pode cair novamente no caos.

O Destino

O Destino é uma divindade cega, inexorável nascida da Noite e do Caos. Todas as outras divindades estavam submetidas ao seu poder. Os céus, a terra, o mar e os infernos faziam parte do seu império: o que resolvia era irrevogável; em resumo, o Destino era por si mesmo essa fatalidade, segundo a qual tudo acontecia no mundo. Júpiter, o mais poderoso dos deuses, não pôde aplacar o Destino, nem a favor dos outros deuses, nem a favor dos homens.

As leis do Destino eram escritas desde o princípio da criação em um lugar onde os deuses podiam consultá-las. Os seus ministros eram as três Parcas encarregadas de executar as ordens. Representam-no tendo sob os pés o globo terrestre, e agarrando nas estrelas, e um cetro, símbolo do seu poder soberano. Para mostrar que era inflexível, os antigos o representavam por uma roda que prende uma cadeia. No alto da roda uma grande pedra, e embaixo duas cornucópias com pontas de azagaia. Conta Homero que o Destino de Aquiles e de Heitor é pesado na balança de Júpiter, e como a sorte do último o arrebata, sua morte é decretada, e Apolo retira o apoio que lhe dispensara até então. São as leis cegas do Destino que tornaram culpados a tantos mortais, apesar do seu desejo de permanecer virtuosos: em Ésquilo, por exemplo, Agamemnom, Clitemnestre, Jocasta, Édipo, Eteoclo, Polínice, etc., não podem fugir à sua sorte.

Só os oráculos podiam entrever e revelar o que estava escrito no livro do Destino.

A Terra (Gaia)

A Terra, mãe universal de todos os seres, nasceu imediatamente depois do Caos. Desposou Urano ou o Céu, foi a mãe dos deuses e dos gigantes, dos bens e dos males, das virtudes e dos vícios. Fazem-na unir-se com o Tártaro e Ponto, ou o mar, de cujas uniões os monstros que encerram todos os elementos. A Terra, às vezes tomada pela Natureza, tinha vários nomes: Titéia, Ops, Telus, Vesta e mesmo Cibele.

Dizia-se que o homem nascera da terra embebida d'água e aquecida pelos raios do Sol; assim, a sua natureza participa de todos os elementos, e quando morre, sua mãe venerável o recolhe e o guarda no seu seio. Na Mitologia, muitas vezes é considerado entre os filhos da Terra; geralmente, quando não se sabia a origem, quer de um homem, quer de um povo célebre, dava-se-lhe o nome de filho da Terra.

Algumas vezes a Terra é representada pela figura de uma mulher sentada num rochedo; as alegorias modernas descrevem-na sob os traços de uma venerável matrona, sentada sobre um globo, coroada de torres, empunhando uma cornucópia cheia de frutos. Outras vezes aparece coroada de flores, tendo a seu lado o boi que lavra a terra, o carneiro que se ceva e o mesmo leão que está aos pés de Cibele. Em um quadro de Lebrun, a Terra é personificada por uma mulher que faz jorrar o leite dos seus seios, enquanto se desembaraça do seu manto, e do manto surge uma nuvem de pássaros que revoa nos ares.

Telus

Telus, deusa da terra, muitas vezes tomada pela própria Terra, é chamada pelos poetas a Mãe dos Deuses. Ela representa o solo fértil, e também o fundamento sobre que repousam os elementos que se geram entre si. Diziam-na mulher do Sol ou do Céu, porque tanto a um como ao outro deve a sua fertilidade. Era representada como uma mulher corpulenta, com uma grande quantidade de peitos. Freqüentemente se confundem Telus e Terra com Cibele. Antes de estar Apolo de posse do oráculo de Delfos, era Telus que o possuía e que o divulgava; mas em tudo estava em meias com Netuno. Depois, Telus cedeu os seus direitos a Temis, e Temis a Apolo.

Urano ou Coelo (Ouranos)

Urano ou Coelo, o Céu, era filho do Éter e do Dia. Segundo Hesíodo, era filho do Éter e da Terra. De qualquer maneira, desposou Titéia, isto é, a Terra ou Vesta, que, neste caso, é distinta de Vesta, deusa do fogo e da virgindade. Diz-se que Urano teve quarenta e cinco filhos de várias mulheres, sendo que, destes, dezoito eram de Titéia; os principais foram Titã, Saturno e Oceano, que se revoltaram contra seu pai e o impossibilitaram de ter filhos. Cheio de mágoa e em conseqüência da mutilação de que fora vítima, Urano morreu.

O que caracteriza as divindades das primeiras idades mitológicas, é um brutal egoísmo junto a uma desapiedada crueldade. Urano tomara aversão a todos os seus filhos: desde que nasciam, encerrava-os em um abismo e os não deixava ver o dia. Foi isto que motivou a revolta. Saturno, sucessor de Urano, foi tão cruel como o pai.

Titéia

Titéia, a antiga Vesta, mulher de Urano, foi a mãe dos Titãs, nome que significa filhos de Titéia ou da Terra. Além de Titã propriamente dito, de Saturno e Oceano, ela teve Hipérion, Japeto, Tia, Réia ou Cibele, Temis, Mnemosine, Febe, Tétis, Brontes, Steropes, Argeu, Coto, Briareu, Giges. Com Tártaro teve o gigante Tifon, que se destinguiu na guerra contra os Deuses.

Saturno (Cronos)

Filho segundo de Urano e da antiga Vesta, ou do Céu e da Terra, Saturno, depois de haver destronado o pai, obteve de seu irmão primogênito Titã, o favor de reinar em seu lugar. Mas Titã impôs uma condição, - a de Saturno fazer morrer toda a sua posterioridade masculina, a fim de que a sucessão ao trono fosse reservada aos seus filhos. Saturno desposou Réia, de quem teve muitos filhos, que devorou avidamente, conforme combinara com seu irmão. Além disso, sabendo que, um dia, ele próprio seria derrubado do trono por um dos seus filhos, exigia que sua esposa lhe entregasse os recém-nascidos. Entretanto Réia conseguiu salvar a Júpiter, que quando grande, declarou guerra a seu pai, venceu-o, e depois de o haver tratado como o fora Urano por seus filhos, pô-lo fora do céu. Assim a dinastia de Saturno continuou em prejuízo da de Titã.

Saturno teve três filhos de Réia, que conseguiu salvá-los: Júpiter, Netuno e Plutão, e uma filha, Juno, irmã gêmea e esposa de Júpiter. Alguns autores, ao número das filhas de Saturno e Réia, acrescentam Vesta, deusa do fogo, e Ceres, deusa das searas. De resto, Saturno teve, com muitas outras mulheres, um grande número de filhos, como, por exemplo, o centauro Chiron, filho da ninfa Filira, etc.

Conta-se que Saturno, destronado por seu filho Júpiter, reduzido à condição de simples mortal, foi refugiar-se na Itália, no Lácio, onde reuniu os homens ferozes, esparsos nas montanhas, e lhes deu leis. O seu reinado foi a idade do ouro, sendo os seus pacíficos súditos governados com doçura. Foi restabelecida a igualdade das condições; nenhum homem servia a outro como criado; ninguém possuía coisa alguma exclusivamente para si; tudo era bem comum, como se todo mundo tivesse tido a mesma herança. Para lembrar esses tempos felizes, celebravam-se em Roma as Saturnais. Essas festas, cuja instituição remontava no passado muito além da fundação da cidade, consistiam sobretudo em representar a igualdade que primitivamente reinava entre os homens. Começavam as Saturnais no dia 16 de dezembro de cada ano; ao princípio só duravam um dia, mas ordenou o Imperador Augusto que durariam três; Calígula aumentou-lhes vinte e quatro horas. Durante estas festas se suspendia o poder dos senhores sobre os escravos, e estes tinham inteiramente livres a palavra e as ações. Então, tudo era prazer, tudo era alegria; nos tribunais e nas escolas havia férias; era proibido empreender uma guerra, executar um criminoso ou exercer outra arte além da culinária; trocavam-se presentes e davam-se suntuosos banquetes. De mais a mais todos os habitantes da cidade paravam as suas tarefas; toda a população se dirigia ao monte Aventino, para respirar o ar do campo. Os escravos podiam criticar os defeitos dos seus senhores, fazer-lhes partidas, e nesses dias eram os senhores que serviam os escravos, à mesa.

Em grego, Saturno é designado pelo nome de Cronos, que quer dizer o Tempo. A alegoria é transparente nesta fábula de Saturno; este deus que devora os filhos é, diz Cícero, o Tempo, o Tempo que se não sacia dos anos e que consome todos aqueles que passam. A fim de o conter, Júpiter o acorrentou, isto é, submeteu-o ao curso dos astros que são como laços que o prendem.

Os cartagineses ofereciam a Saturno sacrifícios humanos; as vítimas eram crianças recém-nascidas. Nesses sacrifícios, as flautas, os tímpanos, os tambores faziam um ruído tão grande que se não ouviam os gritos da criança imolada.

Em Roma, o templo elevado a esse deus no pendor do Capitólio, foi o depósito do tesouro público, em lembrança de que no tempo de Saturno, na idade do ouro, não se cometiam furtos. A sua estátua estava amarrada com cadeias que só se tiravam em dezembro, durante as Saturnais.

Saturno era geralmente representado como um velho curvado ao peso dos anos, erguendo na mão uma foice para mostrar que preside ao tempo. Em muitos monumentos apresentam-no com um véu, sem dúvida porque os tempos são obscuros e cobertos de um segredo impenetrável.

Com um globo na cabeça é o planeta Saturno. Numa gravura, talvez etrusca, é representado com asas e a foice pousada sobre um globo; é assim que representamos sempre o Tempo.

O dia de Saturno é o sábado (Saturni dies), (em francês, samedi, em inglês, saturday)

 

19. Monstros Modernos

Há um grupo de seres imaginários sucessores das "cruéis Górgonas, Hidras e Quimeras" das velhas superstições e que, como não têm relação direta com os falsos deuses do paganismo, continuaram a existir na crença popular depois do advento do cristianismo. Podem ser mencionados pelos escritores clássicos, mas sua popularidade é maior nos tempos modernos. Procuramos basear nossas descrições dos mesmos não tanto na poesia antiga como nos velhos livros de história natural e nas narrativas de viajantes.

A Fênix

Ovídio nos fala da seguinte maneira sobre a Fênix: "A maior parte dos seres nasce de outros indivíduos, mas há uma certa espécie que se reproduz sozinha. Os assírios chamam-na de fênix. Não vive de frutos ou de flores mas de incenso e raízes odoríferas. Depois de ter vivido quinhentos anos, faz os ninhos nos ramos de um carvalho ou no alto de uma palmeira. Nele ajunta cinamomo, nardo e mirra, e com essas essências constrói uma pira sobre a qual se coloca, e morre, exalando o último suspiro entre os aromas. Do corpo da ave surge uma jovem fênix, destinada a viver tanto quanto a sua antecessora. Depois de crescer e adquirir forças suficientes, ela tira da árvore o ninho (seu próprio berço e sepulcro de seu pai) e leva-o para a cidade de Heliópolis, no Egito, depositando-o no templo do "Sol".

Tal é a narrativa de um poeta. Vejamos a de um narrador filosófico. "No consulado de Paulo Fábio (34 de nossa era), a milagrosa ave conhecida no mundo pelo nome de fênix, que havia desaparecido há longo tempo, tornou a visitar o Egito" - diz Tácito. "Era esperada em seu vôo por um grupo de diversas aves, todas atraídas pela novidade e contemplando maravilhadas tão bela aparição". Depois de uma descrição da ave, que não difere muito da antecedente, embora acrescente alguns pormenores, Tácito continua: "O primeiro cuidado da jovem ave, logo que se empluma e pode confiar em suas asas, é realizar os funerais do pai. Esse dever, porém, não é executado precipitadamente. A ave ajunta uma certa quantidade de mirra, e, para experimentar suas forças, faz freqüentes excursões, carregando-a nas costas. Quando adquire confiança suficiente em seu próprio vigor, leva o corpo do pai e voa com ele até o altar do Sol, onde o deixa, para ser consumido pelas chamas odoríferas." Outros escritores acrescentam alguns pormenores. A mirra é compacta, em forma de um ovo, dentro do qual é encerrada a fênix morta. Da carne da morta nasce um verme, que quando cresce se transforma em ave. Heródoto descreve a ave, embora observe: "Eu mesmo não a vi, exceto pintada. Parte de, sua plumagem é de ouro e parte carmesim; quanto a seu formato e tamanho são muito semelhantes aos de uma águia."

O primeiro escritor que duvidou da crença na existência da fênix foi Sir Thomas Brownw, em seus "Erros Vulgares", publicado em... 1646. Suas dúvidas foram repelidas, alguns anos depois, por Alexander Ross, que diz, em resposta à alegação de que a fênix aparecia tão raramente: "Seu instinto lhe ensina a manter-se afastada do tirano da criação, o homem, pois se fosse apanhada por ele, seria sem dúvida devorada por algum ricaço glutão, até que não houvesse nenhuma delas no mundo." No livro V do "Paraíso Perdido", Milton compara a uma fênix o Anjo Rafael descendo à terra:

 

Assim, cortando o céu, voa ligeiro,

Entre mundos e mundos navegando,

Ora os ventos polares enfrentando,

Ora cortando, calmo, o róseo espaço,

Até que alcança as altaneiras águias,

Crêem ver neles as aves uma fênix

Que cortasse os espaços, solitária,

Em procura da Tebas egipciana,

Para os restos mortais no radioso

Templo do Sol guardar.

O Basilisco

Esse animal era chamado o rei das serpentes, tendo na cabeça, para confirmar essa realeza, uma crista em forma de coroa. Supunha-se que nascia do ovo de um galo, chocado por sapos ou serpentes. Havia várias espécies de basilisco. Uma delas queimava todo aquele que dela se aproximava. Uma Segunda assemelhava-se à cabeça da Medusa e sua vista causava tal horror que provocava a morte imediata. No "Ricardo III" de Shakespeare, Lady Ana, em resposta ao galanteio de Ricardo acerca de seus olhos, retruca: "Fossem eles os do basilisco, para te ferir de morte!"

O basilisco era chamado rei das serpentes porque todas as outras cobras, comportando-se como bons súditos e muito sensatamente não desejando serem queimadas ou fulminadas, fugiam logo que ouviam à distância o silvo de seu rei, ainda que estivessem se banqueteando com a mais deliciosa presa, deixando o manjar para o monstruoso monarca.

O naturalista romano Plínio, assim descreve o basilisco: "Não arrasta o corpo, como as outras serpentes, por meio de uma flexão múltipla, mas avança firme e ereto. Mata os arbustos, não somente pelo contato, mas respirando sobre eles e fende as rochas, tal é o poder maligno que nele existe." Acreditava-se que se o basilisco fosse morto pela lança de um cavaleiro, o poder do seu veneno, conduzido através da arma, matava não somente o cavaleiro, mas até o cavalo. Luciano faz alusão a esse fato nos versos:

Ele matou o basilisco em vão,

Deixando-o inerte no arenoso chão.

Corre o veneno através da lança

E mata o mouro, quando a mão alcança.

Tal prodígio não podia deixar de penetrar nas lendas dos santos. Assim, conta-se que um santo homem, indo a uma fonte no deserto e vendo, de repente, um basilisco, levantou logo os olhos para o céu e, graças a um piedoso apelo à Divindade, fez o monstro cair morto a seus pés.

Os poderes maravilhosos dos basiliscos são atestados por vários sábios, como Galeno, Aviceno, Scaliger e outros. Por vezes, algum deles duvidava de uma parte da lenda, mas admitia o resto. Jonston, um médico letrado, observa sensatamente: "Seria difícil de acreditar que ele mata com o olhar, pois, assim sendo, quem o teria visto e continuado vivo para contar o caso?" O digno sábio não sabia que aqueles que iam caçar o basilisco dessa espécie levavam consigo um espelho, que fazia refletir a horrível imagem sobre o original, fazendo o basilisco matar-se com sua própria arma.

Mas quem seria capaz de atacar esse terrível monstro? Há um velho ditado segundo o qual "tudo tem seu inimigo" e o basilisco intimidava-se diante da doninha. Por mais amedrontador que fosse o aspecto da serpente, a doninha não se preocupava e entrava na luta ousadamente. Quando mordida, retirava-se por algum tempo para ingerir a arruda, que era a única planta que o basilisco não fazia murchar, e voltava a atacar com redobrado vigor e coragem, não deixando o inimigo enquanto não o estendia morto no chão. O monstro, como se consciente da estranha maneira pela qual vinha ao mundo, votava, também extrema antipatia ao galo e estava sujeito a exalar o último suspiro tão logo ouvisse o canto daquela ave.

O basilisco tinha alguma utilidade depois de morto. Sabemos, assim, que sua carcaça era colocada no templo de Apolo, e em casas particulares, por ser um remédio soberano contra aranhas, e que também era posta no templo de Diana, motivo pelo qual nenhuma andorinha se atrevia a penetrar no recinto sagrado.

O Unicórnio

Plínio, o naturalista romano, cuja descrição do unicórnio serve de base à maior parte das descrições feitas pelos modernos, pinta-o como "um ferocíssimo animal, semelhante no resto do corpo a um cavalo, com a cabeça de cervo, patas de elefante, cauda de javali, voz retumbante e o único chifre preto, de dois côvados de comprimento, (cerca de 1,20 m.) no meio da testa". Acrescenta que o unicórnio "não pode ser apanhado vivo" e, de certo modo, tal desculpa devia ser apresentada naqueles dias pelo fato do unicórnio não aparecer nas arenas dos anfiteatros.

O unicórnio constituía um problema para os caçadores, que não sabiam como se apoderar de tão valiosa presa. Alguns descreviam seu chifre como podendo mover-se à vontade do animal, uma espécie de espada, em resumo, a qual nenhum caçador que não fosse habilíssimo na esgrima teria possibilidade de enfrentar com sucesso. Outros afirmavam que toda a força do animal estava no chifre e que, quando perseguido de perto, ele se atirava do alto dos mais elevados rochedos, com o chifre para a frente, de maneira a cair sobre ele, e, depois, tranqüilamente, levantava-se, sem nada haver sofrido com a queda.

Finalmente, porém, acabou-se achando um meio de vencer o pobre unicórnio. Descobriu-se que ele era grande admirador da pureza e da inocência e que cedia terreno quando encontrava em seu caminho uma jovem virgem. Vendo-a, o unicórnio se aproximava cheio de reverência, ajoelhava-se diante dela, e, pondo a cabeça em seu regaço, adormecia. A traiçoeira virgem fazia, então, sinal aos caçadores, que se aproximavam e capturavam o simplório animal. Os modernos zoólogos, naturalmente descrentes de tais lendas, não levam a sério a existência do unicórnio. Existem, contudo, animais que têm na cabeça uma protuberância óssea mais ou menos semelhante a um chifre, que podem Ter dado origem à lenda. O chifre do rinoceronte, como é chamado, é uma dessas protuberâncias, embora de tamanho bem pequeno e não correspondendo de modo algum à descrição do chifre do unicórnio. O que há de mais semelhante a um chifre no meio da testa é a protuberância óssea que existe na cabeça da girafa, mas, também esta é muito curta e rombuda, e não constitui o único chifre do animal, e sim um terceiro chifre, em frente dos dois outros. Em resumo, embora possa ser excessivo negar-se a existência de outro quadrúpede de um só chifre, além do rinoceronte, pode-se afirmar com segurança que a existência de um chifre comprido e resistente na testa de um animal semelhante ao cavalo e ao veado constitui perfeita impossibilidade.

A Salamandra

Na "Vida de Bevenuto Cellini", artista italiano do século XVI, escrita por ele mesmo, há o seguinte trecho: "Quando eu tinha cerca de cinco anos de idade, meu pai, estando num pequeno quarto, onde estava fogo e madeira de carvalho, olhou as chamas e viu um animalzinho semelhante a um lagarto, que podia viver na parte mais quente do elemento. Percebendo imediatamente do que se tratava, chamou-me e a minha irmã, e, depois de nos ter mostrado a criatura, deu-me um tabefe no ouvido. Caí, chorando, enquanto ele, consolando-me com carícias, disse estas palavras: "Meu querido filho, não te dei este tabefe por alguma coisa errada que tiveste feito, mas para que te lembres que a criaturinha que viste no fogo é uma salamandra, tal qual nenhuma outra foi vista por mim até hoje". Assim dizendo, beijou-me e deu-me algum dinheiro."

Parece-nos desarrazoado duvidar de um caso que o Signor Cellini foi uma testemunha tanto de vista como de ouvido. Ajunte-se a esta autoridade de inúmeros e sábios filósofos, à frente dos quais estão Aristóteles e Plínio, afirmando aquele poder de salamandra. De acordo com eles, a salamandra não somente resistia ao fogo, mas o apagava e, quando via a chama, avançava contra ela, como um inimigo que sabia vencer.

Não nos devemos maravilhar com o fato de que a pele de um animal possa resistir à ação do fogo. Assim, chegamos à conclusão de que a pele da salamandra (pois existe realmente tal animal, é uma espécie de lagarto) era incombustível e de grande utilidade para servir de invólucro a artigos muito valiosos para serem protegidos por material; comum. Foram realmente produzidos panos à prova de fogo, que se diziam feitos da pele de salamandra, embora os conhecedores verificassem que a substância de que eram feitos era o amianto, um mineral cujos filamentos muito finos podem ser aproveitados para a fabricação de tecidos.

O fundamento das lendas acima relatadas parece provir do fato da salamandra realmente secretar pelos poros do corpo um líquido leitoso, que, quando ela se irrita, é produzido em grande quantidade e que pode, sem dúvida, durante alguns momentos, protegê-la contra o fogo. Além disso, a salamandra é um animal hibernante, que, durante o inverno, se refugia em algum tronco oco de árvore ou em outra cavidade, e ali permanece em estado de torpor, até que a primavera o desperte de novo. É possível, portanto, que seja levada ao fogo junto com a lenha e só desperte a tempo de recorrer a suas faculdades defensivas. Seu suco viscoso lhe seria, então, de todo valor e todos quantos a têm visto admitem que ela trata de sair do fogo o mais depressa possível, com exceção de um caso, em que as patas e outras partes do corpo do animal ficaram seriamente queimadas.

 

20. Minerva

Nascimento de Minerva

Métis, a reflexão personificada, fora a primeira esposa de Júpiter. Foi ela que deu ao velho Saturno uma beberagem para obrigá-lo a devolver os jovens deuses que ele havia engolido. Estando grávida, predisse a Júpiter que teria em primeiro lugar uma filha e, em seguida, um filho que se tornaria senhor do céu. O rei dos deuses, espantado com tal profecia, engoliu Métis. Algum tempo depois, foi acometido de violentíssima dor de cabeça e rogou a Vulcano que lhe fendesse a cabeça com o machado.

Mal recebeu o golpe de machado de Vulcano, saiu-lhe do cérebro, armada de todas as suas peças, a filha Minerva, nova encarnação da sabedoria divina. Essa lenda, de caráter assaz bárbaro e, por conseguinte, velhíssima, está representada de maneira ingênua num baixo-relevo onde, extraordinariamente, Vulcano é um rapaz imberbe.

Num espelho etrusco vemos Ilitia, a deusa dos partos assistindo ao rei dos deuses e tirando-lhe da cabeça Minerva, que sai armada do capacete e da lança. No outro lado está Vênus que também parece acorrer em auxílio a Júpiter e atrás da qual vemos, empoleirada numa árvore, a pomba que lhe é consagrada. Tais divindades trazem os seus nomes no espelho em língua etrusca.

O mesmo tema decorava um dos frontões do Partenão, mas é provável que o nascimento estivesse ali concebido de maneira inteiramente diversa. Infelizmente, nada resta da parte central do frontão em que tal cena estava representada.

Júpiter é a abóbada do céu donde jorra o raio luminoso e súbito; como é também o senhor dos deuses, a sua sabedoria não vacila absolutamente em lhe brotar do cérebro divino. Minerva devia, pois, nascer inteiramente armada e provida de todos os seus atributos. É assim que no-la apresentam as estátuas, muitas vezes com a lança e o escudo, mas sempre com o capacete e a égide.

Luciano narrou o nascimento de Minerva sob forma de diálogo:

"Vulcano. - Que devo fazer, Júpiter? Venho, por ordem tua, armado de um machado afiadíssimo e que, se houvesse necessidade, seria capaz de partir, de um só golpe, a mais dura das pedras.

Júpiter. - Ótimo, Vulcano! Parte-me, pois, a cabeça.

Vulcano. - Queres submeter-me a uma prova, ou estás louco? Dá-me uma ordem séria, dize o que queres que eu faça!

Júpiter. - Já te disse, parte-me a cabeça; bate com toda a força e sem demora; não posso viver com as dores que me dilaceram o cérebro.

Vulcano. - Acautela-te, Júpiter. Quem sabe se não vamos cometer uma asneira? O meu machado é afiadíssimo, fará com que te corra o sangue e não te libertará à guisa de Lucina.

Júpiter. - Bate, vamos, Vulcano! Nada temas. Sei o que quero.

Vulcano. - Bato, mas contra a vontade. Que me resta, se assim me ordenas?... Que estou vendo? Uma jovem armada da cabeça aos pés! Safa, que dor de cabeça não devia ser a tua, Júpiter! Não é de assombrar que te hajas mostrado irascível, se trazias viva, sob a membrana do teu cérebro, uma jovem desta estatura, e, ainda por cima, armada. Não sabíamos que tinhas na cabeça um verdadeiro campo. Olha, ela salta! Ei-la que dança a pírrica, agita o escudo, brande a lança, e está dominada pelo entusiasmo. O que é mais estranho é que, de súbito, se tornou belíssima e pronta para casar. É verdade que tem olhos cinzentos, mas o capacete compensa esse defeito. Júpiter, como pagamento pelo serviço que te prestei, cede-ma por esposa.

Júpiter. - Tu me pedes o impossível, Vulcano; ela quer permanecer virgem para sempre. Quanto a mim, não me oponho ao que desejas.

Vulcano. - É o que quero. O resto fica por minha conta. Vou levá-la." (Luciano).

Nascimento de Erecteu

Vulcano pôs-se imediatamente a procurar Minerva, e, certo de que ela estivesse na Acrópole, rumou para Atenas. Mal a percebeu, colocou-se-lhe na frente e quis dar os passos necessários. Mas a deusa o recebeu de maneira tal que lhe tirou qualquer desejo de recomeçar. O pobre ferreiro ficou despeitadíssimo; para mostrar que saberia dispensá-la, resolveu contrair núpcias no mesmo instante, e dirigiu-se à Terra, boníssima criatura, que o aceitou apesar das mãos negras. Dessa união nasceu Erecteu, que mais tarde se tornou rei de Atenas. O que deu origem a tão singular lenda foi a fato de os atenienses, já colocados sob a proteção de Minerva, quererem, por um laço qualquer, prender-se ao deus do fogo, que preside à indústrias dos metais.

A Terra, mal gerou Erecteu, deixou o recém-nascido no chão, sem mais com ele preocupar-se, como se fosse uma simples cobra ou um verme. Minerva, percebendo-o, compadeceu-se e, pegando-o, pô-lo num cesto e levou-o para o seu santuário. Mas, apesar de todo o seu bom coração, não conseguia livrar-se das preocupações guerreiras, e, estando a galgar a Acrópole levando o cesto, notou que a sua cidade não estava bastante fortificada do lado do Ocidente. Entrou na casa de Cécrops, que tinha três filhas, Pandrosa, Aglaura e Herse, e, confiando-lhes o cesto, muito bem fechado, proibiu-lhes que o abrissem para verificar o conteúdo, e imediatamente partiu em busca de uma montanha que julgava necessária para a fortificação da cidade. Quando partiu, Aglaura e Herse, impelidas pela curiosidade, pretenderam abrir o cesto, não obstante as censuras de Pandrosa. Mas uma gralha, que tudo vira, foi contar o fato a Minerva, que já segurava a montanha entre os braços e que fortemente surpresa, a deixou cair. Eis aí a origem do monte Licabeto.

Pandrosa

A deusa concebeu tal afeto por Pandrosa, que não somente lhe confiou a educação do pequenino protegido, como também exigiu que Pandrosa, após a morte, recebesse as honras divinas. Quando Erecteu se tornou rei de Atenas, apressou-se em satisfazer tal desejo, mas, associando no seu reconhecimento a filha de Cécrops e a deusa que o recolhera, elevou um templo em duas partes, uma das quais foi dedicada a Minerva e outra a Pandrosa. A construção foi queimada pelos persas, como todos os monumentos de Atenas, e o que hoje existe foi erguido após as guerras médicas.

Disputa de Minerva e Netuno

Atenas tira o seu nome de Atena (nome grego de Minerva) mas a honra de dar o nome à cidade que Cécrops acabava de fundar deu origem a uma famosa disputa entre Netuno e a deusa. Constituía ela o tema de um dos dois frontões do Partenão, esculpidos por Fídias e cujos fragmentos mutilados fazem hoje parte do Britsh Museum em Londres.

Era preciso pôr a nova cidade sob a proteção de uma divindade. Decidiu-se que se tomaria por protetor da cidade o deus que produzisse a coisa mais útil. Netuno, batendo a terra com o tridente, criou o cavalo e fez jorrar uma fonte de água do mar, querendo com isso dizer que o seu povo seria navegador e guerreiro. Mas Minerva domou o cavalo para o transformar em animal doméstico, e, batendo a terra com a ponta da lança, fez surgir uma oliveira carregada de frutos, pretendendo com aquilo mostrar que o seu povo seria grande pela agricultura e pela indústria.

Cécrops, embaraçado, consultou o povo, para saber a que deus preferia entregar-se. Contudo, não se tendo naqueles tempos tão remotos imaginado que as mulheres não pudessem tão bem quanto os homens exercer direitos políticos, todos votaram. Ora, sucedeu votarem todos os homens por Netuno e todas as mulheres por Minerva; mas como entre os colonos que acompanhavam Cécrops, houvesse uma mulher mais, Minerva raptou-a. Netuno protestou contra essa maneira de julgar a divergência, e apelou para o tribunal dos doze grande deuses. Estes chamaram Cécrops como testemunha, e tendo sido a votação considerada regular, passou a cidade a ser consagrada a Minerva. Os atenienses, no entanto, temendo a cólera de Netuno que já ameaçara engoli-los, ergueram na Acrópole um altar ao Olvido, monumento de reconciliação de Netuno e Minerva; em seguida, Netuno participou das honras da deusa. Eis como os atenienses se tornaram um povo navegador e ao mesmo tempo agrícola e manufatureiro.

Minerva era para os atenienses a deusa por excelência e a Acrópole a montanha santa. A Acrópole figura numa moeda de Atenas, assaz grosseira, aliás. Não se vêem nela representações de edifícios, mas somente dominar a grande Minerva de bronze, que os navegantes saudavam de longe, como protetora da cidade. A confiança inspirada por Minerva só desapareceu com a influência cristã, e um dos derradeiros historiadores pagãos, Zózimo, narra de que maneira se apresentou a deusa pela última vez. "Alarico, diz ele, impaciente por se apoderar de Atenas, não quis entreter-se com outro assédio. Apressou-se, pois, em ir a Atenas na esperança de tomá-la, quer por ser dificílimo defender a grande extensão das suas muralhas, quer por estar ele já de posse do Pireu e por haver pouquíssimas provisões na cidade. Eis a esperança nutrida por Alarico. Mas a cidade tão antiga seria conservada pela providência dos deuses no meio de tão terrível perigo. A maneira pela qual ela foi protegida é demasiadamente milagrosa e demasiadamente capaz de inspirar sentimentos de piedade, para que a silenciemos. Quando Alarico se aproximou das muralhas à testa do seu exército, viu Minerva, tal qual surge nas imagens, dar a volta à cidade, e Aquiles tal qual o descreve Homero apareceu no alto das muralhas. Alarico, estarrecido com o espetáculo, tratou de fazer a paz e abandonou a luta." (Zózimo).

Tipo e Atributos de Minerva

"A partir do dia, diz Ottfried Muller, em que Fídias terminou de desenhar o caráter ideal de Minerva-atena, uma fisionomia cheia de calma, uma força que tem consciência de si própria, um espírito claro e lúcido, passaram a ser para sempre os principais traços do caráter de Palas. A sua virgindade a coloca acima de todas as fraquezas humanas; ela é demasiadamente viril para se entregar a um homem. A testa muito pura, o nariz longo e fino, a linha um pouco dura da boca e das faces, o queixo largo e quase quadrado, os olhos pouco abertos e quase constantemente voltados para a terra, a cabeleira atirada, sem arte, para cada lado da testa e ondulada sobre a nuca, traços nos quais transparece a rudeza primitiva, correspondem perfeitamente a tão maravilhosa criação ideal."

Minerva se identifica completamente com a cidade que ela protege, e se por duas vezes usa cavalos no capacete é para mostrar a sua reconciliação com Netuno a quem era consagrado o cavalo, e que, como deus dos mares, não podia deixar de ter grande importância em Atenas. É o que vemos num medalhão antigo no qual a cidade de Roma personificada se liga à de Atenas (Palas-atena). As duas ilustres cidades se caracterizam pelos seus atributos: a loba com os dois filhos é o atributo comum de Roma, como a coruja é o habitual atributo de Atenas. A deusa ateniense traz a égide com a cabeça de Górgona, e quatro cavalos lhe ornam o capacete.

Os cavalos aparecem igualmente num soberbo entalhe antigo. A pena do capacete é suportada por uma esfinge e dois corcéis alados ou pégasos: a parte da frente está ornada de quatro cavalos e o cobre-orelha de um grifo. Os enfeites da deusa são luxuosos; além da égide de escamas bordadas de serpentes, traz ela um colar de bolotas, e brincos em forma de cachos de uvas.

Às vezes, como na medalha de Thurium, não é nem o cavalo, nem o grito que ornam o capacete de Minerva, mas uma Cila ou um monstro fantástico com cauda de serpente.

A deusa usa sempre um capacete, até quando desempenha um papel pacífico. O capacete tem, às vezes, asas para indicar o caráter aéreo de Palas. Vemo-lo, quanto ao resto, sob formas extremamente variadas, em moedas gregas ou romanas.

A coruja, a ave que vê bem durante a noite, é naturalmente consagrada a Minerva, deusa que personifica simultaneamente o raio e a inteligência. Nas mais antigas moedas de Atenas se nos depara a coruja, símbolo de uma vigilância constantemente alerta.

Como deusa guerreira, Minerva combate com a lança. No entanto, uma medalha da Macedônia, imitação de antiga figura arcaica, no-la apresenta com o raio de Júpiter. A vitória está freqüentemente na mão da deusa. É assim que ela aparece numa bela moeda do Lisímaco.

A arte dos tempos primitivos preferia a imagem de Palas às das outras divindades; os antigos paládios representavam ordinariamente a deusa com o escudo erguido, e brandindo a lança. Entretanto, essa forma varia muito, até nos próprios tempos primitivos, e Minerva se reveste de diferentes aspectos, segundo as localidades.

Uma medalha da Nova Ílion representa uma Palas troiana cujo tipo, imitação de antiga figura arcaica, deve remontar a remota antigüidade. Está de pé e traz na mão direita a lança apoiada ao ombro, enquanto a esquerda empunha um facho. A ave sagrada está de pé diante da deusa, cujo costume, e particularmente o capacete, se afastam completamente do tipo habitual de Minerva.

A égide é uma pele de cabra de que nos servimos como escudo, mas significa igualmente a tempestade, e é em tal sentido que Homero a entende, quando fala do fogo e da luz que partem do escudo divino. Minerva, sendo na ordem física o raio personificado, devia ter por atributo a égide, e nos monumentos arcaicos podemos ver de que maneira era empregada primitivamente. Na grande época da arte, Minerva trá-la sobre o peito; a Górgona figura sempre na égide.

A cabeça da Górgona é um dos atributos essenciais da deusa a aparece quer sobre a égide, quer sobre o seu escudo. Exprime o terror com o qual Palas fere os inimigos.

A Minerva arcaica de Herculanum está numa atitude hierática: vestida do peplo de dobras tesas e engomadas, que recobre a concha, marcha resolutamente para o combate. A maneira pela qual a deusa traz aqui a égide é característica: segura-a sobre o ombro para ter o braço esquerdo inteiramente coberto. A égide é grandíssima, ao passo que nos monumentos menos antigos, perde algo da sua importância.

A égide usada por Júpiter passava por ser a pele da cabra Amaltéia, que lhe foi nutriz. Mas há tradições diferentes em torno da égide de Minerva. A deusa matara o monstro Ágis, filho da Terra, que vomitava chamas com uma fumaça negra e espessa. O monstro desolou, a princípio, a Frígia, em seguida o monte Cáucaso, cujas florestas queimou até a Índia. Depois foi incendiar o monte Líbano e devastou sucessivamente o Egito e a Líbia. Minerva, após o derrubar, o traspassou com a lança e da sua pele fez uma couraça, sobre a qual colocou posteriormente a cabeça de Górgona, e que usava como troféu. Quando a égide está colocada em volta do braço, como no-la apresenta a Minerva de Herculanum, é sempre um sinal de combate.

A Minerva de Egina segura a lança e o escudo no alto, mas a égide, em vez de ser usada sobre o braço, serve de couraça para garantir o peito e até as costas, sobre as quais recai. Essa estátua, que hoje se encontra na Gliptoteca de Munique, ocupava o centro do frontão ocidental do templo de Egina.

A famosa Minerva de Fídias, no Partenão, era de marfim e ouro. A deusa estava de pé, coberta da égide, e a sua túnica descia até os calcanhares. Empunhava uma lança com uma das mãos e com a outra uma vitória. O capacete estava encimado por uma esfinge, emblema da inteligência celeste; nas partes laterais havia dois grifos, cuja significação era a mesma que a da esfinge, e, acima da viseira, oito cavalos a galope, imagem da rapidez com a qual age o pensamento divino. A cabeça de Medusa figurava-lhe no peito. Os braços e a cabeça da deusa eram de marfim, com exceção dos olhos formados por duas pedras preciosas; as vestes eram de ouro e podiam ser retiradas com facilidade, pois era mister, quando a república se via em apertos, poder recorrer ao tesouro público, do qual a deusa era depositária. Na face exterior do escudo, posto aos pés da deusa, estava representado o combate dos atenienses contra as amazonas, na face inferior o dos gigantes contra os deuses: o nascimento de Pandora estava esculpido no pedestal. Um trecho da Antologia grega compara a Minerva de Fídias, em Atenas, à Vênus feita por Praxíteles em Cnido: "Vendo a divina imagem de Vênus, filha dos mares, tu dirás: subscrevo o juízo do frígio Páris. Se vires em seguida a Minerva de Atenas, exclamarás: quem não lhe adjudicou o primeiro era um boieiro!"

Minerva e Encélades

Minerva participou da guerra dos deuses contra os gigantes e contribuiu poderosamente para a vitória de Júpiter. Entre os inimigos por ela vencidos, o mais importante é Encélades. A força desse gigante era tal que, sozinho, poderia ter lutado contra todos os deuses juntos. Num momento em que Minerva se achava distante dos companheiros de armas, Encélades, percebendo que ela estava sozinha, dá um salto e posta-se-lhe na frente. A deusa o vê sem empalidecer, reúne todas as forças e pegando com ambas as mãos a Sicília, atira-a sobre o gigante que fica esmagado sob a enorme massa. A queda de Encélades termina a guerra dos gigantes: às vezes tenta ele remexer-se, e é o que produz os tremores de terra da região. A sua cabeça está situada sob o monte Etna, por onde vomita chamas, o que leva um poeta francês a dizer:

"Encelade, malgré son air rébarbatif, dessous le mont Etna fut enterré tout vif; là chaque fois qu'il éternue, un volcan embrase les airs, et quand par hasard il remue, il met la Sicile à l'envers."

O tanque de Encéfales em Versalhes mostra o gigante do qual somente vemos a cabeça e os gigantescos braços no meio dos fragmentos de rochedos. Mas a luta de Minerva contra esse gigante, tal qual a descreveu a mitologia, tem sido raramente representada, por não ser do domínio da plástica.

Minerva e Tirésias

Virgem essencialmente casta, Minerva sempre vestida, e se os artistas dos últimos séculos a representam por vezes despida, notadamente no julgamento de Páris, é pela ignorância em que se encontram quase sempre dos caracteres distintivos da deusa. Um único homem, o tebano Terésias, observou um dia Minerva no banho, e foi imediatamente ferido de cegueira, ou, segundo outros, metamorfoseado em mulher.

Pradier fizera um grupo de Minerva repelindo as setas de Cupido: a idéia era justa mitologicamente. Vênus ofendeu-se um dia pelo fato de seu filho nada poder contra a deusa ateniense:

"Vênus. - Por que, pois, Amor, tu que venceste os demais deuses, Júpiter, Netuno, Apolo, Réa, e eu própria, tua mãe, po que poupas apenas Minerva? Contra ela o teu archote não tem fogo, a tua aljava não tem setas, tu não tens arco... Não sabes mais disparar uma seta?

Amor. - Tenho medo dela, minha mãe. Ela é terrível, os seus olhos são terríveis, o seu aspecto imponente e viril. Todas as vezes em que avanço contra ela para lançar-lhe uma seta, ela me espanta agitando a sua pena; tremo e as setas me fogem das mãos.

Vênus. - Marte, por acaso, não é mais terrível? E, no entanto, tu o desarmaste e venceste.

Amor. - Sim, mas ele próprio é que se oferece aos meus golpes; chama-os. Minerva, pelo contrário, sempre me fita com desconfiança; um dia quando por acaso voava para ela, segurando o archote: "Se te aproximares de mim, disse-me, juro por meu pai que te varo com esta lança, pego-te pelo pé e atiro-te ao Tártaro, onde te dilacerarei com as minhas próprias mãos para matar-te." São essas as suas ameaças sem fim, e ao mesmo tempo lança sobre mim olhares furiosos; traz, ademais, sobre o peito uma cabeça horrorosa, cuja cabeleira é feita de víboras e que sempre me causa o maior terror. Creio estar vendo um fantasma e fujo mal a percebo." (Luciano).

Minerva e Mársias

Segundo uma velhíssima lenda, Minerva, tendo encontrado um osso de cervo, dele se serviu para inventar a flauta. Mas notando que tal instrumento a obrigava a umas caretas que a afeavam, e que, quando pretendia tocar, as demais deusas se riam, atirou para longe a desastrada flauta, e proferiu a maldição mais terrível contra o que a recolhesse. O frígio Mársias, que muito provavelmente pouco se importava com a divindade de Atena, não atribuiu a menor importância a tais imprecações, recolheu o instrumento e conseguiu tecá-lo com grande perfeição. Havia na Acrópole de Atenas um grupo representando Minerva a golpear Mársias, por ter ousado recolher a flauta por ela atirada para longe e que ela desejava fosse esquecida para todo o sempre. Num baixo-relevo, que está em Roma, vemos Minerva tocando a flauta dupla, e Mársias, sob a forma de um sátiro, a espreita para se apoderar do instrumento, no momento oportuno. Mais habitualmente, a deusa observa com atenção o que acaba de inventar. A mesma razão que a obrigou a renunciar ao uso de tal instrumento, impedia que os escultores a representassem com uma figura deformada e careteira.

Minerva Higéia

Vimos a serpente aparecer entre os atributos de Minerva. Essa serpente é habitualmente o emblema de Erecteu, que foi criado pela deusa. Mas Minerva era, por vezes, invocada como protetora da saúde. Tinha então o nome de Minerva higéia, e a serpente que ao seu lado surge com uma taça que a deusa segura com a mão, como se a serpente estivesse perto da companheira de Esculápio.

Minerva Obreira ou Ergane

Minerva não é apenas guerreira. Dela é que nos vem a indústria, é por isso tem sido denominada Minerva obreira. Laboriosa tanto quanto guerreira, enriquece as cidades que a honram ao mesmo tempo em que as protege. Ama a agricultura, e ensinou aos homens o uso da oliveira: é por tal motivo que essa árvore lhe é consagrada e que vemos figurar uma lâmpada entre os seus atributos. A arquitetura, a escultura, a mecânica cabem o domínio da deusa, que preside em geral a todos os trabalhos do espírito e da imaginação. Está representada, com tal aspecto, mas conservando o seu costume de guerra, num interessante baixo-relevo, onde a vemos dirigir, com os seus conselhos, um jovem escultor que cinzela um capitel, e outros obreiros que lidam com uma máquina; Júpiter e Diana estão atrás dela e seguidos de uma sacerdotisa fazendo uma libação, e de uma grande serpente de cabeça de bode que representa o gênio do teatro, como indica a inscrição mutilada que se lê acima. A de baixo diz: "Lucéio Pecularis, empreiteiro do proscênio, mandou colocar este baixo-relevo votivo segundo um sonho tido."

As principais atribuições de Minerva ergane estão resumidas num passo de Artemidoro: "Minerva é favorável aos artesãos, em virtude do seu apelido de obreira; aos que desejam contrair núpcias, pois pressagia que a esposa será casta e apegada ao lar; aos filósofos, pois é a sabedoria nata do cérebro de Júpiter. É ainda favorável aos lavradores, porque tem uma idéia comum com a terra; e aos que vão à guerra, porque tem uma idéia comum com Marte."

Foi Minerva obreira que inventou as velas dos barcos e a ela se deve a construção do famoso navio Argos. Mas é sobretudo pelos tecidos e trabalhos das mulheres que Minerva assume importância toda especial, e tem por atributo a roca. É também especialmente invocada pelas obreiras que preparam os tecidos, como se pode ver neste trecho da Antologia:

"Ó Minerva, as filhas de Xuto e de Melita, Sátira, Heracléia, Eufro, todas três de Samos, te consagram uma a sua longa roca, com o fuso que obedecia aos seus dedos para se incumbir dos fios mais soltos; outra a sua lançadeira harmoniosa que fabrica as telas de tecido cerrado; a terceira o seu cesto com os lindos novelos de lã, instrumentos de trabalho que, até a velhice, lhes sustentaram a laboriosa vida. Eis, augusta deusa,, as ofertas das tuas piedosas obreiras."

Minerva e Aracne

Os tecidos constituíam um dos ramos mais importantes da indústria dos atenienses; mas as fábricas da Ásia, célebres em todas as épocas, sobrepujavam em delicadeza as cidades gregas, cujos tecidos menos delicados eram provavelmente mais sólidos. Foi o que deu origem à lenda que nos pinta a rivalidade entre Minerva e Aracne.

Aracne não era ilustre pelo nascimento, mas o seu talento e a sua industriosidade a haviam tornado famosa. Seu pai era tintureiro de lã na cidade de Colonon, e ela adquirira tal reputação em todas as cidades da Lídia pela beleza dos seus trabalhos, que as ninfas do Tmolo e do Pactolo abandonavam as águas límpidas e os deliciosos bosquetes para lhe admirar os trabalhos da agulha. Sabia fiar e fazer a lã, e embelezava os seus tecidos com desenhos encantadores realçados por todas as cores do arco-íris. Envaidecia-se, porém, de tal modo com o seu talento, que por toda parte apregoava não ter receio de desafiar a própria Minerva.

A deusa, ferida por tal intento, assumiu o aspecto de uma anciã, cobriu de cabelos brancos a cabeça, e, indo procurar Aracne, censurou-a em termos amigáveis pela inconveniência da pretensão de uma simples mortal de se comparar a uma deusa, e sobretudo à deusa da qual procede toda a indústria humana. Aracne ofendeu-se, acolheu muito mal a anciã, que assim lhe falava, e, fitando-a de sobrolho carregado, avançou para ela disposta a golpeá-la, dizendo que, se Minerva se apresentasse, saberia muito bem confundi-la, mas que a deusa não ousaria, certamente, empreender uma luta que lhe seria desvantajosa.

Minerva, diante daquelas palavras, reassume o seu verdadeiro aspecto e declara que aceita o desafio. Ei-las a prepararem os trabalhos, a disporem os tecidos e a iniciarem o mister. Já corre a lançadeira com incrível rapidez, e o desejo que ambas experimentam de vencer redobra a atividade. Para tornarem o trabalho mais perfeito, cada uma delas desenha velhas histórias. Minerva representou no seu a disputa mantida com Netuno em torno do nome que deveria ser usado pela cidade de Atenas. Aracne houve por bem fixar histórias que não podiam deixar de ser desagradáveis às divindades do Olimpo grego. Viam-se as metamorfoses dos deuses, e as suas intrigas amorosas figuradas de tal modo que nenhum prestígio lhe advinha. Mas o trabalho de Aracne foi executado com tal delicadeza e tão incrível perfeição que Minerva não logrou descobrir sequer o menor defeito.

Esquecida, então, de que era deusa, para só se lembrar do despeito provado por ser igualada em finura por uma simples mortal, Minerva rasgou o tecido da rival, que imediatamente se enforcou de desespero. Minerva, tomada de piedade, sustentou-a no ar, para impedir que se estrangulasse, e disse-lhe: "Viverás, Aracne, mas ficarás para sempre pendurada desta maneira; será o castigo teu e de toda a tua posteridade." Ao mesmo tempo, Aracne sentiu que a cabeça e que o corpo lhe diminuíam de volume; mingudas patas lhe substituíram os braços e as pernas, e o resto do corpo se transformou num enorme ventre. A partir de então, as aranhas sempre continuaram a fiar, e a indústria humana até hoje não conseguiu igualar a finura dos seus tecidos. (Ovídio).

É fácil notar que esta lenda, na qual Minerva não revela absolutamente um bom caráter, tem a sua origem nas cidades gregas da Ásia. Aracne, que é lídia, mostra, aos olhos dos gregos, uma singular audácia ao se comparar com a ateniense Minerva, mas os tecidos do Oriente eram inimitáveis, e procurados anciosamente em todos os mercados da Grécia; não é no terreno do trabalho que Aracne é vencida, é apenas mediante um resultado do poder divino, de que se acha dotada a adversária, igual, senão superior a ela em talento.

A Festa das Panatenéias

A grande festa das Panatenéias celebrava-se em Atenas, em honra de Minerva (Atena), deusa tutelar da cidade, a quem ela devera o nome. A festa compreendia diferentes exercícios, entre outros corridas a pé e a cavalo, combates gímnicos, e concursos de música e poesia. As lutas gímnicas se desenrolavam nas margens do Ilisso. A festa terminava por uma grande procissão figurada no friso da cela do Partenão.

O objetivo religioso da festa era cobrir a deusa de um véu novo em substituição ao que fora gasto pelo tempo. Mas o objetivo político era muito outro; tratava-se de mostrar que Minerva era ateniense pelo coração, e que ninguém podia invocar-lhe a proteção, se não fosse amigo de Atenas.

No monumento, vemos a sacerdotisa recebendo duas jovens virgens que lhe entregam objetos misteriosos. As jovens são crianças, pois segundo os ritos não podiam ter menos de sete anos nem mais de onze. "Durante a noite que precede a festa, diz Pausânias, põem elas sobre a cabeça o que a sacerdotisa lhes ordena que carreguem. Ignoram o que se lhes dá; aquela que lhes dá os objetos misteriosos também nada sabe. Há na cidade, perto da Vênus dos jardins, um recanto em que se acha um caminho subterrâneo cavado pela própria natureza. As jovens descem por aí, depõem o fardo, e em troca recebem outro, cuidadosamente coberto. O precioso fardo contém a velha vestimenta, e o que elas trazem de volta encerra a nova. Como a cena se desenrola de noite, uma delas empunha um archote."

Enquanto a sacerdotiza recebe a nova vestimenta da deusa, o grão-sacerdote, assistido por um jovem rapaz, se ocupa em dobrar o antigo peplo. O público não assiste à misteriosa cena do santuário, mas os deuses, espectadores invisíveis, estão sentados e dispostos em grupos simétricos. Entre eles, depara-se-nos Pandrosa, recoberta do véu simbólico que caracteriza o sacerdócio; mostra ela ao jovem Erecteu, ajoelhado, a cabeça da procissão que avança em direção ao santuário.

Vem antes um grupo de anciãos de andar grave, todos envoltos nos seus mantos e quase todos a se apoiarem nos seus bordões. São os guardas das leis e dos ritos sagrados, pois alguns parecem dar instruções às jovens virgens atenienses que os seguem. Trazem estas com gravidade o candelabro, o cesto, os vasos, as páteras e os demais objetos destinados ao culto. Depois das atenienses, surgem as filhas dos forasteiros fixados em Atenas. Não têm o direito de carregar objetos tão santos, mas seguram nas mãos os assentos dobradiços que servirão os canéforos. Vêm, depois, os arautos e os ordenadores da festa, que precedem os bois destinados ao sacrifício, seguidos dos meninos que conduzem um carneiro. Desfilam alguns homens que seguram bacias e odres cheios de azeite. Finalmente os músicos que tocam flauta ou lira, e um grupo de anciãos, todos empunhando um ramo de oliveira.

Começa, então, o desfile dos carros puxados por quatro cavalos e o longo cortejo dos cavaleiros. Sabia-se que Minerva ensinara aos homens a arte de domar os cavalos e de os atrelar ao carro, e a festa era sempre acompanhada de jogos eqüestres. Todos conheciam, pelos moldes, a famosa cavalgata do Partenão. Um cortejo de jovens, cuja clâmide flutua ao vento, doma os cavalos tessalienses que se empinam e lhes resistem.

Os prêmios concedidos aos vencedores nos jogos realizados em honra de Minerva consistiam ordinariamente em ânforas cheias de azeite. Era um modo de lembrar que a deusa plantara a oliveira que constituía a grande riqueza da Ática. O museu do Louvre possui vários desses vasos, chamados panatenaicos. Têm eles interessantes decorações, nas quais vemos Minerva de pé, brandindo a lança e segurando o escudo. A figura está concebida no estilo tradicional das antigas figuras de estilo arcaico. Está situada entre duas colunas que suportam, cada uma, um galo.

O galo era, com efeito, consagrado a Minerva obreira; Creuzer nos explica a razão: "O nome de ergane, diz ele, exprimiu a princípio o próprio trabalho, a tarefa diária, e parece ter-se aplicado primitivamente, com epíteto de Minerva, à proteção especial que a deusa dispensava às ocupações das mulheres. Sob tal ponto de vista, era-lhe consagrado o galo; quando o canto dessa ave anuncia o retorno da Aurora, relembra-nos ao mesmo tempo o culto de Minerva ergane e de Mercúrio agoreu, ou seja, os trabalhos da indústria e do comércio."

 

21. O Cupido ou Eros

Nascimento de Cupido

Cupido nos tempos primitivos é considerado um dos grandes princípios do universo e até o mais antigo dos deuses. Representa a força poderosa que faz com que todos os seres sejam atraídos uns pelos outros, e pela qual nascem e se perpetuam todas as raças. Mitologicamente, não sabemos quem é seu pai, mas os poetas e escultores concordam em lhe dar Vênus por mãe, e é realmente naturalíssimo que Cupido seja filho da beleza.

O nascimento de Cupido proporcionou a Lesueur o tens de uma encantadora composição. Vênus sentada nas nuvens está rodeada das três Graças, uma das quais apresenta o gracioso menino. Uma das Horas, que paira no céu, esparze flores sobre o grupo.

Educação de Cupido

Notando Vênus que Eros (Cupido) não crescia e permanecia sempre menino, perguntou o motivo a Têmis. A resposta foi que o menino cresceria quando tivesse um companheiro que o amasse. Vênus deu-lhe, então, por amigo Anteros (o amor partilhado). Quando estão juntos, Cupido cresce, mas volta a ser menino quando Anteros o deixa. É uma alegoria cujo sentido é que o afeto necessita de ser correspondido para desenvolver-se.

A educação de Cupido por Vênus proporcionou assunto para uma multidão de maravilhosas composições em pedras gravadas. Vênus brinca com ele de mil modos diversos, pegando-lhe o arco ou as setas e seguindo-lhe com o olhar os graciosos movimentos. Mas o malicioso menino vinga-se, e várias vezes a mãe experimenta o efeito das suas flechadas.

Cupido era freqüentemente considerado um civilizador que soube mitigar a rudeza dos costumes primitivos. A arte apoderou-se dessa idéia, apresentando-nos os animais ferozes submetidos ao irresistível poder do filho de Vênus. Nas pedras gravadas antigas vemos Cupido montado num leão a quem enfeitiça com os seus acordes; outras vezes atrela animais ferozes ao seu carro, após domesticá-los, ou então quebra os atributos dos deuses, porque o universo lhe está submetido. Não obstante o seu poder, jamais ousou atacar Minerva e sempre respeitou as Musas.

Cupido é o espanto dos homens e dos deuses. Júpiter, prevendo os males que ele causaria, quis obrigar Vênus a desfazer-se dele. Para o furtar à cólera do senhor dos deuses, viu-se Vênus obrigada a ocultá-lo nos bosques, onde ele sugou o leite de animais ferozes. Também os poetas falam sem cessar da crueldade de Cupido: "Formosa Vênus, filha do mar e do rei do Olimpo, que ressentimento tens contra nós? Por que deste a vida a tal flagelo, Cupido, o deus feroz, impiedoso, cujo espírito corresponde tão pouco ao encantos que o embelezam? Por que recebeu asas e o poder de lançar setas, a fim de que não pudéssemos safar-nos dos seus terríveis golpes?" (Bíon).

Um epigrama de Mosco mostra a que ponto conhecia Cupido o seu poder, até contra Júpiter. "Tendo deposto o arco e o archote, Cupido, de cabelos encaracolados, pegou um aguilhão de boieiro e suspendeu ao pescoço o alforje de semeador; depois, atrelou ao jugo uma parelha de bois vigorosos e nos sulcos atirou o trigo de Ceres. Olhando, então para o céu, disse ao próprio Júpiter: "Fecunda estes campos, ou então, touro da Europa, eu te atrelarei a este arado." (Antologia).

Luciano, nos seus diálogos dos deuses, assim formula as queixas de Júpiter a Cupido:

"Cupido. - Sim, se cometi um erro, perdoa-me, Júpiter. Sou ainda menino e não atingi a idade da razão.

Júpiter. - Tu, Cupido, um menino?! Mas se és mais velho que Japeto. Por não teres barba nem cabelos brancos, julga-tes ainda menino? Não. És velho e velho maldoso.

Cupido. - E que mal te fez, pois, este velho, como dizes, para que penses em encadeá-lo?

Júpiter. - Vê, pequenino malandro, se não é grande mal insultar-me a ponto de fazeres com que eu me revestisse da forma de sátiro, touro, cisne e água. Não fizeste com que mulher alguma se apaixonasse de mim próprio, e não sei absolutamente que, pelo teu sortilégio, eu tenha conseguido agradar a uma que fosse. Pelo contrário, devo recorrer a metamorfoses e ocultar-me. É verdade que amam o touro ou o cisne, mas se me vissem morreriam de medo." (Luciano).

Cupido inspirou encantadores trechos a Anacreonte: "No meio da noite, na hora em que todos os mortais dormem, Cupido chega e, batendo à minha porta, faz estremecer o ferrolho: "Quem bate assim? exclamei. Quem vem interromper-me os sonhos cheios de encanto? - Abre, responde-me Cupido, não temas, sou pequenino. Estou molhado pela chuva, a lua desapareceu e eu me perdi dentro da noite." Ouvindo tais palavras apiedei-me; acendo a lâmpada, abro e vejo um menino alado, armado de arco e aljava; levo-o ao pé da lareira, aqueço-lhe os dedinhos entre as minhas mãos, e enxugo-lhe os cabelos encharcados de água. Mal se reanima: "Vamos, diz-se, experimentemos o arco. Vejamos se a umidade o não estragou. "Estica-o, então, e vara-me o coração, como faria uma abelha; depois, salta, rindo com malícia: "Meu hóspede, diz, rejubila-te. O meu arco está funcionando perfeitamente bem, mas o teu coração está agora enfermo." (Anacreonte).

"Um dia, Cupido, não percebendo uma abelha adormecida nas rosas, foi por ela picado. Ferido no dedinho da mão, soluça, corre, voa para o lado de sua mãe: "Estou perdido, morro! Uma serpentezinha alada me picou. Os lavradores dizem que é uma abelha." Vênus responde-lhe: "Se o aguilhão de uma simples abelha te faz chorar, meu filho, reflete como devem sofrer aqueles a quem tu atinges com as setas!" (Anacreonte).

Tipo e Atributos de Cupido

Na arte Cupido apresenta dois tipos distintos, pois uma das vezes o vemos como adolescente, outras sob o aspecto de gracioso menino. Mas o primeiro de tais tipos é o mais antigo. Uma pedra gravada nos mostra Cupido de estilo antigo, representado por um efebo alado e disparando uma seta. O arco, as setas e as asas são sempre os atributos de Cupido.

O tipo de Cupido adolescente está fixado perfeitamente num tronco do museu Pio-Clementino. Os membros, infelizmente, faltam. Os ombros apresentam vestígios de orifícios abertos para acolherem o pé das asas. A cabeça, de delicada beleza, está coberta de cabelos encaracolados.

Foi Praxíteles, contemporâneo de Alexandre, que fixou na arte o tipo de Cupido. Sabe-se que o grande escultor era freqüentador assíduo da famosa cortesã Frinéia. Esta, ao lhe pedir um dia que ele lhe cedesse a mais bela das suas estátuas, teve o prazer de ser ouvida. Mas Praxíteles não lhe explicou qual delas seria. Frinéia, então, mandou que um escravo fosse à casa do escultor, e dali a pouco o escravo voltou dizendo que um incêndio destruíra a casa de Praxíteles e com ela a maior parte dos seus trabalhos; no entanto, acrescentou, que nem tudo desaparecera. Praxíteles precipitou-se imediatamente para a porta, gritando que estaria perdido todo o fruto dos seus longos esforços, se o incêndio lhe não tivesse poupado o Cupido e o Sátiro. Frinéia tranqüilizou-o assegurando-lhe que nada estava queimado e que, graças ao ardil, ficara sabendo dele próprio o que de melhor havia em escultura. Escolheu, assim, o Cupido. Mas não era para guardá-la que a cortesã pedira a obra-prima ao grande escultor, pois, na Grécia, os costumes licenciosos não impediam sentimentos elevados. Frinéia doou a estátua à cidade de Téspies, sua pátria, que Alexandre acabara de devastar. A escultura foi consagrada num antigo templo de Cupido, e foi graças a esse Destino religioso que se tornou espécie de compensação para uma cidade destruída pela guerra. "Téspies já não é mais nada, diz Cícero, mas conserva o Cupido de Praxíteles, e não há viajante que não vá visitá-la para conhecer tão esplêndida obra-prima." Esse Cupido era de mármore, as asas eram douradas, e ele empunhava o arco. Calígula mandou que o transportassem para Roma; Cláudio devolveu-o aos habitantes de Téspies, Nero roubou-o de novo. A célebre estátua foi, então, colocada em Roma sob os pórticos de Otávio, onde pouco depois a destruiu um incêndio.

O escultor Lisipo também fizera uma estátua de Cupido para os habitantes de Téspies, colocada ao lado da obra-prima de Praxíteles. A famosa estátua conhecida pelo nome de Cupido empunhando o arco passa por ser cópia de uma dessas duas obras. Via-se também no templo de Vênus em Atenas um famosíssimo quadro de Zêuxis, representando Cupido coroado de rosas. Até a conquista romana, quase sempre fora Cupido representado como adolescente de formas esbeltas e elegantes. A partir de tal época, surge mais freqüentemente sob o aspecto de menino.

A arte dos últimos séculos representou muitas vezes Cupido. No quarto de banho do cardeal Bibbiena, no Vaticano, Rafael fixou Cupido triunfante, fazendo puxar o carro por borboletas, cisnes, etc. Numa multidão de encantadoras composições mostra-o doidejando ao lado de sua mãe ou então abandonando-a, após havê-la picado.

Parmeggianino fez com Cupido e o seu arco uma graciosa figura que, por longo tempo foi atribuída a Correggio. Correggio e Ticiano, por sua vez, fixaram Cupido em todas as suas formas, mas nenhum pintor o representou tantas vezes quantas Rubens. Os cupidos frescos e bochechudos do grande mestre flamengo podem ser vistos em todas as galerias, brigando, brincando, voando, correndo, colhendo frutos, etc.

Embora tais composições pequem, uma vez que outra, por um pouco de afetação, são quase sempre encantadoras. A maioria foi popularizada pela gravura ou pela litografia. Aqui, vemos Cupido de pé, asas abertas, passar os braços em volta do pescoço da Inocência sentada num cabeço. Mais longe, a Inocência seduzida por Cupido, é arrastada pelo Prazer e seguida pelo Arrependimento. Outras vezes, o autor representa Cupido preso por um elo de ferro ao pedestal de um busto de Minerva e pisando com o pequenino pé, mas em troca, outras é Cupido triunfante que se vinga da mulher insensata a qual julgou encadeá-lo para sempre.

Cupido fere várias vezes sem ver, e dá origem a sentimentos que nem o mérito, nem a beleza explicam suficientemente. Foi o que Correggio pretendeu exprimir ao representar. Vênus prendendo uma venda sobre os olhos do filho. Ticiano pintou o mesmo tema que se vê reproduzido com freqüência na arte dos últimos séculos.

Esaco

Cupido produz naqueles aos quais fere efeitos preendentes, que na Lenda se traduzem sempre por metamorfoses. Assim, o mergulhão é uma ave que voa sempre acima das águas e nela mergulha freqüentemente. Noutros tempos, tratava-se do filho de um rei, que tinha aversão à corte do pai e evitava participar das festas que ali se realizavam, preferindo ir aos bosques, por ter a esperança de encontrar a ninfa Hespéria a quem amava ternamente. Entretanto Esaco, assim se chamava ele, não era correspondido. Um dia, estando a ninfa a fugir-lhe à perseguição amorosa, foi picada por uma serpente venenosa e morreu. Esaco, desesperado por lhe ter causado a morte, atirou-se ao mar do alto de um rochedo. Mas Tétis, comovida, sustentou-o na queda, cobriu-o de penas, antes que ele caísse na água e impediu-o, assim, de morrer, por maior que fosse o seu desejo de não sobreviver à querida Hespéria. Indignado contra a mão favorável que o protege, queixa-se da crueldade do Destino que o força a viver. Eleva-se no ar, depois se precipita com impetuosidade na água; mas as penas o sustêm e reduzem o esforço que ele faz para morrer. Furioso, mergulha a todo instante no mar, e procura a morte que o evita. O amor tornou-o magro, tem coxas longas e descarnadas e um pescoço muito comprido. Ama as águas, e é pelo fato de nelas mergulhar constantemente que se chama mergulhão. (Ovídio).

Pico e Circe

Pico, filho de Saturno e rei da Itália, era um jovem príncipe de maravilhosa beleza. Todas as ninfas o admiravam quando o viam, mas a feiticeira Circe não se contentou com admirá-lo, e quis que ele a desposasse. No entanto, só colheu desdém, pois ele amava perdidamente Canenta, filha de Jano. Um dia, tendo ido caçar javalis, encontrou Circe, que lhe confessou abertamente a sua paixão. Vendo-se desdenhada, a feiticeira proferiu as terríveis palavras de que se serve para fazer empalidecer a lua ou obscurecer o sol. Pico, aterrorizado com as fórmulas mágicas, começou a fugir; mas imediatamente notou que estava correndo muito mais velozmente do que de hábito, ou antes que estava voando, visto que fora metamorfoseado em ave. Na sua cólera, pôs-se a dar fortes bicadas nas árvores; as penas tinham conservado a cor das vestes usadas por ele naquele dia, e o broche de ouro que as prendia ficou assinalado no seu pescoço por uma mancha amarelada, brilhante. Canenta chorou tanto que o seu formoso corpo terminou por se evaporar nos ares, e dela nada mais restou.

O Cabelo de Niso

De todas as metamorfoses operadas por Cupido, não há nenhuma que seja tão surpreendente como a de que foi vítima Cila, filha do rei Niso.

O rei de Creta, Minos, após devastar as costas de Megara, iniciara o cerco da cidade, cujo Destino dependia de um cabelo de ouro que Niso, rei do país trazia entre os cabelos brancos. O síto já durava havia seis meses sem que a sorte se declarasse nem por um partido, nem por outro. Em Megara havia uma torre cujas muralhas produziam um som harmonioso desde que Apolo ali deixara a sua lira. A filha do rei, Cila, subia freqüentemente, em tempo de paz, a essa torre, para ter o prazer de produzir nas muralhas alguns sons atirando-lhes pequeninas pedras. Durante o cerco, também visitava o mesmo lugar para de lá ver os ataques e os combates feridos em torno da cidade. Como fizesse bastante tempo que os inimigos se achavam acampados em torno, ela conhecia os principais oficiais, as suas armas, os seus cavalos e a sua maneira de combater. Nota sobretudo o chefe, Minos, com particular atenção e mais do que o necessário para a sua tranqüilidade, tanto que a paixão atingiu tal ponto que ela resolveu sacrificar o país à glória do estrangeiro a quem amava.

Uma noite, enquanto a cidade inteira estava imersa no sono, penetrou no aposento do pai e cortou-lhe o cabelo fatal. Munida do precioso objeto, a infeliz Cila, a quem o crime dava nova ousadia, saiu da cidade, atravessou o campo inimigo, chegou à tenda de Minos a quem confiou o cabelo do qual dependia a salvação da cidade. Minos sentiu aversão por tão desnaturada filha, e recusou-se a vê-la. O cabelo estava cortado, a cidade caiu entre as mãos dos inimigos, mas Minos partiu imediatamente depois, proibindo o embarque de Cila nos seus navios. Foi em vão que ela alcançou, banhada em lágrimas, a praia, cabelos desalinhados, braços estendidos para o homem que a repelia. Viu partir o navio, e, no seu desespero, atirou-se ao mar para seguir a nado o ente amado. Mas notou seu pai, Niso, que, metamorfoseado em gavião, a perseguia, e começava a cair sobre ela para a dilacerar a bicadas. Assim, em vez de nadar, Cila começa também a voar sobre a superfície da água, pois estava, por sua vez transformada em calhandra. Desde então a ave de rapina, que ela tão indignamente traíra, não cessa de lhe fazer cruel guerra. (Ovídio).

 

22. Ulisses

A Estória de Ulisses

Ulisses (também chamado de Odisseu) sabia antes de ir a Tróia que decorreriam vinte anos para o seu retorno à sua ilha rochosa de Ítaca, seu filho Telêmaco e sua esposa Penélope. Permaneceu em Tróia por dez anos e por outros dez singrou os oceanos, naufragou, acabando por ficar desprovido de todos os seus companheiros, freqüentemente com a vida por um fio, até que no vigésimo ano chegou mais uma vez às praias de sua ilha natal.

O Ciclope

Ao deixar Tróia, Ulisses e seus companheiros primeiramente encontraram os Cicônios, cuja cidade eles saquearam, mas em cujas mãos sofreram pesadas baixas. Estiveram em perigo de perder mais elementos para os Comedores de Loto, hedonistas que nada faziam além de ficarem sentados e comendo as saborosas frutas que os faziam esquecer todos os cuidados e responsabilidades. Ulisses teve que arrastar a força de volta ao navio aqueles que, entre os seus homens, provaram o loto. Mal tinham se recobrado da aventura quando enfrentaram a seguinte, o encontro com o Ciclope Polifemo.

Os ciclopes eram uma raça de fortes gigantes de um só olho, que ocupavam uma fértil região onde o solo gerava abundantes plantações por conta própria, fornecendo um pasto farto para as gordas ovelhas e bodes. Ansioso para encontrar os habitantes de tal terra, Ulisses direcionou um navio para o porto e, desembarcando, se dirigiu juntamente com a tripulação à caverna do Ciclope Polifemo, um filho de Posídon. Polifemo estava fora cuidando de suas ovelhas, assim Ulisses e a tripulação ficaram à vontade, até que ele retornou com o seu rebanho ao crepúsculo. O Ciclope era forte. Monstruoso e terrível e após algumas poucas perguntas sobre a origem e o que desejavam seus hóspedes inesperados, agarrou dois deles e fez seus miolos saltarem ao chão antes de devorá-los. A seguir o Ciclope sentiu-se sonolento; Ulisses considerou esfaqueá-lo até a morte, mas desistiu da idéia quando percebeu que a fuga seria impossível, pois a entrada da caverna tinha sido bloqueada com uma grande rocha, a qual o Ciclope podia erguer com uma só mão, mas seria impossível de mover mesmo com a força combinada de Ulisses e seus companheiros. O Ciclope comeu mais dois homens de Ulisses como refeição matinal e então saiu, tomando o cuidado de recolocar a grande pedra na entrada da caverna. O inteligente Ulisses não demorou a montar um plano de ação. Ele aguçou a ponta de uma grande estaca de madeira que havia no chão da caverna e endureceu sua ponta ao fogo.

Ao cair da tarde quando Polifemo retornou à caverna, Ulisses ofereceu-lhe uma tigela de forte vinho para acompanhar sua ração de marinheiros gregos. O Ciclope bebeu o vinho com entusiasmo e pediu para que a tigela fosse reenchida três vezes. Então, num estupor de embriaguez, deitou-se para dormir. Antes de dormir, perguntou o nome de seu hóspede, e Ulisses respondeu que era "Outis", ou seja, "Ninguém" em grego; o Ciclope prometeu que em retribuição pelo vinho comeria "Ninguém" por último. Assim que o monstro dormiu, Ulisses aqueceu a ponta da estaca ao fogo; quando ela ficou em brasa ele e quatro de seus melhores homens enterraram a ponta no olho único do Ciclope. O olho emitiu um chiado, semelhante "ao alto silvo que sai de um grande machado ou enxó, quando o ferreiro coloca a peça dentro da água para conferir-lhes têmpera e dar força ao ferro". O Ciclope, rudemente acordado pela dor terrível, urrou e rugiu, chamando seus vizinhos, os outros Ciclopes, para que viessem ajudá-lo. Mas quando estes se agruparam do lado de fora de sua caverna e perguntaram quem o estava incomodando, quem o tinha ferido, sua única resposta foi que Ninguém o incomodava e Ninguém o estava ferindo; assim eles acabaram perdendo o interesse e se retiraram.

Ao amanhecer, Ulisses e seus homens se preparam para fugir da caverna; cada homem foi amarrado embaixo de três grandes ovelhas, enquanto Ulisses alojou-se sob o líder do rebanho, um grande carneiro com magnífica lã. O Ciclope cego afastou a pedra e sentou-se à entrada da caverna, tentando agarrar a tripulação de Ulisses que estava saindo juntamente com as ovelhas, mas estes passaram a salvo por suas mãos, Ulisses por último. Guiando as ovelhas para o seu navio, eles trataram de zarpar rapidamente, apesar que Ulisses não resistiu zombar do Ciclope, que respondeu atirando pedaços de penhascos na direção de sua voz, alguns chegando a cair muito próximos do barco. Assim, Ulisses reuniu-se ao restante da esquadra e, enquanto os marinheiros pranteavam os companheiros perdidos, consolaram-se com as próprias ovelhas que tinham auxiliado sua fuga da caverna.

Eólia

Da ilha do Ciclope, Ulisses velejou até que chegou à ilha flutuante de Eólia, cujo rei, Éolo, tinha recebido de Zeus o poder sobre todos os ventos. Éolo e sua grande família receberam Ulisses e sua tripulação de maneira hospitaleira, e, ao chegar a hora da partida, Éolo deu a Ulisses uma bolsa de couro na qual tinha aprisionado todos os ventos tempestuosos; a seguir, invocou uma boa brisa para o oeste que levaria os navios a salvo para casa, em Ítaca. Eles velejaram no curso por dez dias e estavam à vista de Ítaca quando o desastre os atingiu. Ulisses, que tinha ficado acordado toda a jornada segurando o leme do barco, caiu num sono exausto, e sua tripulação, não sabendo o que havia na bolsa de couro, começou a suspeitar que continha um valioso tesouro que Éolo teria dado a Ulisses. Ficaram enciumados, sentindo que tinham enfrentado as situações difíceis com Ulisses, devendo também compartilhar suas recompensas: acabaram por abrir a bolsa e acidentalmente libertaram os ventos. Ulisses acordou no meio de uma medonha tempestade, que soprou o navio de volta a Eólia. Desta vez a recepção dada a Ulisses e a seus companheiros foi bastante diferente. Eles pediram que Éolo lhes desse uma nova chance, mas, este declarando que Ulisses devia ser um homem odiado pelos deuses, negou-se terminantemente a ajudá-los, mandando embora Ulisses e seus companheiros.

Circe

Na sua seguinte chegada à terra, Lestrigônia, todos os navios, com exceção o de Ulisses, foram perdidos num calamitoso encontro com os monstruosos habitantes; assim foi num estado considerável de pesar e depressão que Ulisses e seus camaradas sobreviventes viram-se na ilha de Aca. Desembarcando, permaneceram deitados dois dias e duas noites na praia, completamente exaustos pelos seus esforços e desmoralizados pelos horrores que tinham passado. No terceiro dia, Ulisses levantou-se para explorar a ilha, e a partir de um outeiro percebeu fumaça saindo de uma habitação na floresta. Decidindo prudentemente a não fazer um reconhecimento imediato, retornou ao barco para contar a novidade aos companheiros. Previsivelmente ficaram amedrontados, lembrando dos Lestrigões e do Ciclope, mas, como Ulisses estava determinado a explorar, dividiu sua companhia em dois grupos, um comandado por ele próprio e o outro por um homem chamado Euríloco. Os dois grupos tinham a sorte e a tarefa da exploração recaiu em Euríloco, enquanto Ulisses permaneceu no navio. O grupo de Euríloco acabou chegando à casa na floresta. Do lado de fora existiam lobos e leões, que cabriolavam e faziam festas aos homens; eram de fato seres humanos que tinham sido transformados em animais pela feiticeira Circe, cujo lindo canto podia ser escutado no interior da casa. Quando os marinheiros gritaram para chamar sua atenção, saiu e os convidados a entrar; apenas Euríloco, suspeitando de algum truque, permaneceu do lado de fora. Circe ofereceu comida aos homens, no qual continha uma droga que os faria esquecer de sua terra natal; quando terminaram de comer, os tocou com sua varinha e os conduziu ao chiqueiro, pois agora possuíam a forma externa de porcos, apesar de infelizmente lembrarem quem realmente eram.

Em pânico, Euríloco voltou correndo ao navio para relatar o desaparecimento de seus companheiros. Ulisses ordenou que o levasse de volta à casa de Circe, e quando se recusou, partiu só para o resgate. No seu caminho através da ilha, encontrou Hermes, disfarçado como um jovem; o deus deu-lhe uma planta mágica, a qual, misturada com a comida de Circe, seria um antídoto para sua droga; também o instruiu como lidar com a feiticeira: quando Circe o tocasse com sua varinha, deveria avançar sobre ela como se para matá-la; ela então recuaria com medo e o convidaria a compartilhar de sua cama. Deveria concordar com isso, mas deveria fazê-la jurar solenemente a não tentar truques enquanto estivesse vulnerável.

Os fatos se passaram como Hermes tinha previsto. Após terem ido para a cama, Circe banhou Ulisses e o vestiu com roupas finas e lhe preparou um suntuoso banquete, mas Ulisses sentou-se numa abstração silenciosa, recusando toda a atenção. Circe acabou lhe perguntando o que estava errado, e disse-lhe que ela não poderia esperar que estivesse de corpo e alma na festa enquanto metade de sua tripulação estava chafurdando no chiqueiro. Então Circe libertou os novos porcos de seu confinamento e os untou com ungüento mágico. Seus pêlos rijos caíram e se tornaram novamente homens, porém mais jovens e mais bonitos do que tinham sido antes. Ulisses e seus homens choraram com alívio e alegria e pararam apenas quando Circe sugeriu que deveriam chamar o restante de sua companhia para que se juntassem à celebração. Ficaram com Circe por todo um ano, comendo, bebendo e se divertindo, esquecendo os percalços que tinham passado.

O Mundo Inferior

Eventualmente, Ulisses foi lembrado por alguns dos companheiros que talvez fosse tempo de se pensar em Ítaca. Circe avisou-o que antes de zarpar para casa deveria primeiro visitar o Mundo Inferior (ou reino dos mortos) para consultar o profeta tebano Tirésias: apenas Tirésias poderia dar-lhe instruções para seu retorno. Assim, Ulisses velejou com seu navio através do Rio de Oceano e atracou o barco perto do bosque de choupos de Perséfone. Lá, na margem, cavou uma vala na qual colocou libações aos mortos, compostas de mel, água, leite e vinho; sobre a vala cortou a garganta de um carneiro e de uma ovelha negra. Atraídos pelo cheiro de sangue, as almas dos mortos surgiram para beber, mas Ulisses sacou sua espada e os manteve a distância, esperando pelo aparecimento da alma de Tirésias. O primeiro a aparecer foi um elemento de sua tripulação, Elpenor, que tinha caído do teto da casa da Circe onde estava dormindo na manhã da partida e o qual, na ânsia dos outros em partir, tinha ficado sem enterro nem velório; Ulisses prometeu resolver este caso assim que possível. Quando Tirésias apareceu, Ulisses o deixou beber o sangue, e o profeta então disse-lhe que havia uma boa possibilidade para seu retorno a salvo para casa, mas deveria certificar-se em não pilhar o Rebanho do Sol na ilha de Trinácia; também o alertou sobre a situação que encontraria em Ítaca, onde pretendentes astutos estavam cercando sua fiel esposa Penélope.

Após ter ouvido o que Tirésias poderia contar-lhe, Ulisses deixou outras almas se aproximarem e beber o sangue, o que lhes possibilitou conversar com Ulisses. A primeira que surgiu era sua velha mãe, que relatou-lhe como tinha morrido e fez um triste relato do estado lamentável de seu pai Laerte e os bravos esforços de Penélope para repelir seus pretendentes. Ulisses, tocado pelo pesar e desejando confortar tanto a si próprio como a sua mãe, tentou três vezes abraça-la, mas nas três vezes se desvaneceu entre seus braços e o deixou segurando o ar. Outras heroínas aproximaram-se e conversaram, e a seguir veio Agamenon, que contou a Ulisses sobre sua morte sangrenta, confortando-o com a idéia que Penélope nunca agiria como Clitemnestra. Aquiles também se aproximou, e Ulisses saudou-o como o homem mais afortunado que já havia vivido, um poderoso príncipe entre os vivos e os mortos. Aquiles respondeu que preferiria ser um escravo vivo do que um rei morto, mas Ulisses o consolou com notícias das façanhas de seu filho Neoptólemo, e partiu feliz.

Durante esta visita Ulisses viu alguns dos famosos componentes do mundo dos mortos; Sísifo eternamente empurrando sua grande pedra montanha acima, com ela escorregando de volta assim que chegava ao topo; e Tântalo, enfiado até o pescoço dentro de uma pequena lagoa com água, a qual desaparecia quando se inclinava para bebê-la, com ramos de frutas pendentes sobre sua cabeça que sumiam quando ele tentava alcança-las. Ulisses queria ver mais, e encontrou o fantasma do poderoso Hércules, mas antes de poder encontrar outros heróis de gerações anteriores, foi assustado por uma grande onde de mortos que vieram aos milhares em sua direção e elevaram a sua volta seus brados lúgubres e dolorosos; em pânico, retornou ao navio, soltou as amarras e cruzou de volta ao mundo dos vivos.

As Sereias, Cila e Caribde

Ulisses retornou à ilha de Circe, e assim que Elpenor foi adequadamente sepultado, Circe deu a Ulisses mais instruções para a sua jornada e para prepará-lo para os males que ainda estavam por vir. O navio velejou primeiro para a ilha das Sereias, terríveis criaturas com cabeças e vozes de mulheres, mas com corpos de pássaros, que existiam com o propósito de atrair marinheiros para as rochas de sua ilha com doces canções. Quando o barco se aproximou, uma calmaria mortal se abateu sobre o mar, e a tripulação utilizou os remos. De acordo com as instruções de Circe, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera, enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse passar a salvo pelo perigo e ainda ouvir a canção. "Venha para perto, Ulisses", cantavam as Sereias: Ulisses gritou para seus homens para que o soltassem, mas remaram resolutamente para a frente, e o perigo acabou passando.

A próxima tarefa era navegar os dois locais perigosos de Cila e Caribde. Caribde era um terrível redemoinho, que alternativamente sugava e aatirava para cima a água; os marinheiros prudentes que escolheram evitá-lo foram forçados a encontrar, ao invés, a igualmente terrível Cila. Cila ocultava-se numa caverna localizada no alto de um rochedo, disfarçada pela névoa e vapor de água dos vagalhões abaixo; possuía doze pés que balançavam no ar e seis pescoços, cada um equipado com uma monstruosa cabeça com três fileiras de dentes. Da sua caverna exigia uma taxa de vítimas humanas dos barcos que passavam abaixo. Ulisses, alertado por Circe, decidiu não contar a seus marinheiros sobre Cila; passando mais ao largo possível de Caridbe, eles passaram diretamente abaixo do rochedo de Cila, e, apesar de Ulisses estar armado e preparado para lutar com ela pela vida da tripulação, conseguiu escapar de sua vigilância e teve sucesso em arrebatar seis vítimas aos berros.

O Rebanho do Sol

A seguir, o navio aproximou-se da ilha de Trinácia, um local de pasto farto onde Apolo mantinha seu rebanho do gado gordo. Ulisses tinha sido alertado tanto por Circe como por Tirésias que, se esperava alcançar Ítaca vivo, deveria evitar este local e, a qualquer custo, não tocar neste gado. Explicou isto a seus homens, mas, cansados e deprimidos pela perda de mais seis camaradas, insistiram em lançar âncora e passar a noite na praia. Deparando-se com um motim, Ulisses tinha poucas opções além de concordar, mas os fez jurar que deixariam o gado em paz. Naquela noite formou-se uma tempestade, e por todo um mês o vento soprou do sul, sendo impossível continuarem sua viagem.

Enquanto possuíam as provisões que Circe tinha lhes dado, os homens mantiveram sua promessa e não tocaram no gado. Mas sua comida acabou por terminar e, movidos pela fome, aproveitaram a oportunidade de uma ausência temporária de Ulisses para abater alguns dos mais belos exemplares do rebanho; consideravam que se os sacrificassem em honra dos deuses, os deuses dificilmente ficariam irados. Ulisses retornou sentindo o odor da carne assada; repreensão era inútil, pois o mal estava feito, e os deuses estavam determinados a vingar o crime. Quando a carne terminou, o vento amainou, assim o navio pode zarpar; mas nem bem estava no mar quando uma terrível borrasca surgiu e o barco foi primeiramente esmagado pela força das ondas, e a seguir feito em pedaços por um raio. Toda a tripulação se perdeu, salvo o próprio Ulisses, que conseguiu agarrar-se aos destroços do mastro e quilha, no qual permaneceu por dez dias até que foi jogado nas areias da ilha de Pgigia, morada da linda ninfa Calipso.

Calipso

Calipso tornou Ulisses seu amante e ficou com ela por sete anos, pois não tinha meios de escapar. A deusa Atena acabou enviando Hermes, mensageiro dos deuses, para explicar à ninfa que era chegada a hora de deixar seu visitante seguir seu caminho. Calipso, apesar de relutante em perdê-lo, sabia que devia obedecer, assim forneceu a Ulisses material para a confecção de uma jangada, deu-lhe comida e bebida e invocou um vento suave para levá-lo de volta a Ítaca. Sem incidentes, aproximou-se da terra dos Feácios, grandes marinheiros que estavam destinados a levá-lo na última etapa de sua viagem. Mas então Posídon interviu: detestava Ulisses pelo que tinha causado a seu filho, o Ciclope Polifemo, e agora estava irado por vê-lo tão próximo do fim de sua jornada. Então, enviou outra tempestade, que partiu o mastro da jangada e a deixou ser levada pelo vento.

Como o vento norte na época da colheita arremessa pelos campos uma bola de cardo, o mesmo ocorreu com a sua jangada, indo para cima e para baixo sobre as ondas. Agora o Vento Sul o jogaria para o Norte como um jogo, e agora o Leste o deixaria para ser perseguido pelo Oeste.

Ulisses foi salvo da morte certa pela intervenção da ninfa marinha Ino. Ela deu-lhe seu véu, instruindo-o a atá-la ao redor da cintura e então a abandonar o barco e se dirigir para a praia. Como uma grande onda despedaçou sua jangada, Ulisses fez o que tinha lhe sido dito. Por dois dias e duas noites nadou em frente, mas no terceiro dia alcançou as praias de Feácia e acabou conseguindo chegar à costa rochosa na foz de um rio. Atirou o véu de Ino de volta ao mar e deitou-se numa moita espessa para dormir.

Ulisses em Feácia

Inspirada por Atena, a princesa Feaciana Nausícaa tinha escolhido aquele mesmo dia para uma ida à foz do rio para lavar roupas nas fundas lagoas que lá existiam. Quando ela e suas criadas terminaram a lavagem e espalharam as roupas sobre os seixos, tomaram banho, comeram e se divertiram cantando e brincando com uma bola enquanto esperavam que as roupas secassem. Quando Nausícaa atirou a bola para uma das criadas, esta não conseguiu segurar e acabou caindo no rio; todas as moças gritaram alto e Ulisses acordou de seu sono, imaginando em que terra selvagem tinha chegado agora. Quebrando um galho, o qual utilizou para esconder sua nudez, emergiu de sua moita e encontrando Nausícaa bravamente mantendo o seu lugar, enquanto as outras moças fugiram em pânico. Dirigiu-se a Nausícaa numa súplica, pedindo-lhe para mostrar o caminho para a cidade e para que desse algo para vestir. Nausícaa respondeu-lhe com dignidade e gentileza, e, após ter tomado banho, Ulisses passou óleo no próprio corpo e vestiu-se com uma das finas roupas delas; deu-lhe comida e bebida, e ele a acompanhou juntamente com as outras moças de volta aos arredores da cidade. Para evitar fofocas, Nausícaa deixou Ulisses neste ponto, para que fosse só ao centro da cidade. Sugeriu que fosse direto à casa de seu pai Alcínoo e caísse aos pés de sua mãe Arete com uma súplica.

Guiado pela própria Atena na forma de outra moça local, Ulisses chegou ao esplêndido palácio de Alcínoo. Havia paredes de bronze e portões de ouro, guardados por cães de guarda de ouro e prata. Dentro do palácio, a luz era fornecida por estátuas de ouro maciço mostrando jovens portando tochas. Dentro do pátio havia um lindo jardim e horta, com árvores frutíferas, vinhas e uma bem aguada cobertura vegetal. Após ter admirado tudo isso, Ulisses, envolto numa névoa criada por Atena, entrou e caminhou diretamente em direção à rainha Arete, colocando seus braços em volta de seus joelhos numa súplica. Assim que a névoa disfarçante se dissipou, os Feácios escutaram com espanto sua petição: pediu abrigo e para ser transportado para sua terra natal.

Quando se recobrou de sua surpresa inicial, Alcínoo foi generoso na sua reação. Polidamente, evitou questionar seu hóspede imediatamente, arranjou-lhe um descanso imediato, prometendo que pela manhã medidas seriam tomadas para retorná-lo a sua terra. Quando os outros Feácios se retiraram e Ulisses ficou a sós com Alcínoo, Arete perguntou-lhe quem era e como tinha conseguido suas roupas, as quais não tinha tardado a reconhecer. Ulisses, então, contou a estória de suas aventuras desde que tinha deixado a ilha de Ogigia, explicando como tinha encontrado Nausícaa na foz do rio. Enquanto isso, Arete arranjou que um leito fosse arrumado e Ulisses ficou grato em se retirar.

No dia seguinte um barco foi emparelhado para transportar Ulisses de volta à sua casa, mas antes de partir, o hospitaleiro Alcínoo insistiu em festejar seu hóspede e regalá-lo com esportes e outros entretenimentos. Primeiro o bardo Demódoco atuou para o grupo reunido, cantando um episódio da guerra de Tróia, uma discussão que tinha ocorrido entre o ilustre Aquiles e o inteligente Ulisses. Enquanto escutava, Ulisses chorou e moveu seu manto sobre a cabeça para esconder sua tristeza. Apenas Alcínoo percebeu, e para alegrar seu convidado propôs algumas competições atléticas. No início Ulisses ficou alegre ao observar os jovens nobres, mas, quando desafiado, atirou o disco a uma distância recorde. A seguir, ocorreram danças e então Demódoco cantou novamente a estória das aventuras amorosas de Afrodite e Ares. Os nobres Feacianos competiram entre si para presentear Ulisses. Na refeição da noite, Demódoco cantou novamente, e com sugestão de Ulisses o tema foi o Cavalo de Madeira de Tróia. Ulisses chorou novamente enquanto ouvia, e novamente apenas Alcínoo o observou. Ao fim da estória, Alcínoo pediu a Ulisses que lhes contasse quem era, de onde vinha e para onde desejava ser transportado; e porque chorava com as canções do bardo. Assim convidado, Ulisses contou quem era e descreveu todas as aventuras pelas quais tinha passado: falou dos Cicônios e dos Comedores de Loto, do Ciclope, Éolo, os Lestrigões, Circe, sua visita ao mundo dos mortos, as Sereias, Cila e Caridbe e o Rebanho do Sol, finalizando com sua estada com Calipso, de onde acabou por sair e ser trazido à terra dos Feácios.

Na manhã seguinte Ulisses despediu-se finalmente de seus anfitriões e um rápido barco Feaciano o conduziu sem incidentes a Ítaca. Ulisses dormiu quando o barco percorria sua rota, e estava ainda adormecido quando a estrela d'alva surgiu e a tripulação o colocou, juntamente com os presentes recebidos dos Feácios, na praia de Ítaca, ao lado de uma maravilhosa caverna, morada das ninfas. Quando Ulisses acordou não conseguiu reconhecer o local, em grande parte porque Atena tinha lançado uma névoa sobre a ilha, para lhe dar tempo de encontrar Ulisses e lhe arranjar um disfarce adequado. Como estava nervosamente se perguntando onde os traiçoeiros Feácios o tinham desembarcado, Atena apareceu na forma de um pastor e, em resposta às suas perguntas, contou-lhe que estava realmente em Ítaca. O cansado Ulisses contou a deusa uma estória sobre ser um exilado cretense; ela sorriu diante de sua inteligência e em resposta revelou sua verdadeira identidade, reafirmando-lhe que estava realmente em Ítaca, e o aconselhou como deveria proceder para reconquistar sua esposa e reino.

Ulisses em Ítaca

Nos vinte anos que Ulisses esteve fora de casa, a maioria do povo de Ítaca, fora sua esposa Penélope, seu filho Telêmaco e uns poucos amigos fiéis, acreditava que estava morto, que tinha morrido em Tróia ou na sua viagem de volta. Como Penélope não era apenas bonita e completa, mas também rica e poderosa, sendo que o homem que casasse com ela herdaria a riqueza e a posição de Ulisses, estava sendo acossada por pretendentes, jovens nobres que permaneciam no palácio de seu marido, comendo e bebendo suas provisões e forçando suas atenções indesejadas sobre ela. Pelo período que pode, Penélope ganhou tempo, convencendo cada um que havia base para esperança, mas não dizendo nada definitivo a qualquer um deles. Por três anos os enganou, dizendo que estava tecendo um manto para o velho pai de Ulisses, Laerte; seria inadmissível que ele morresse sem que tivesse uma mortalha pronta; portanto deveriam aguardar sua decisão até que tivesse terminado sua tarefa. Todos os dias trabalhava no tear, mas à noite desfazia seu trabalho sob luz de tochas. No início do quarto ano, entretanto, foi traída por uma de suas criadas, que ajudou seus pretendentes a pegá-la no seu artifício. E relutantemente foi forçada a terminar seu tecido.

Pouco antes da chegada de Ulisses em Ítaca, Atena inspirou Telêmaco, agora com idade para desempenhar um papel ativo no retorno de seu pai, a fazer uma jornada com o objetivo de descobrir o que lhe tinha acontecido. Telêmaco se dirigiu primeiramente a Pilos, onde consultou o velho Nestor; Nestor não tinha novidades, mas o enviou ao magnificente palácio de Menelau em Esparta. Menelau e Helena o trataram com grande bondade, e Menelau explicou como tinha ficado sabendo de um Velho Homem do Mar que Ulisses estava retido na ilha da linda ninfa Calipso. Quando Ulisses chegou a Ítaca, Telêmaco estava voltando para casa; os pretendentes, irritados e um pouco alarmados pelo comportamento de Telêmaco, planejaram emboscar seu barco durante o seu retorno, mas, com a ajuda de Atena, Telêmaco escapou desta armadilha e chegou a salvo em casa.

Atena aconselhou Ulisses a não ir diretamente à cidade mas, ao contrário, procurar abrigo com o porqueiro Eumeu, que vivia com seus porcos numa fazenda um pouco distante. Disfarçado como um mendigo, Ulisses fez como sua patronesse sugeriu, e foi muito bem recebido por Eumeu, cuja explanação sobre a situação na cidade era entremeada com elogios a seu senhor ausente e preces para seu retorno a salvo. Em resposta às perguntas de Eumeu, Ulisses contou-lhe uma longa estória sobre suas origens, dizendo ser um filho ilegítimo de um rico cretense; após muitas aventuras tinha acabado em Tesprótia, onde tinha ouvido falar de Ulisses, o qual tinha passado a pouco tempo por este local. O rei de Tesprótia o colocou num navio com destino a Duliquio, mas a maldosa tripulação o tinha preso, com a intenção de vendê-lo como escravo. Quando eles desembarcaram em Ítaca, conseguiu soltar-se de suas cordas e nadar para a praia, chegando então à morada de Eumeu.

Eumeu engoliu toda a estória, exceto referências a Ulisses, que se recusava a aceitar, mesmo quando seu hóspede jurou que estaria de volta naquele mesmo mês e ofereceu-se para ser jogado num abismo pelos homens de Eumeu se estivesse errado. Eumeu serviu a Ulisses uma refeição composta de carne de porco assada, e arrumou uma confortável cama perto do fogo; ele próprio passou a noite do lado de fora, cuidando da propriedade de seu senhor ausente.

Na noite seguinte, durante o jantar na cabana do porqueiro, Ulisses anunciou sua intenção de rumar para a cidade para esmolar no palácio; mas Eumeu, ansioso pela segurança de seu hóspede, insistiu que esperasse o retorno de Telêmaco. Naquela noite, foi a vez de Eumeu contar a estória de sua própria vida, e contou como tinha nascido de pais nobres mas sendo raptado por mercadores fenícios quando era criança, para ser vendido como escravo em Ítaca. Na manhã seguinte, Telêmaco chegou a ilha e, guiado por Atena, seguiu diretamente para a cabana do porqueiro. Enquanto Eumeu seguiu para a cidade para contar a Penélope que Telêmaco estava de volta, Atena dissolveu o disfarce de Ulisses e solicitou que revelasse a identidade do filho. Telêmaco a princípio relutou em acreditar que o mendigo na cabana do porqueiro era realmente seu pai, mas acabou convencendo-se e os dois choraram juntos, de alegria e alívio. Ao se recobrarem fizeram planos: Ulisses seguiria Telêmaco de volta à cidade e iria esmolar em seu próprio palácio. Lá, avaliaria a situação e esperaria a oportunidade ideal para atacar; quando esta ocasião chegasse, sinalizaria para Telêmaco e, então, os dois, com a ajuda de Zeus e Atena, dariam cabo dos miseráveis pretendentes.

Ulisses foi para a cidade em companhia do porqueiro. No caminho encontraram o pastor de cabras Melanteu, em velhaco completamente a soldo dos pretendentes, que dirigiu vários insultos e golpes ao velho mendigo. Do lado de fora, sobre um monte de esterco, estava um velho galgo, doente e debilitado. Quando escutou a voz de Ulisses, ergueu as orelhas e moveu alegremente sua cauda. Ulisses o reconheceu imediatamente e, tocado por sua aparência, disfarçadamente verteu uma lágrima. Ao comentar a aparência dilapidada do cão com Eumeu, este último respondeu que há vinte anos nenhum cão podia vencer Argos, ou farejar melhor, mas na ausência de seu senhor envelheceu e ficou malcuidado. Quando os dois entraram no prédio, Argos morreu em silêncio, feliz de ver seu senhor novamente após vinte longos anos.

Como seria previsível, Ulisses foi agredido e insultado pelos pretendentes quando tentou esmolar no seu próprio salão. Eles zombaram de seus andrajos, o ameaçaram, e um chegou mesmo a jogar um banquinho nele. Mas, ao vencer o mendigo resistente num pugilato, subiu no conceito deles. Neste ponto, Penélope foi subitamente inspirada a se mostrar aos pretendentes. Assim, desceu ao salão, onde sua beleza encheu a todos com desejo; repreendeu Telêmaco por permitir que insultassem o mendigo em sua casa, voltando-se então aos pretendentes e sugerindo que, ao invés deles consumirem sua casa, seria mais adequado que lhe trouxessem presentes. Concordaram e, para prazer de Ulisses, trouxeram finos presentes de tecidos e jóias. Ao cair da noite, era hora de novo banquete e Ulisses fez-se útil cuidando das luzes e fogos. Os pretendentes novamente desafiaram o mendigo entre eles, e outro banco foi atirado, para ser imediatamente evitado pelo seu alvo. Quando os pretendentes finalmente se retiraram para suas próprias casas para passar a noite, Telêmaco e Ulisses removeram todas as armas da sala e as guardaram num depósito. Penélope desceu então novamente para conversar com o mendigo, cuja presença tinha despertado seu interesse. Perguntou-lhe de onde tinha vindo e explicou sua própria difícil situação: os pretendentes estavam pressionando para que fizesse sua escolha entre eles, enquanto apenas desejava a volta de Ulisses. Ulisses respondeu-lhe que era um cretense de descendência real, e que tinha encontrado Ulisses em Creta. Para testar a veracidade de sua estória, perguntou-lhe que roupas Ulisses estava usando, o qual descreveu uma capa púrpura com um broche de ouro com um detalhe de um galgo mordendo um fauno. Penélope chorou quando reconheceu estes detalhes. Para animá-la, Ulisses prometeu-lhe que seu marido estava vivo, bem e muito perto; de fato estaria de volta a Ítaca naquele mesmo mês.

Penélope sugeriu então que o mendigo poderia apreciar um banho e uma cama confortável. Mas o cauteloso Ulisses, entretanto, apenas permitiu que seus pés fossem lavados por uma antiga criada, assim a velha ama Euméia foi chamada para a tarefa. Euméia comentou imediatamente como o mendigo s fazia lembrar de Ulisses; Ulisses respondeu que todos diziam o mesmo. Quando começou a lavar seus pés, Ulisses subitamente lembrou-se da cicatriz na sua perna, conseguida quando era apenas um menino e tinha se juntado a uma expedição de caça de javalis no monte Parnasso com seu avô Autólico e seus tios. Ficou nas sombras, mas evidentemente Euméia sentiu e reconheceu a cicatriz; na excitação, derrubou a bacia com água e teria gritado alto para avisar Penélope se Ulisses não tivesse agarrado firmemente pela garganta e a instruído a não contar a ninguém quem era até que se livrasse dos pretendentes. Durante todo este tempo, Penélope estava sentada absorta em seus pensamentos. Mas quando Euméia buscou mais água e terminou a tarefa e Ulisses estava novamente sentado ao lado do fogo, dirigiu-se novamente a ele e explicou seu dilema: deveria se casar para livrar Telêmaco do fardo de sua presença e das dos pretendentes, ou continuar a aguardar a volta de Ulisses? Perguntou-lhe se o mendigo poderia explicar o significado de um sonho recente no qual uma grande águia desceu das montanhas e abateu-se sobre seus vinte gansos de estimação, matando-os todos; a seguir, pousando num apoio do telhado, a ave disse-lhe que os gansos eram os pretendentes e ela própria era Ulisses. O mendigo Ulisses assegurou-lhe que o sonho se tornaria verdade e que os pretendentes seriam todos destruídos, mas a cautelosa Penélope respondeu que os sonhos são confusos; aqueles que viessem através do portão de chifre se tornariam verdade, mas aqueles do portão de marfim vinham apenas para enganar. Antes de ela se retirar para seus aposentos para passar a noite, e chorar por Ulisses até que conseguiu dormir, disse ao mendigo que pretendia anunciar uma competição entre os pretendentes. Colocaria doze cabeças de machado em linha e convidaria os pretendentes a curvar o grande arco de Ulisses e mandar uma flecha diretamente através de todas as doze. Casaria com aquele que provasse ser capaz de realizar este feito, o qual Ulisses freqüentemente era capaz de realizar.

No dia seguinte, Penélope trouxe o grande arco de Ulisses e anunciou a competição aos pretendentes, cada um esperando ser o único a curvar o arco e atirar através das cabeças de machados. Telêmaco preparou o salão para a competição e tentou curvar o grande arco, dobrando-o através de seu joelho. Isso necessitou toda a sua força, e poderia Ter conseguido se não fosse um sinal de cabeça de Ulisses para que parasse. Assim, abandonou a tentativa e os pretendentes tiveram, um por um, a sua vez, mas nenhum conseguiu curvar o arco, ainda mais mandar uma flecha através dos machados. Enquanto estavam experimentando suas forças, Ulisses esgueirou-se para fora do salão e revelou sua verdadeira identidade ao porqueiro Eumeu e ao igualmente confiável vaqueiro Filótio, orientando-os a virem em seu auxílio quando desse o sinal. Quando um dos dois líderes dos pretendentes, Eurímaco, tentou e falhou no teste, o outro líder, Antínoo, sugeriu que adiassem isto por um dia, pois tratava-se de um dia festivo e deveriam estar se banqueteando e fazendo sacrifícios ao deus-arqueiro Apolo; sua sugestão foi completamente aprovada. Após todos terem bebido seu primeiro brinde, Ulisses perguntou se ele poderia tentar o arco. Antínoo não concordou, mas Penélope, que estava observando a cena, insistiu que tivesse direito a uma chance; Telêmaco então interviu, mandando sua mãe de volta a seu quarto. No meio do burburinho o porqueiro Eumeu sorrateiramente retirou o arco e o levou a Ulisses, colocando-o nas suas mãos. Vistoriou a arma familiar, para assegurar-se que não estava danificada pelo longo desuso; então, "tão facilmente como um músico que conhece as cordas de sua lira, foi colocado novo encordoamento após a tripa de ovelha ter sido enrolada nas duas extremidades", encordoou o arco e o curvou, o qual cantou nas suas mãos como uma chamada de uma andorinha. Em silêncio, sem alarde, ajustou uma flecha no arco e atirou através de toda a linha de machados.

Os pretendentes, pegos de surpresa, ficaram ainda mais chocados com a seqüência. Ao correr Telêmaco para tomar o seu lugar ao lado do pai, Ulisses apontou uma segunda flecha, desta vez à garganta de Antínoo. Não percebendo o que estava acontecendo e pensando se tratar de um acidente, os pretendentes cercaram Ulisses furiosos, mas quando contou-lhes quem realmente era e que sua intenção era matar a todos, perceberam sua situação e tentaram atacá-lo. Ajudado pelos fiéis servos, o vaqueiro e o porqueiro, Ulisses e Telêmaco poderiam ainda estar em desvantagem pelo grande número de pretendentes, se Atena não tivesse intervido em seu favor. Pretendente após pretendente caiu ao chão, sendo poupados apenas o menestrel e o mensageiro, que foram pressionados a servirem contra a vontade aos pretendentes. Os pretendentes "jaziam aos montes, sobre o sangue e a poeira, como os peixes que o pescador tinha retirado das profundezas entre as malhas de sua rede, numa curva de praia, para jazer em grupos sobre a areia, arquejando pela água salgada até que o sol brilhante desse um fim a suas vidas". Ulisses então "manchado com sangue e sujeira, como um leão que acabasse de se alimentar de um novilho", chamou a velha ama Euméia. Ela apontou as criadas que se desgraçaram ao servir os pretendentes limpando e arrumando o salão; isto feito, foram enforcadas de uma vez no pátio.

Penélope, sob a influência de Atena, tinha dormido profundamente durante o barulho da grande batalha no salão e as operações subseqüentes de limpeza. Agora foi acordada por Euméia que contou as novas sobre o retorno de seu marido. Atordoada pelo choque, não conseguia Ter completa certeza que o estranho era realmente Ulisses, ou o que deveria dizer-lhe. Cautelosa como o seu marido, ela colocou-lhe um teste final instruindo Euméia a retirar de seu quarto o grande leito que Ulisses tinha construído. Ulisses sabia que o leito era impossível de ser movido, pois tinha sido construído ao redor de uma oliveira viva. Apenas quando, exasperado pela sua obstinação, descreveu a construção da cama é que Penélope ficou convencida que ele era realmente seu marido longamente desaparecido; atirou-se em seus braços e chorou. Então foram juntos para seu leito nupcial e finalmente puderam ficar um nos braços do outro; Ulisses contou a Penélope todas as suas aventuras e a noite continuou se estendendo, pois a deusa Atena retardou a aurora às praias de Oceano.

  

23. A Guerra de Tróia

A Guerra de Tróia realmente aconteceu? A extensão do apelo que a estória tem exercido sobre sucessivas gerações é demonstrada pelos esforços de incontáveis historiadores, arqueólogos e românticos entusiastas para estabelecer a base histórica para a guerra de Tróia. Atualmente, é geralmente aceito que o local foi corretamente identificado no final do século XIX por Heinrich Schliemann no monte Hissarlik, na planície dos Dardanelos, na costa noroeste da Turquia. Entretanto, a afirmação de Schliemann de ter descoberto a Tróia da guerra de Tróia é nos dias de hoje largamente desacreditada. O monte Hissarlik contém numerosos níveis sucessivos de habitação, e foi num dos mais recentes que Schliemann afirmava ter descoberto o maravilhoso tesouro: esta posição é agora considerada como sendo nova demais da ordem de mil anos, para ter sido destruída pelos gregos dos palácios de Micenas do continente grego. Estes podem ter sido o instrumento de destruição de um dos mais antigos níveis de Hissarlik, o qual parece ter sido queimado até o chão, possivelmente após um cerco, ao redor do período correto (por volta de 1200 a.C.). Esta Tróia mais antiga apresentava características bastante humildes, mas na sua destruição deve estar a semente da realidade histórica ao redor da qual a lenda surgiu. Entretanto, o desenvolvimento da lenda permanece um mistério com poucas possibilidades de ser solucionado pelos arqueólogos, assim então não havendo perigo que o romântico enigma de Tróia seja destruído.

Seja qual for a base histórica, a guerra de Tróia é o episódio isolado mais importante, ou complexo de episódios, que sobreviveram na mitologia e nas lendas gregas. Os eventos que causaram a guerra e aqueles que se seguiram estão combinados num grupo de estórias conhecidas como o Ciclo Troiano: algumas são conhecidas a partir dos dois grandes poemas Homéricos, a Ilíada e a Odisséia, mas outras partes da estória devem ser reunidas de numerosas outras fontes, indo desde os dramaturgos gregos do século V a.C., até autores romanos mais recentes. A estória como um todo pode ser comparada a uma ópera wagneriana na sua riqueza e complexidade ao entrelaçar personagens e temas; é bastante romântica e de grande apelo humano, pois, como todos os mitos gregos, trata-se da estória fundamental do homem e sua luta para existir em face do destino e dos deuses.

Um dos primeiros elos da cadeia de eventos que formaram o prelúdio da guerra de Tróia foi forjado por Prometeu, o grande benfeitor da humanidade. Prometeu, um primo de Zeus, tinha dado o fogo aos homens, um elemento cujos benefícios tinham tão-somente sido desfrutados pelos deuses. Tinha também ensinado os homens para oferecer aos deuses apenas a gordura e os ossos em sacrifícios de animais, mantendo as melhores partes para eles próprios. Para punir Prometeu, Zeus o acorrentou num alto penhasco nas montanhas e diariamente enviava uma águia para comer seu fígado, o qual voltava a crescer à noite.

De acordo com algumas fontes, Prometeu acabou sendo libertado por Hércules, mas outras dizem que foi libertado por Zeus, quando finalmente concordou em contar-lhe um importante segredo. Este segredo relacionava-se à ninfa do mar Tétis, que era tão bela que contava com vários deuses entre seus admiradores, incluindo Posídon e o próprio Zeus; entretanto uma profecia conhecida apenas por Prometeu predisse que o filho de Tétis estava destinado a ser mais importante que seu pai. Ao saber disso, Zeus rapidamente abandonou a idéia de ser o pai de um filho de Tétis, decidindo, ao invés, que deveria se casar com o mortal Peleu; o filho nascido deles seria Aquiles, o maior dos heróis gregos em Tróia.

Tétis inicialmente resistiu aos avanços de Peleu, assumindo a forma de fogo, serpentes, monstros e outras formas, mas ele a segurava fortemente apesar de todas as suas transformações, acabando por se submeter. Todos os deuses e deusas do Olimpo, menos uma, foram convidados para o magnífico casamento de Peleu e Tétis; no meio da festa, Éris, a única deusa que não tinha sido convidada, entrou abruptamente no local e atirou entre os convidados o Pomo da Discórdia, com a inscrição "a mais formosa". Esta maça foi requisitada por três deusas, Hera, Atena e Afrodite. Como elas não conseguiram chegar a um acordo, e Zeus estava compreensivelmente relutante em resolver a disputa, enviou as deusas para terem suas belezas julgadas pelo pastor Páris, no Monte Ida, fora da cidade de Tróia, na orla oriental do Mediterrâneo.

Páris era filho de Príamo, rei de Tróia, mas quando a esposa de Príamo, Hécuba, estava grávida de Páris, sonhou que estava dando à luz a uma tocha donde surgiam serpentes sibilantes, assim, quando o bebê nasceu, foi entregue a uma criada com ordens de levá-lo ao Monte Ida e matá-lo. A criada, entretanto, ao invés de matá-lo, simplesmente o deixou na montanha para morrer; ele foi salvo por pastores, sendo criado para também se transformar em um deles. Enquanto Páris estava vigiando seu rebanho, Hermes levou as três deusas para que as julgasse. Cada uma ofereceu uma recompensa se fosse a escolhida; Hera ofereceu riqueza e poder, Atena ofereceu habilidade militar e sabedoria e Afrodite ofereceu o amor da mais bela mulher do mundo. Conferindo a vitória a Afrodite, acabou incorrendo na ira das outras duas, as quais se tornaram daí para a frente inimigas implacáveis de Tróia. Logo depois, Páris retornou por acaso a Tróia, onde sua habilidade nas competições atléticas e sua surpreendente bela aparência causaram interesse nos seus pais, que rapidamente estabeleceram sua identidade e o receberam de volta com entusiasmo.

A mais bela mulher do mundo era Helena, a filha de Zeus e Leda. Muitos reis e nobres desejaram desposá-la, e antes que seu pai mortal, Tíndaro, anunciasse o nome do feliz escolhido, fez todos jurarem respeitar a escolha de Helena e virem em ajuda de seu marido se fosse raptada. Helena casou com Menelau, rei de Esparta, e na época que Páris veio visitá-los tinham uma filha, Hermíone. Menelau recebeu Páris muito bem em sua casa, mas Páris pagou esta hospitalidade raptando Helena e fugindo com ela de volta a Tróia. A participação de Helena nesta situação é explicada de diferentes maneiras nas várias fontes: foi raptada contra a sua vontade, ou Afrodite deixou-a louca de desejo por Páris ou, a mais elaborada de todas, nunca foi para Tróia, e foi por causa de um fantasma que os gregos gastaram dez longos anos em guerra.

A Expedição Parte

Menelau convocou todos os outros pretendentes anteriores de Helena, e todos os outros reis e nobres da Grécia, para ajudá-lo a montar uma expedição contra Tróia, de modo a recobrar sua esposa. O líder da força grega era Agamenon, rei de Micenas e irmão mais velho de Menelau. Os heróis gregos afluíram de todos os cantos do continente e das ilhas para o porto de Áulis, o ponto de reunião a partir do qual planejavam velejar através do Egeu até Tróia. Suas origens e os nomes de seus líderes estão listados no grande Catálogo de Navios próximo ao início da Ilíada.

"As tribos (de guerreiros) vieram como as incontáveis revoadas de pássaros - garças azuis ou cisnes de longos pescoços - que se reúnem nas campinas da Ásia nas correntes de Cayster, e movimentando-se com gritos agudos ao chegarem ao chão, numa frente avançada. Assim, tribo após tribo surgiram de barcos e cabanas... inumeráveis como as folhas e flores em suas estações".

Alguns dos heróis viera a Áulis mais facilmente do que outros. Ulisses, rei de Ítaca, conhecia a profecia que se fosse a Tróia não retornaria por vinte anos, e então fingiu loucura quando o mensageiro Palamedes chegou para convocá-lo, atrelando duas mulas a um arado e movendo-as para cima e para baixo na praia; mas a farsa de Ulisses foi revelada quando Palamedes colocou o filho pequeno de Ulisses, Telêmaco, na frente das mulas, e Ulisses imediatamente voltou ao normal. Os pais de Aquiles, Peleu e Tétis, estavam relutantes em deixar seu jovem filho se juntar à expedição, pois eles sabiam estar predestinado que se fosse morreria em Tróia. Numa tentativa de evitar o destino, o enviaram para Ciros, onde, disfarçado como uma moça, se juntou às filhas do rei, Licomedes. Durante esta estada se casou com uma das filhas, Deidaméia, que lhe deu um filho, Neoptólemo.

Ulisses, entretanto, descobriu que os gregos nunca conseguiriam capturar Tróia sem a ajuda de Aquiles; assim foi até Ciros para buscá-lo. De acordo com uma das versões da estória, Ulisses disfarçou-se de mascate, conseguiu entrar no palácio e espalhou suas mercadorias à frente das mulheres; entre as jóias e os tecidos havia armas às quais o jovem Aquiles demonstrou um interesse revelador. Outra fonte descreve como Ulisses arranjou para que soasse uma trombeta nos aposentos das mulheres: enquanto as filhas genuínas se espalhavam em confusão, Aquiles ficou no seu lugar e empunhou suas armas. Tendo abandonado seu disfarce, Aquiles foi facilmente persuadido a acompanhar Ulisses de volta a Áulis, onde a frota estava se preparando para zarpar.

A grande força grega, cujos maiores heróis eram Agamenon, Menelau, Ulisses, Ájax, Diomedes e Aquiles, estava pronta para partir, mas o vento teimosamente ficou contra eles. Eventualmente, o profeta Calcas revelou que a deusa Ártemis exigia o sacrifício da filha de Agamenon, Ifigênia, antes que o vento mudasse. Agamenon ficou horrorizado pela profecia, mas a opinião pública o obrigou a obedecer: Ifigênia, chamada sob o pretexto de casar com Aquiles, foi, ao contrário, morta sobre o altar. Algumas fontes dizem que Ártemis ficou com pena dela no último momento e a substituiu por um cervo; de qualquer maneira, o vento mudou de direção e os barcos zarparam.

A Ira de Aquiles

Algumas vezes se considera que a Ilíada é a estória da guerra de Tróia. De fato, apesar de ela se estender largamente sobre toda a estória, seu objetivo ostensivo, como anunciado nas primeiras linhas, é mais restrito:

"Canto de ira, deusa, a destruidora ira de Aquiles, filho de Peleu, que trouxe incontáveis dores aos Aqueus, e mandou muitas almas valiosas de heróis a Hades, enquanto seus corpos serviam de alimento para os cães e pássaros, e a vontade de Zeus foi feita... "

A estória da Ilíada é, então, a estória de Aquiles, e sua disputa com Agamenon. Ao início da Ilíada os gregos já estavam em Tróia por nove anos. Eles tinham saqueado uma grande parte dos campos ao redor e tinham escaramuças esporádicas com quaisquer troianos que saíssem de trás de suas maciças fortificações. Os gregos estavam ficando cansados da campanha e irritados por sua falta de habilidade em conseguir uma vitória decisiva sobre a própria Tróia, quando Aquiles se desentendeu com Agamenon sobre um assunto de honra.

Agamenon, como parte do saque de um ataque o qual Aquiles desempenhou a parte principal, recebeu uma moça chamada Criseida, filha de Crisos, sacerdote de Apolo. Crisos ofereceu a Agamenon um bom resgate para a libertação da moça, porém Agamenon se recusou a libertá-la. Assim Crisos orou a Apolo, que mandou uma praga sobre o acampamento grego, e o profeta Calcas revelou que esta seria retirada apenas se Agamenon devolvesse Criseida. Aquiles estava completamente a favor de fazer isso, mas Agamenon estava relutante. Eles discutiram, e Agamenon acabou por concordar a fazer o que estava sendo ordenado, mas para reafirmar sua autoridade sobre Aquiles da maneira mais insultuosa que podia, e simultaneamente compensar-se pela perda de Criseida (a qual ele declarou preferir à sua própria esposa Clitemnestra), tomou Aquiles sua escrava, Briseida. Aquiles ficou justificadamente enraivecido. Não apenas foi um insulto à sua honra, mas também foi grandemente injusto, pois ele, Aquiles, tinha conduzido a maior parte da luta necessária a produzir os tesouros e o saque que Agamenon considerava no direito de usufruir. Assim, Aquiles se retirou para sua tenda, e não tomou mais parte nos combates ou nas reuniões do conselho. A luta se tornou mais dura, com ataques mais diretos feitos a Tróia e aos troianos. Mas os gregos estavam numa situação difícil sem seu maior guerreiro, e mesmo Agamenon tentou fazer contatos com Aquiles, oferecendo-lhe riquezas de todos os tipos, justamente com a devolução de Briseida. Aquiles, entretanto, rejeitou todos os apelos, declarando mesmo que se as ofertas de Agamenon fossem "tantas como os grãos de areia ou as partículas de pó" nunca se curvaria.

Nesta ocasião, Ulisses e Diomedes empreenderam uma expedição noturna para espionar os troianos. Não sabendo disso, um troiano de nome Dolon estava tentando fazer a mesma coisa: os gregos o surpreenderam e o forçaram a contar as disposições do acampamento troiano. Seguindo sua orientação, terminaram sua expedição noturna com um ataque ao acampamento de Reso, rei da Trácia, em cujos belos cavalos escaparam de volta para o acampamento grego.

Apesar do sucesso desta temerária ação, o geral da luta os gregos estavam sendo empurrados de volta a seus navios pelos troianos e estavam ficando desesperados, quando o amigo de Aquiles, Pátroclo, veio até ele e rogou a permissão de liderar as tropas de Aquiles, os Mirmidões, em batalha. Pediu também se poderia emprestar a armadura de Aquiles, de modo a espalhar o terror nas linhas troianas, que poderiam tomá-lo por Aquiles. Aquiles concordou, e Pátroclo foi e lutou longa e gloriosamente, antes de, previsivelmente, ser morto por Heitor, filho de Príamo e o melhor guerreiro do lado troiano.

Aquiles foi tomado pela dor. Sua mãe, a ninfa do mar Tétis, veio até ele e prometeu-lhe uma nova armadura para substituir a que tinha sido perdida com Pátroclo. A nova armadura, feita pelo deus-ferreiro Hefesto, incluía um bonito escudo coberto com cenas figuradas, cidades em guerra e em paz, cenas da vida rural com rebanhos, pastores e danças rústicas, e ao redor da borda do escudo corria o Rio de Oceano. Aquiles e Agamenon se reconciliaram e Aquiles retornou ao campo de batalha, onde matou um troiano após outro com sua lança "como um vento impetuoso que revolve as chamas, quando um incêndio grassa nas ravinas das bases secas pelo sol das montanhas, e a grande floresta é consumida". Após ter matado muitos troianos e sobreviventes mesmo ao ataque do Rio Escamandro, o qual tentou afogá-lo nas suas grandes ondas, Aquiles estava finalmente pronto a enfrentar seu principal adversário, Heitor.

O restante dos troianos tinha fugido da matança de Aquiles e buscado refúgio atrás de suas muralhas, mas Heitor permaneceu fora dos portões, deliberadamente esperando pelo duelo que sabia ter que enfrentar. Mas quando Aquiles finalmente surgiu, Heitor foi tomado de compreensível terror e virou-se para fugir. Percorreram três voltas ao redor das muralhas de Tróia antes que Heitor parasse e destemidamente enfrentasse seu bravo oponente. A lança de Aquiles alojou-se na garganta de Heitor, caindo este ao chão. Mal podendo falar, Heitor pediu a Aquiles que permitisse que seu corpo fosse resgatado após sua morte, mas Aquiles, furioso com o homem que tinha morto Pátroclo, negou seu apelo e começou a sujeitar seu corpo a grandes indignidades. Primeiro o arrastou pelos calcanhares atrás de sua carruagem, ao redor das muralhas da cidade, para que toda Tróia pudesse ver. A seguir levou o corpo de volta ao acampamento grego, onde este ficou jogado sem cuidados em suas choupanas.

Aquiles preparou então um elaborado funeral para Pátroclo. Uma grande pira foi construída; sobre ela várias ovelhas e bois foram sacrificados e suas carcaças empilhadas ao lado do corpo do herói morto. Jarros de mel e óleo foram adicionados à pira, a seguir quatro cavalos e dois dos cachorros de Pátroclo. Doze prisioneiros troianos mortos sobre a pira, a qual então foi deixada acesa. Ardeu toda a noite, e durante toda a noite Aquiles colocou libações com vinho e pranteou Pátroclo bem alto. Nos dia seguinte os ossos de Pátroclo foram coletados e colocados numa urna dourada, e um grande monte foi erguido no local da pira. Jogos funerários com prêmios magníficos foram feitos, com competições entre carruagens, luta de boxe, pugilato, corridas, lutas armadas, arremesso do disco e tiros com arco e flecha. E todo o dia ao amanhecer, por doze dias. Aquiles arrastou o corpo de Heitor três vezes ao redor do monte, até que mesmo os deuses, que tinham previsto e arranjado tudo isso, ficaram chocados; Zeus enviou Íris, mensageiro dos deuses, para Tróia em visita a Príamo e o instruiu a ir secretamente ao acampamento troiano com um bom resgate, que Aquiles aceitaria em troca da libertação do corpo do filho de Príamo.

Assim Príamo, escoltado por um simples mensageiro, se dirigiu ao acampamento grego, sendo encontrado ao escurecer, quando se aproximava dos navios gregos, por Hermes disfarçado como um seguidor de Aquiles. Hermes guiou Príamo pelo acampamento grego, de modo que chegou sem ser percebido à tenda de Aquiles. Príamo entrou diretamente e jogou-se aos pés de Aquiles: ele pediu que o herói pensasse no seu próprio pai Peleu e tivesse mercê com um pai que tinha perdido tantos de seus bons filhos nas mãos dos gregos; pediu que fosse permitido levar o corpo de seu maior filho de volta a Tróia com ele, de modo que pudesse ser adequadamente pranteado e enterrado pelos seus parentes. Aquiles ficou tocado pelo apelo; choraram juntos, e o pedido de Príamo foi aceito. Assim, o corpo de Heitor foi devolvido a Tróia, onde foi velado e sepultado com os ritos adequados.

Aqui acaba a Ilíada mas não é de forma nenhuma o fim da estória de Tróia. O restante da estória é recontada parcialmente na Odisséia e em parte pelos dramaturgos, mas também por autores romanos posteriores, principalmente Cirílico na Emelia e por uma miscelânea de poetas como Quintus de Smirna. Após a morte de Heitor, uma grande número de aliados vieram auxiliar os troianos, incluindo as Amazonas com sua rainha, Pentesiléia, e os Etíopes liderados por Mêmnon, um filho de Éos, deusa da aurora. Tanto Pentesiléia como Mêmnon foram mortos por Aquiles. Mas Aquiles sempre soube que estava destinado a morrer em Tróia, longe de sua terra natal, onde acabou sendo morto por uma flecha, lançada pelo arco de Páris. A mãe de Aquiles, Tétis, quis tornar seu filho imortal, e, quando este era ainda um bebê, levou-o ao Mundo Inferior e o imergiu nas águas do rio Estige; isto tornou seu corpo imune aos ferimentos, exceto pelo calcanhar, o qual ela utilizou para segurá-lo, sendo lá que a flecha o acertou.

O Saque de Tróia

Após a morte de seu maior campeão, os gregos recorreram à astúcia nos seus esforços de capturar Tróia, que tinha agüentado seu cerco por dez longos anos. O Cavalo de Madeira é considerado como sendo idéia de Ulisses, enquanto o artesão responsável por sua confecção foi Epeios. Ao ficar pronto, um grupo composto dos gregos mais corajosos entrou dentro dele, incluindo o próprio Ulisses e Neoptólemo, filho de Aquiles. O restante das forças gregas queimou suas cabanas e partiram nos barcos, indo somente, entretanto, até a ilha de Tênedo, onde aportaram e esperaram. Os troianos, mal podendo acreditar que os gregos tinham se retirado, espalharam-se pela planície, ficaram maravilhados com o cavalo de madeira e lembravam uns aos outros onde ficava o acampamento grego. Logo, alguns pastores encontraram um único grego que tinha sido deixado para trás, Sinon, que lhes contou que os seus compatriotas quiseram sacrificá-lo para conseguir um vento favorável para a travessia; tinha conseguido escapar com dificuldade das correntes com as quais estava preso. Esta estória despertou a compaixão dos troianos, de modo que ficaram dispostos a acreditar no restante de seu relato. Disse que os gregos, acreditando que Atena tinha se voltado contra eles, tinha decidido velejar de volta e tentar conseguir novamente as graças divinas que a expedição possuía originalmente. Tinham construído o cavalo para agradar Atena, e o fizeram deliberadamente grande, de modo que os troianos não pudessem levá-lo para dentro de suas muralhas. Se o Cavalo entrasse em Tróia, a cidade nunca seria tomada; se ficasse de fora, os gregos acabariam voltando e arrasariam a cidade até os alicerces.

Uns poucos troianos desconfiaram do Cavalo e relutaram em trazê-lo para dentro das muralhas. A profetisa Cassandra, filha de Príamo, cujo destino era que suas profecias nunca tivessem crédito, alertou sobre a morte e a destruição que a entrada do Cavalo traria a Tróia. E Laocoonte, o sacerdote de Posídon, fincou sua lança contra os flancos do Cavalo, que ressoou com os tinidos dos homens armados, e declarou que temia os gregos, mesmo quando eles davam presentes. Mas, enquanto preparava um sacrifício ao deus que servia, duas grandes serpentes surgiram do mar e estrangularam primeiro seus dois jovens filhos e a seguir o próprio Laocoonte, antes de se refugiarem sob a altar de Atena. Com este augúrio, os troianos não hesitaram mais e começaram a mover o grande Cavalo para dentro de suas muralhas, derrubando suas fortificações de modo a poder fazê-lo. Mesmo, então, o esconderijo dos heróis gregos poderia ter sido descoberto, pois Helena decidiu aproximar-se do Cavalo e, andando a sua volta, chamou os nomes dos heróis gregos, imitando a voz da esposa de cada homem. Alguns ficaram tentados a responder, e apenas Ulisses teve a presença de espírito de conter suas vozes.

Ao cair da noite, o traiçoeiro Sinon sinalizou para a frota em Tênedo, que retornou silenciosamente a seu antigo local de ancoragem; Sino também liberou os heróis de seu confinamento dentro do Cavalo, estando pronta a cena para o saque de Tróia. Quando os deuses do Cavalo receberam o apoio de seus camaradas dos navios, os troianos acordaram para ver sua idade em chamas. Os homens lutaram desesperadamente, resolvidos a pelo menos vender caro suas vidas, horrorizados pela visão de suas mulheres e filhos sendo arrancados de seus refúgios para serem mortos ou aprisionados. Mais deplorável foi a morte de Príamo, assassinado no altar de seu parque por Neoptólemo, filho do homem que tinha morto seu filho Heitor. Dentre os poucos que escaparam de Tróia estava Enéias, filho de Anquises e da deusa Afrodite. Alertado por sua mãe, ele abandonou a cidade com seu filho pequeno Ascânio e seu velho pai, levando com eles os deuses de Tróia; sua esposa o seguiu, mas se perdeu na confusão, trevas e destroços da cidade que estava morrendo. Enéias estava destinado a, após muito vagar, alcançar a Itália, onde fundou uma nova e maior Tróia, a precursora de Roma.

As aventuras dos dois heróis gregos no seu caminho de volta para casa e as numerosas homenagens que receberam foram reunidas num grupo de poemas épicos conhecidos como Nostoi (Retornos). Dentre estes poemas, a Odisséia, que relata a volta de Ulisses à sua terra natal em Ítaca, é a única que sobrevive; a volta de outros heróis deve ser coletada de uma variedade de fontes.

O Retorno de Agamenon

Agamenon e Menelau eram filhos de Atreu, o qual cometeu um terrível crime quando, numa briga familiar, serviu a seu próprio irmão Tiestes um prato preparado com membros dos próprios filhos deste. Este ato trouxe uma maldição sobre a casa de Atreu, e o destino que Agamenon encontrou no seu retorno de Tróia foi em parte uma retribuição pelo crime original de seu pai. Na ausência de Agamenon por dez anos de Micena, o governo ficou nas mãos de sua esposa Clitemnestra, auxiliada pelo seu amante Egisto, o único filho sobrevivente de Tiestes. Uma cadeia de luzes iluminou os céus transmitindo a notícia da grande vitória em Tróia para a Grécia; na ocasião que Agamenon chegou a seu palácio, os planos de Clitemnestra estavam bem adiantados.

Encontrou seu marido à entrada do palácio, insistiu que ele deveria caminhar sobre os tecidos de cor púrpura que tinha estendido para ele, numa entrada triunfal. Agamenon estava relutante em cometer tal ato de insolência e impiedade, mas acabou cedendo e selou assim sua sina. Seguindo-o para dentro do palácio, Clitemnestra o atacou enquanto estava indefeso tomando banho, primeiro envolvendo-o com uma rede, matando-o a seguir violentamente com um machado. Os motivos dela para tão brutal assassinato eram complexos, mas parece que não era tanto devido a sua reprovável paixão por Egisto e o desejo de vingar o malfeito a seu pai e irmãos, mas o seu próprio ódio por Agamenon a levou a fazê-lo. Agamenon tinha assassinado brutalmente o primeiro marido e os filhos de Clitemnestra ante os olhos dela; também tinha sacrificado a filha deles Ifigênia em Áulis. Ela desejava vingança.

A maldição de Atreu não morreu com Agamenon, pois ele e Clitemnestra tinham outros dois filhos, Orestes e Electra, dispostos a vingar a morte do pai. Orestes, quando ainda bebê, tinha sido enviado por sua irmã para fora de Micenas para a segurança de Fócida, para protegê-lo de sua traiçoeira mãe. Electra permaneceu em casa e foi maltratada por Clitemnestra e Egisto; de acordo com algumas versões da estória, a casaram com um camponês de modo que a descendência real terminasse em ignomínia. Quando se tornou adulto, Orestes retornou secretamente à casa, acompanhado de seu amigo Pílades. Chegando à tumba de seu pai, depositou mechas de seu cabelo sobre o túmulo, que foram reconhecidos por Electra, que se aproximou para oferecer um sacrifício apaziguador em benefício de sua mãe; Clitemnestra tinha tido um sonho de mau augúrio, onde tinha dado à luz a uma serpente que tinha mamado em seu seio e sugado todo o seu sangue. Orestes evidentemente viu isso como um auspício para si próprio, e após uma acirrada discussão sobre os horrores do matricídio, Electra convenceu Orestes a matar sua mãe e Egisto. Devido a este feito, ele foi tornado insano pelas Fúrias, que o perseguiram até que, num julgamento especial do Areópago Ateniense, foi absolvido com base em que assassinar a mãe é um crime menos grave do que um assassinato de um marido. Desta forma, a maldição da casa de Atreu terminou.

  

24. O Deus Pã - Nascimento de Pã

Pã, antiquíssima divindade pelágica especial à Arcádia, é o guarda dos rebanhos que ele tem por missão fazer multiplicar. Deus dos bosques e dos pastos, protetor dos pastores, veio ao mundo com chifres e pernas de bode. Pã é filho de Mercúrio. Era assaz natural que o mensageiro dos deuses, sempre considerado intermediário, estabelecesse a transição entre os deuses de forma humana e os de forma animal. Parece, contudo, que o nascimento de Pã provocou certa emoção em sua mãe, assustadíssima com tão esquisita conformação; e as más línguas pretendem até que, quando Mercúrio apresentou o filho aos demais deuses, todo o Olimpo desatou a rir. Mas como é provável que haja nisso um pouco de exagero, convém restabelecer os fatos na sua verdade, e eis o que diz o hino homérico sobre a estranha aventura. "Mercúrio chegou à Arcádia fecunda em rebanhos; ali se estende o campo sagrado de Cilene; nesses páramos, ele, deus poderoso, guardou as alvas orelhas de um simples mortal, pois concebera o mais vivo desejo de se unir a uma bela ninfa, filha de Dríops. Realizou-se enfim o doce o doce himeneu. A jovem ninfa deu à luz o filho de Mercúrio, menino esquisito, de pés de bode, e testa armada de dois chifres. Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge. Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão espessa. Mas o benévolo Mercúrio, recebendo-o imediatamente, pô-lo ao colo, rejubilante. Chega assim à morada dos imortais ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre. Depois, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo Baco, e dão-lhe o nome de Pã, visto que para todos constituiu objeto de diversão."

As ninfas zombavam incessantemente do pobre Pã em virtude do seu rosto repulsivo, e o infeliz deus, ao que se diz, tomou a resolução de nunca amar. Mas Cupido é cruel e afirma uma tradição que Pã, desejando um dia lutar corpo a corpo com ele, foi vencido e abatido, diante das ninfas que se riam.

Pã e Syrinx

Um dia percorria Pã o monte Liceu, segundo o seu hábito, e encontrou a ninfa Syrinx que jamais quisera receber as homenagens das divindades e que só tinha uma paixão: a caça. Aproximou-se dela, e como nos costumes campestres se vai imediatamente ao objetivo, sem nenhum artifício, sem nenhum desvio, disse-lhe: "Cedei, formosa ninfa, aos desejos de um deus que pretende tornar-se vosso esposo." (Ovídio).

Queria falar mais; mas Syntrix, pouco sensível àquelas palavras, deitou a correr, e já chegara perto do rio Ladon, seu pai, quando, vendo-a detida, rogou às ninfas, suas irmãs, que a acudissem. Pã, que lhe saíra no encalço, quis abraçá-la, mas em vez de uma ninfa, só abraçou caniços. Suspirou e os caniços agitados emitiram um som doce e queixoso. O deus, comovido com o que acabava de ouvir, pegou alguns caniços de tamanho desigual e, unindo-os com cera, formou a espécie de instrumentos que se chama syrinx e que constitui a flauta de sete tubos, transformada em atributo de Pã.

Pítis Metamorfoseada em Pinheiro

Com efeito, em breve, os melodiosos acordes fazem acorrer de toda parte as ninfas que vêm dançar em volta do deus chifrudo. A ninfa Pítis parece tão enternecida que Pã renasce com a esperança e crê que o seu talento faz com que seja esquecido o rosto. Sempre tocando a flauta de sete tubos, começa a procurar lugares solitários e percebe, finalmente, um rochedo escarpado no alto do qual resolve sentar-se. Pítis segue-o. Para melhor ouvi-lo, aproxima-se cada vez mais, tanto que Pã, vendo-a bem perto, julga o momento oportuno para lhe falar. Não sabia o infeliz que Pítis era amada por Bóreas, o terrível vento do norte, que naquele instante soprava com grande violência. Vendo a amante perto de um deus estranho, Bóreas foi acometido de um acesso de ciúme furioso, e, não se contendo, soprou com tal impetuosidade que a ninfa caiu no precipício, e despedaçou contra as pedras o formoso corpo, imediatamente transformado pelos deuses em pinheiro. Foi depois disso que essa árvore, que traz o nome da ninfa (Pítis significa, em grego, pinheiro) foi consagrada a Pã, e é por esse motivo que nas representações figuradas, a cabeça de Pã está muitas vezes coroada de ramos de pinheiro.

Pã e a Ninfa Eco

O destino de Pã era amar sempre sem que nunca lograsse unir-se à criatura amada. Continuando a fazer música na montanha, ouviu, saída do fundo do vale, uma terna voz que parecia repetir-lhe os acordes. Era a voz da ninfa Eco, filha do Ar e da Terra. Desceu, então, para procurar a que lhe havia respondido, sem nunca poder atingi-la, embora ela lhe respondesse constantemente; a cruel ninfa parecia rir-se dele. Mas, francamente, ninguém a pode censurar por isso. Quando se ama o belo Narciso, como é possível encarar o velho Pã? Pã é sempre velho, apesar de ter tido por pai Mercúrio, que é eternamente jovem.

Pã, Filho de Mercúrio

Um dia o pai e o filho encontraram-se:

Pã. - Bom dia, Mercúrio, meu pai!

Mercúrio. - Bom dia. Como dizes que sou teu pai?

Pã. - Não és Mercúrio, o deus de Cilene?

Mercúrio. - Sim. Como és meu filho?... Ah, por Júpiter! Lembro-me agora da aventura! Quer dizer que eu, que tanto me orgulho desta minha beleza, e que não tenho barba, devo ser chamado teu pai! Todos se riram de mim, por ser meu filho um sujeito tão bonito assim!

Pã. - Mas eu não vos desonro, meu pai. Sou músico e toco muito bem flauta. Baco não dá um passo sem mim. Escolheu-me por amigo e companheiro das danças, e sou eu quem lhe conduz os coros.

Mercúrio. - Pois bem, Pã (creio que é esse o teu nome), sabes como podes ser-me agradável? E queres, além disso, conceder-me um favor?

Pã. - Ordenai, meu pai, e nós veremos.

Mercúrio. - Vem cá, dá-me um abraço. Mas cuida de não me chamares de pai na presença de estranhos. (Luciano).

Pã, Divindade Pastoril

Como símbolo da obscuridade, Pã causa nos homens os terrores pânicos, isto é, sem motivo. Na batalha de Maratona, inspirou aos persas um desses terrores súbitos, o que contribuiu bastante para assegurar a vitória aos gregos. Foi por causa desse auxílio que os atenienses lhe consagraram uma gruta na Acrópole.

Todavia, a princípio, Pã nada mais era do que a divindade pastoril dos arcádios que o invocavam para que lhes multiplicasse os rebanhos. "Glauco e Coridon, que conduzem juntos os seus rebanhos de bois pelas montanhas, ambos arcádios, imolaram a Pã, guarda do monte Cilene, a novilha de lindas pontas; e as pontas, de doze palmas, prenderam-nas em sua honra, mediante um longo cravo, ao tronco deste plátano copado, bela oferta ao deus dos pastores." (Antologia).

As imagens primitivas de Pã eram providas de um símbolo cuja crueza significativa nada possuía naquele tempo de licencioso. O seu culto, que posteriormente se sumiu diante do das divindades do Olimpo, é extremamente antigo na Arcádia e muito certamente anterior a qualquer civilização. "Quando a educação do gado não prosperava, diz Creuzer, os pastores arcádios golpeavam os ídolos do deus Pã, costume que prova a sua profunda barbaridade em matéria de religião."

Pã, deus Universal

Sob a influência da poesia órfica, o deus Pã tornou-se o símbolo panteísta fundado na interpretação do seu nome: a flauta de sete tubos representa, então, as sete notas da harmonia universal, e a fusão das formas animais com as formas humanas corresponde ao caráter múltiplo da vida no universo. É sob tal aspecto que Pã nos surge numa linda composição de Gillot. Essa imagem corresponde à idéia que da antigüidade tinha o século dezoito. Toda natureza está em festa diante do deus que simboliza a universalidade dos seres; mas tal festa, tão repleta de vida e de movimento, nos lembra as quermesses flamengas muito mais que os baixos-relevos antigos.

Sob o reinado de Tibério, estando um navio ancorado, ouviu-se uma voz misteriosa que gritava: "O grande deus Pã morreu!" Desde então, nunca mais se ouviu falar dele.

Um Pouco mais de Pã

O deus Pã, assim chamado, diz-se da palavra grega , que quer dizer tudo, era filho, segundo uns, de Júpiter e da ninfa Timbris, segundo outros de Mercúrio e da ninfa Penélope. Dizem outras tradições que era filho de Júpiter e da ninfa Calisto, ou talvez do Ar e de uma Nereida, ou finalmente do Céu e da Terra. Todas essas diversas origens têm uma explicação, não só no grande número de deuses com esse nome, mas ainda nas múltiplas atribuições que a crença popular emprestava a essa divindade. O seu nome parecia indicar a extensão do poder, e a seita dos filósofos estóicos identificava Pã com o Universo, ou ao menos com a natureza inteligente, fecunda e criadora.

Mas a opinião comum não se elevava a uma concepção tão geral e filosófica. Para os povos, o deus Pã tinha um caráter e uma missão sobretudo agrestes. Se nos mais remotos tempos ele havia acompanhado os deuses do Egito, na sua expedição das Índias, se tinham inventado a ordem de batalha e a divisão das tropas em ala direita e em ala esquerda, o que os gregos e os latinos chamavam os cornos de um exército, se era mesmo por essa razão que o representavam com chifres, símbolo da sua força e da sua invenção, a imaginação popular, desde logo tendo restringido e limitado as suas funções, havia-o colocado nos campos, entre os pastores e os rebanhos.

Era principalmente venerado na Arcádia, região das montanhas, onde proferia oráculos. Em sacrifício ofereciam-lhe mel e leite de cabra. Celebravam-se em honra sua as Lupercais, festas que depois se espalharam na Itália, onde o árcade Evandro levou o culto de Pã. Representam-no ordinariamente muito feio, com os cabelos e a barba descuidados, com chifres, e corpo de bode da cintura para baixo, enfim, pouco diferente de um fauno ou de um sátiro. Muitas vezes empunha um cajado e uma flauta de sete tubos que se chama a flauta do Pã, porque se diz que foi ele o inventor, graças à metamorfose da ninfa Sirinx em juncos do Ladon.

Viam-no também como o deus dos caçadores; quando ia à caça, mais do que dos animais ferozes era o terror das ninfas, a quem perseguia com os seus ardores amorosos. Está sempre atrás de emboscadas atrás dos rochedos e das moitas; para ele o campo não tem mistérios. Foi por isso que descobriu e revelou, a Júpiter, o esconderijo de Ceres, depois do rapto de Prosérpina.

Pã foi muitas vezes confundido na literatura latina com Fauno e Silvano. Muitos autores os consideravam como um só divindade com diferentes nomes. As Lupercais eram mesmo celebradas em tríplice honra desses gênios. Entretanto Pã é o único de quem se fez alegoria e que foi considerado como um símbolo da Natureza, conforme a significação do seu nome. Dizem os mitólogos que os seus chifres representam os raios do Sol; a vivacidade de sua tez exprime o fulgor do céu; a pele de cabra estrelada que usa sobre o estômago representa as estrelas do firmamento; enfim os seus pés e as suas pernas eriçados de pêlos designam a parte inferior do mundo, - a terra, as árvores e as plantas.

Os seus amores suscitaram-lhe rivais, às vezes perigosos. Um deles, Bóreas, quis arrebatar violentamente a ninfa Pitis, que era a Terra, condoída, metamorfoseou em pinheiro. Eis a razão porque essa árvore, conservando ainda, os sentimentos da ninfa, coroa Pã com a sua folhagem, enquanto o sopro do Bóreas excita os seus gemidos.

Pã também foi amado por Silene, isto é, a Lua ou Diana, que para ir visitá-lo nos vales e nas grutas das montanhas, esquece o belo e terno dormilão Endímion.

Sob o reinado de Tibério a fábula do grande Pã motivou um acontecimento que interessou vivamente a cidade de Roma e que merece ser contado. "No mar Egeu, diz Plutarco, estando uma tarde o navio do piloto Tamo nas imediações de certas ilhas, o vento cessou de repente. Todas as pessoas a bordo estavam bem acordadas, muitas mesmo passavam o tempo bebendo umas com as outras, quando ouviram de súbito uma voz que vinha das ilhas e que chamava Tamo. Tamo deixou que o chamassem duas vezes sem responder, mas à terceira respondeu. A voz então ordenou-lhe que, ao chegar a um certo lugar, gritasse que o grande Pã tinha morrido. Não houve ninguém a bordo que não ficasse tomado de terror e de espanto. Deliberou-se se Tamo devia obedecer à voz e Tamo concluiu que, se quando chegassem à paragem indicada, houvesse bastante vento para passar adiante, não era preciso dizer nada; mas que se aí uma calmaria os detivesse, era necessário desempenhar-se da ordem recebida. Ficou surpreendido da calma que reinava nesse lugar, e imediatamente começou gritar a plenos pulmões: 'O grande Pã morreu!' Apenas cessou de gritar, que todos ouviram de todos os lados queixas e gemidos, como os de muitas pessoas surpresas e aflitas por essa notícia.

Os que estavam no navio foram testemunhas dessa estranha aventura; e o ruído em pouco tempo se espalhou em Roma. O imperador Tibério quis ver a Tamo; viu-o, interrogou, reuniu os sábios para deles saber quem era esse grande Pã, e se chegou à conclusão de que era filho de Mercúrio e de Penélope."

Outros mitólogos, interpretando este fato, preferiram ver nele o fim do antigo mundo romano e o advento de uma sociedade nova.

 

25. Prometeu e Pandora

A Criação do Mundo

A criação do mundo é um problema que, muito naturalmente, desperta a curiosidade do homem, seu habitante. Os antigos pagãos, que não dispunham, sobre o assunto, das informações que dispomos, procedentes das Escrituras, tinham sua própria versão sobre o acontecimento, que era o seguinte:

Antes de serem criados a terra, o mar e o céu, todas as coisas apresentavam um aspecto a que se dava o nome de Caos - uma informe e confusa massa, mero peso morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas. A terra, o mar e o ar estavam todos misturados; assim, a terra não era sólida, o mar não era líquido e o ar não era transparente. Deus e a Natureza intervieram finalmente e puseram fim a essa discórdia, separando a terra do mar e o céu de ambos. Sendo a parte ígnea a mais leve, espalhou-se e formou o firmamento; o ar colocou-se em seguida, no que diz respeito ao peso e ao lugar. A terra, sendo a mais pesada, ficou para baixo, e a água ocupou o ponto inferior, fazendo flutuar a terra.

Nesse ponto, um deus - não se sabe qual - tratou de empregar seus bons ofícios para arranjar e dispor as coisas na terra. Determinou aos rios e lagos seus lugares, levantou montanhas, escavou vales, distribuiu os bosques, as fontes, os campos férteis e as áridas planícies, os peixes tomaram posse do mar, as aves do ar e os quadrúpedes da terra.

Tornara-se necessário, porém, um animal mais nobre, e foi feito o Homem. Não se sabe se o criador o fez de materiais divinos, ou se na terra, há tão pouco tempo separada do céu, ainda havia algumas sementes celestiais ocultas. Prometeu tomou um pouco dessa terra e, misturando-se com água, fez o homem à semelhança dos deuses. Deu-lhe o porte erecto, de maneira que, enquanto os outros animais têm o rosto voltado para baixo, olhando a terra, o homem levanta a cabeça para o céu e olha as estrelas.

Prometeu era um dos titãs, uma raça gigantesca, que habitou a terra antes do homem. Ele e seu irmão Epimeteu foram incumbidos de fazer o homem e assegurar-lhe, e aos outros animais, todas as faculdades necessárias à sua preservação. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu de examiná-la, depois de pronta. Assim, Epimeteu tratou de atribuir a cada animal seus dons variados, de coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a um, garras a outro, uma carapaça protegendo um terceiro, etc. Quando, porém, chegou a vez do homem, que tinha de ser superior a todos os outros animais, Epimeteu gastara seus recursos com tanta prodigalidade, que nada mais restava. Perplexo, recorreu a seu irmão Prometeu, que, com a ajuda de Minerva, subiu ao céu e acendeu sua tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem. Com esse Dom, o homem assegurou sua superioridade sobre todos os outros animais. O fogo lhe forneceu o meio de construir as armas com que subjugou os animais e as ferramentas com que cultivou a terra; aquecer sua morada, de maneira a tornar-se relativamente independente do clima, e, finalmente, criar a arte da cunhagem das moedas, que ampliou e facilitou o comércio.

A Caixa de Pandora

A mulher não fora ainda criada. A versão (bem absurda) é que Júpiter a fez e enviou-a a Prometeu e seu irmão, para puni-los pela ousadia de furtar o fogo do céu, e ao homem, por tê-lo aceito. A primeira mulher chamava-se Pandora. Foi feita no céu, e cada um dos deuses contribuiu com alguma coisa para aperfeiçoá-la. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio a persuasão, Apolo a música, etc. Assim dotada, a mulher foi mandada à terra e oferecida a Epimeteu, que de boa vontade a aceitou, embora advertido pelo irmão para ter cuidado com Júpiter e seus presentes. Epimeteu tinha em sua casa uma caixa, na qual guardava certos artigos malignos, de que não se utilizara, ao preparar o homem para sua nova morada. Pandora foi tomada por intensa curiosidade de saber o que continha aquela caixa, e, certo dia, destampou-a para olhar. Assim, escapou e se espalhou por toda a parte uma multidão de pragas que atingiram o desgraçado homem, tais como a gota, o reumatismo e a cólica para o corpo, e a inveja, o despeito e a vingança para o espírito. Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas, infelizmente, escapara todo o conteúdo da mesma, com exceção de uma única coisa, que ficara no fundo, e que era a esperança. Assim, sejam quais forem os males que nos ameacem, a esperança não nos deixa inteiramente; e, enquanto a tivermos nenhum mal nos torna inteiramente desgraçados.

Uma outra versão é de que Pandora foi mandada por Júpiter com boa intenção, a fim de agradar ao homem. O rei dos deuses entregou-lhe, como presente de casamento, uma caixa, em que cada deus colocara um bem. Pandora abriu a caixa, inadvertidamente, todos os bens escaparam, exceto a esperança. Essa versão é, sem dúvida, mais aceitável que a primeira. Realmente, como poderia a esperança, jóia tão preciosa, ter sido misturada a toda a sorte de males, como na primeira versão?

As Idades do Mundo

Estando, assim, povoado o mundo, seus primeiros tempos constituíram uma era de inocência e ventura, chamada a Idade de Ouro. Reinavam a verdade e a justiça, embora não impostas pela lei, e não havia juizes para ameaçar ou punir. As florestas ainda não tinham sido despojadas de suas árvores para fornecer madeira aos navios, nem os homens haviam construídos fortificações em torno de suas cidades. Espadas, lanças ou elmos eram objetos desconhecidos. A terra produzia tudo necessário para o homem, sem que esse se desse o trabalho de lavrar ou colher. Vicejava uma primavera perpétua, as flores cresciam sem sementes, as torrentes dos rios eram de leite e de vinho, o mel dourado escorria dos carvalhos.

Seguiu-se a Idade de Prata, inferior à de Ouro, porém melhor do que a de Cobre. Júpiter reduziu a primavera e dividiu o ano em estações. Pela primeira vez o homem teve que sofrer os rigores do calor e do frio, e tornaram-se necessária as casas. As primeiras moradas foram as cavernas, os abrigos das árvores frondosas e cabanas feitas de hastes. Tornou-se necessário plantar para colher. O agricultor teve de semear e de arar a terra, com ajuda do boi.

Veio, em seguida, a Idade de Bronze, já mais agitada e sob ameaça das armas, mas ainda não inteiramente má. A pior foi a Idade do Ferro. O crime irrompeu, como uma inundação; a modéstia, a verdade e a honra fugiram, deixando em seus lugares a fraude e a astúcia, a violência e a insaciável cobiça. Os marinheiros estenderam as velas ao vento e as árvores foram derrubadas nas montanhas para servir de quilhas dos navios e ultrajar a face do oceano. A terra, que até então fora cultivada em comum, começou a ser dividida entre os possuidores. Os homens não se contentaram com o que produzia a superfície: escavou-se a terra e tirou-se do seu seio os minérios e metais. Produziu-se o danoso ferro e o ainda mais danoso ouro. Surgiu a guerra, utilizando-se de um e de outro como armas; o hóspede não se sentia em segurança em casa de seu amigo; os genros e sogros, os irmãos e irmãs, os maridos e mulheres não podiam confiar uns nos outros. Os filhos desejavam a morte dos pais, a fim de lhe herdarem a riqueza; o amor familiar caiu prostrado. A terra ficou úmida de sangue, e os deuses a abandonaram, um a um, até que ficou somente Astréia (Deusa da inocência e da pureza. Depois de sair da terra, foi colocada entre as estrelas, onde se transformou na constelação Virgo. Era filha de Têmis (Justiça), representada com uma balança em que pesa as alegações das partes adversárias.), que, finalmente, acabou também partindo.

Vendo aquele estado de coisas, Júpiter indignou-se e convocou os deuses para um conselho. Todos obedeceram à convocação e tomaram o caminho do palácio do céu. Esse caminho pode ser visto por qualquer um nas noites claras, atravessando o céu, e é chamado a Via Láctea. Ao longo dele ficam os palácios dos deuses ilustres; a plebe celestial vive à parte, de um lado ou de outro.

Dirigindo-se à assembléia, Júpiter expôs as terríveis condições que reinavam na terra e encerrou as suas palavras anunciando a intenção de destruir todos os seus habitantes e fazer surgir uma nova raça, diferente da primeira, que seria mais digna de viver e saberia melhor cultuar os deuses. Assim dizendo, apoderou-se de um raio e já estava prestes a atirá-lo contra o mundo, destruindo-o pelo fogo, quando atentou para o perigo que o incêndio poderia acarretar para o próprio céu. Mudou, então, de idéia, e resolveu inundar a terra. O vento norte, que espalha as nuvens, foi encadeado; o vento sul foi solto e em breve cobriu todo o céu com escuridão profunda. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se com fragor; torrentes de chuva caíram; as plantações inundaram-se; o trabalho de um ano do lavrador pereceu em uma hora. Não satisfeito com suas próprias águas, Júpiter pediu a ajuda de seu irmão Netuno. Este soltou os rios e lançou-os sobre a terra. Ao mesmo tempo, sacudiu-a com um terremoto e lançou o refluxo do oceano sobre as praias. Rebanhos, animais, homens e casas foram engolidos e os templos, com seus recintos sacros, profanados. Todo edifício que permanecerá de pé foi submergido e suas torres ficaram abaixo das águas. Tudo se transformou em mar, num mar sem praias. Aqui e ali, um indivíduo refugia-se num cume e alguns poucos, em barcos, apoiam o remo no mesmo solo que ainda há pouco o arado sulcara. Os peixes nadam sobre os galhos de árvores; a âncora se prende num jardim. Onde recentemente os cordeirinhos brincavam, as focas cabriolam desajeitadamente. O lobo nada entre as ovelhas, os fulvos leões e os tigres lutam nas águas. A força do javali de nada lhe serve, nem a ligeireza do cervo. As aves tombam, cansadas, na água, não tendo encontrado terra onde pousar. Os seres vivos que a água poupara caem como presas da fome.

De todas as montanhas, apenas o Parnaso ultrapassa as águas. Ali, Deucalião e sua esposa Pirra, da raça de Prometeu, encontram refúgio - ele é um homem justo, ela uma devota fiel dos deuses. Vendo que não havia outro vivente além desse casal e lembrando-se de sua vida inofensiva e de sua conduta piedosa, Júpiter ordenou aos ventos do norte que afastassem as nuvens e mostrassem o céu à terra e a terra ao céu. Também Netuno ordenou a Tritão que soasse sua concha determinando a retirada das águas. As águas obedeceram; o mar voltou às suas costas e os rios aos seus leitos. Deucalião assim se dirigiu, então, a Pirra: "Ó esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiramente pelos laços do parentesco e do casamento, e agora por um perigo comum, pudéssemos nós possuir o poder de nosso antepassado Prometeu e renovar a raça, como ele fez, pela primeira vez! Como não podemos, porém, dirijamo-nos àquele templo e indaguemos dos deuses o que nos resta a fazer." Entraram num templo coberto de lama e aproximaram-se do altar, onde nenhum fogo crepitava. Prostraram-se na terra e rogaram à deusa que os esclarecesse sobre a maneira de se comportar naquela situação miserável. "Saí do templo com a cabeça coberta e as vestes desatadas e atirai para trás os ossos de vossa mãe" - respondeu o oráculo. Estas palavras foram ouvidas com assombro. Pirra foi a primeira a romper o silêncio: "Não podemos obedecer; não vamos nos atrever a profanar os restos de nossos pais." Seguiram pela fraca sombra do bosque, refletindo sobre o oráculo. Afinal, Deucalião falou: "Se minha sagacidade não me ilude, poderemos obedecer a ordem sem cometermos qualquer impiedade. A Terra é a mãe comum de nós todos; as pedras são seus ossos; poderemos lançá-las para trás de nós; e creio ser isto que o oráculo quis dizer. Pelo menos, não fará mal tentar." Os dois velaram o rosto, afrouxaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas para trás. As pedras (maravilha das maravilhas!) amoleceram e começaram a tomar forma. Pouco a pouco, foram assumindo uma grosseira semelhança com a forma humana, como um bloco ainda mal acabado nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo que havia sobre elas transformaram-se em carne; a parte pétrea transformou-se nos ossos; as veias ou veios da pedra continuaram veias, conservando seu nome e apenas mudando sua utilidade. As pedras lançadas pelas mãos do homem tornaram-se homens, as lançadas pela mulher tornaram-se mulheres. Era uma raça forte e bem disposta para o trabalho como até hoje somos, mostrando bem a nossa origem.

Prometeu Forma o Homem

Japeto representa o antepassado da humanidade. Talvez seja preciso reconhecer, nessa personagem a que Gênesis dá por filho a Noé, Jafé, cujo nome personifica uma das grandes raças primitivas. Era considerado pelos gregos o tipo do que há de mais antigo e associa-se habitualmente a Saturno. Desposara Ásia, filha do Oceano, e teve vários filhos, entre outros Prometeu, Epimeteu e Atlas. O Titã Japeto não desempenha papel na mitologia; a sua importância vem da antigüidade que se lhe atribuía e que lhe dava o mesmo tempo que os mais antigos deuses.

Embora seja o Titã Japeto tido como antepassado da humanidade, parece que é a seu filho Prometeu que devemos a forma particular que nos distingue dos animais. "Prometeu, diz Ovídio, após destemperar um pouco de terra com água, formou o homem à semelhança dos deuses; e enquanto os outros animais têm a cabeça voltada para o chão, somente o homem a ergue para o céu, e olha para o céu." A fabricação do homem por Prometeu está representada em monumentos assaz numerosos, mas que pertencem na sua maioria a uma baixa época.

Em todas as representações antigas, Prometeu aparece como artesão que faz o homem materialmente, mas não como o deus que o anima. Esse papel cabe a Minerva (a Sabedoria divina): vários monumentos nos apresentam nitidamente a parte que cabe a cada um na criação da espécie humana.

As Duas Partes de Prometeu

Prometeu orgulhava-se do seu trabalho; e tendo surgido divergências entre os deuses e os homens primitivos, tomou ele o partido destes. As divergências, das quais Hesíodo não nos diz a causa, eram acertadas em Sicíona: Prometeu, desejando saber se Júpiter era verdadeiramente digno das honras divinas, excogitou um ardil para provar a sua clarividência. "Expôs aos olhos de todos, diz Hesíodo, um enorme boi. De um lado, encerrou na pele as carnes e os melhores pedaços, envolvendo-os com o ventre da vítima; do outro, dispôs com pérfida habilidade os ossos brancos que recobriu de gordura lustrosa. O pai dos deuses e dos homens disse-lhe, então: "Filho de Japeto, ó mais ilustre de todos os reis, amigo, com que desigualdade dividiste as partes!" Prometeu, sorrindo interiormente do ardil, rogou-lhe que escolhesse, e Júpiter, apoderando-se da parte mais pesada, só ali encontrou ossos."

O Fogo Arrebatado aos Homens

Júpiter, furioso por ter sido enganado, quis vingar-se dos homens, dos quais Prometeu é protetor, e roubou-lhes o fogo, sem o qual todo e qualquer trabalho é impossível. Mas Prometeu não se deu por vencido, e conseguiu roubar uma faísca do fogo do céu, que se apressou em levar aos homens. Dessa vez, Júpiter, vendo-se decididamente iludido pelo Titã, não conteve o ressentimento e resolveu punir simultaneamente os homens e o protetor. A grosseria dessa lenda é uma prova de sua grande antigüidade; no entanto, não deu origem a nenhuma representação plástica no período arcaico. Nas narrações dos poetas, o fogo estava contido numa folha e invisível a todos os olhos; pelo contrário, o oleiro mostra a chama a sair de um vasinho que o Titã segura com a mão.

Júpiter diz a Prometeu: "Filho de Japeto, rejubilas-te por haveres roubado o fogo divino e iludido a minha sabedoria; mas esse ato será fatal a ti e aos homens que hão de vir. Para vingar-me, enviar-lhes-ei um funesto presente que os enfeitiçará e fará com que amem o seu próprio flagelo." (Hesíodo).

Suplício e Libertação de Prometeu

Júpiter revelou-se cruel para com Prometeu e, a fim de puni-lo por ter dado o fogo aos homens, agrilhoou-o ao Cáucaso. Uma águia lhe dilacerava constantemente o fígado e a sua carne renascia imediatamente para que o suplício se renovasse todos os dias. A luta de Júpiter contra Prometeu foi interpretada de maneira assaz diferentes, mas segundo os trágicos seria possível ver nela uma vaga recordação de uma mudança de crenças. Na antigüidade, Prometeu ficou como tipo de justiça esmagada pela força, da consciência humana protestando contra um poder inexorável.

O suplício de Prometeu teria, no entanto, fim. Hércules, o matador dos monstros e grande reparador de erros, livrou o Titã matando a águia que o roía. Prometeu, que conhecia o futuro, predissera que quem desposasse a Nereida Tétis, teria um filho mais poderoso que o pai, e o rei dos deuses, sabendo de tal profecia, renunciou ao projeto de unir-se a Tétis. Como recordação desse serviço, Júpiter não obstaculou a libertação de Prometeu; mas já que afirmara que o suplício duraria milhares de anos e que um deus não deve mentir, excogitou-se um subterfúgio. De um dos elos da cadeia que agrilhoava o Titã se fez um anel, no qual se introduziu um pedacinho do rochedo; desse modo, Prometeu continuava sempre preso ao Cáucaso.

Um interessante sarcófago no museu Capitolino fixa em várias cenas toda a lenda de Prometeu.

Há algumas variantes na história de Prometeu: alguns lhe atribuem a fabricação da mulher, bem como a do homem, o que tiraria toda a razão de ser da linda Fábula de Pandora. Entretanto, existem sobre essa versão monumentos que não podemos desprezar. Um baixo-relevo antigo nos mostra Prometeu segurando um desbastador e modelando a primeira mulher; um homenzinho ainda não animado está deitado aos pés do escultor e quem Mercúrio conduz uma alma, caracterizada pelas asas de borboleta, e que irá habitar o corpo terminado por Prometeu. Atrás de Mercúrio, vemos as três Parcas que fiarão o destino da nova criatura. O touro, o burro e a lebre, colocados perto do escultor, relembram uma tradição segundo a qual Prometeu, ao formar a espécie humana, misturou ao limo de que se servia as qualidades dos diversos animais.

 

26. Mercúrio

Mercúrio era filho de Júpiter e de Maia, filha de Atlas. Os gregos chamavam-no Hermes, isto é, intérprete ou mensageiro. Seu nome latino vinha da palavra Merces, mercadoria. Mensageiro dos deuses e particularmente de Júpiter, ele os servia com um zelo infatigável e sem escrúpulo, mesmo nos empregos pouco honestos. Participava de todos os negócios, como ministro ou servidor. Ocupava-se da paz e da guerra, das querelas e dos amores dos deuses, do interior do Olimpo, dos interesses gerais do mundo, no céu, assim como na terra e nos Infernos. Encarregava-se de fornecer e servir ambrosia à mesa dos Imortais, presidia aos jogos, às assembléias, escutava os discursos e respondia, ou por si ou de acordo com as ordens recebidas. Conduzia ao Inferno as almas dos mortos com a sua vareta divina ou o seu caduceu; algumas vezes reconduzia-as à terra. Ninguém morria antes que ele tivesse inteiramente rompido os laços que unem a alma ao corpo.

Deus da eloquência e da arte de bem falar, ele o era também dos viajantes, dos negociantes e mesmo dos ladrões. Embaixador plenipotenciário dos deuses, assistia aos tratados de aliança, sancionava-os, retificava-os, não era estranho às declarações de guerra entre as cidades e os povos. Dia e noite não cessava de vigiar atento e alerta. Em uma palavra, era o mais ocupado dos deuses e dos homens. Acompanhava e guardava Juno com toda perseverança, impedindo-a de urdir qualquer intriga. Era mandado por Júpiter para facilitar-lhe agradabilíssimas entradas entre os mortais, para transportar Castor e Pólux a Palem, para acompanhar o carro de Plutão raptando Prosérpina; atirava-se do alto do Olimpo e atravessava o espaço com a rapidez do raio. Foi a ele que os deuses confiaram a delicada missão de conduzir diante do pastor Páris as três deusas que se disputavam o prêmio da beleza.

Tantos empregos, tantas atribuições diversas concedidas a Mercúrio davam-lhe uma importância considerável no conselho dos deuses. Por outro lado os homens acrescentavam ainda as suas qualidades divinas, atribuindo-lhes mil talentos industriosos. Não somente contribuía para o desenvolvimento do comércio e das artes, como também se dizia que fora ele quem em primeiro lugar formara uma língua exata e regular, quem inventara os primeiros caracteres da escritura, quem regulara a harmonia das frases, quem pusera nome a uma infinidade de coisas, quem instituíra práticas religiosas, quem multiplicara e fortalecera as relações sociais, quem ensinara o dever aos esposos e aos membros da mesma família. Ensinara também aos homens a luta e a dança, e em geral todos os exercícios ao ar livre que necessitavam força e graça. Finalmente foi ele o inventor da lira, à qual deu três cordas, e que ficou sendo o instrumento de Apolo. As suas qualidades são contrabalançadas por defeitos. O seu gênio inquieto, a sua conduta dolosa suscitaram-lhe mais de uma questão com os outros deuses. Júpiter mesmo, esquecendo um dia todos os serviços desse dedicado servidor, expulsou-o do céu, reduziu-o a guarda de rebanhos na terra; foi no mesmo tempo em que Apolo foi ferido pela mesma desgraça.

Acusou-se Mercúrio de um grande número de ladroeiras. Ainda criança, esse deus dos negociantes e dos ladrões furtou o tridente de Netuno, as flechas de Apolo, a espada de Marte e o cinto de Vênus. Roubou também os bois de Apolo; mas em virtude de uma convenção pacífica, trocou-os pela sua lira. Esses furtos, alegorias bastante transparentes, indicam que Mercúrio, sem dúvida personificação de um mortal ilustre, era ao mesmo tempo hábil navegador, provecto atirador de arco, valente na guerra, elegante e gracioso em todas as artes, negociante consumado, permutando o agradável pelo útil.

Tornou-se culpado de um assassinato para proteger os amores de Júpiter.

Argos, filho de Arestor, tinha cem olhos, dos quais cinqüenta ficavam abertos enquanto o sono adormecia os outros cinqüenta. Juno confiou-lhe a guarda de Io, mudada em vaca; Mercúrio, porém, adormeceu ao som de sua flauta esse guarda vigilante, e cortou-lhe a cabeça. Juno, desolada e iludida, tomou os olhos de Argos e os espalhou sobre a cauda do pavão. Outros contam que Argos foi por essa deusa metamorfoseado em pavão.

O culto de Mercúrio nada tinha de particular, senão que se lhe ofereciam as línguas das vítimas, emblema de sua eloquência. Pelo mesmo motivo ofereciam-lhe leite e mel. Imolavam-lhe vitelas e galos. Era especialmente venerado em Creta, país comercial, e em Cilene, na Élida, porque pensavam que tinha nascido no monte do mesmo nome, situado perto dessa cidade. Ele tinha também um oráculo em Acaie; depois de muitas cerimônias, falava-se na orelha do deus, para pedir o que se desejava. Em seguida saía-se do templo, com as orelhas tapadas com as mãos, e as primeiras palavras que se ouvissem eram a resposta de Mercúrio.

Em Roma os negociantes celebravam uma festa em honra sua, a 1.° de maio, dia em que lhe dedicaram um templo no circo. Sacrificavam uma porca prenha, e se aspergiam com a água de certa fonte à qual se atribuía uma virtude divina, rogando ao deus de proteger o seu comércio e de perdoar-lhes as pequenas velhacarias.

O "ex-voto" que os viajantes lhe ofertavam à volta de uma longa e penosa viagem, eram pés alados.

Como divindade tutelar, Mercúrio é geralmente representado com uma bolsa na mão. Em alguns monumentos é representado com uma bolsa na mão esquerda, e na direita uma ramo de oliveira e uma clava, símbolos, um de paz, útil ao comércio, o outro de força e de virtude, necessários ao tráfico. Como negociador dos deuses, traz na mão o caduceu, vareta mágica ou divina, emblema da paz. O caduceu é entrelaçado de duas serpentes, de sorte que a parte superior forma um arco; além disso é superado por duas extremidades de asas. O deus tem asas no seu gorro, e algumas vezes nos pés, para mostrar a ligeireza de seu andar e a rapidez com que executa as ordens.

Geralmente é descrito como um jovem, belo de rosto, de um talhe desenvolto, ora nu, ora com um manto nos ombros, que apenas o cobre.

Usa muito freqüentemente um chapéu chamado petaso, que tem asas. É raro representá-lo sentado. As suas diferentes ocupações no céu, na terra e nos Infernos, obrigavam-no a uma constante atividade. Em algumas pinturas vê-se o deus com metade do rosto clara e a outra metade negra e sombria: isso indica que ora está no céu ou na terra, ora nos Infernos, para onde conduz a alma dos mortos.

Quando o representavam com uma longa barba e cara de velho, davam-lhe um manto que lhe descia até os pés.

Dizem que Mercúrio é o pai do deus , fruto dos seus amores com Penélope. Penélope não foi a única mortal, nem a única deusa, honrada pelos seus favores; teve ainda como amantes, Acacalis, filha de Minos, Herse, filha de Cécrops, Eupolêmia, filha de Mirmidon, que lhe deu muitos filhos, Antianira, mãe de Equion, Prosérpina e a ninfa Lara, de quem nasceram os deuses Lares.

Hermes, sendo nome próprio de Mercúrio em grego, era dado a certas estátuas de mármore, e algumas vezes de bronze, sem braços e sem pés. Os atenienses, e seguindo o seu exemplo, outros povos da Grécia, mesmo depois os romanos, colocavam Hermes nas encruzilhadas das cidades e grandes estradas, porque Mercúrio presidia às viagens e aos caminhos. Geralmente, Hermes é uma coluna com uma cabeça; tendo duas cabeças, uma é de Mercúrio reunida à de outra divindade.

A quarta-feira (mercredi, em francês) dia da semana, é-lhe consagrada (Mercurii dies).

Tipo e Atributos de Mercúrio

A mudança, a transição, a passagem de um estado a outro foram personificados em Mercúrio. (Hermes). Mensageiro celeste, leva aos deuses as preces dos homens e aos homens os benefícios dos deuses; condutor das sombras, é a transição entre a vida e a morte; deus da eloqüência e dos tratados, faz passar ao espírito dos outros o pensamento de um orador ou de um legado. É o deus dos ginásios, porque na luta há troca de forças; é o deus do comércio e dos ladrões, porque um objeto vendido ou roubado passa de uma mão a outra.

Na grande época da arte, esse deus se revestiu de caráter muitíssimo diferente. Mercúrio torna-se, então, um efebo, macio e ágil, sempre imberbe, de cabelos curtos e apresentando o tipo perfeito dos jovens que freqüentam os ginásios. O seu rosto nunca tem a majestosidade de Júpiter, nem a altivez de Apolo, mas freqüentemente o cunho de uma grande finura, de acordo com o seu papel na Lenda, em que personifica a astúcia e a habilidade.

Dá-se ainda a Mercúrio outra série de atributos em relação com as suas diferentes funções. Como divindade pastoral, acompanhado uma ou outra vez de um carneiro ou uma cabra; como inventor da lira, coloca-se-lhe ao lado uma tartaruga. É um galo que o caracteriza como deus do ginásio, e a bolsa que segura com a mão revela o deus da mudança.

Mercúrio nasceu da união de Júpiter e de Maia, filha do Titã Atlas. Divindade arcádia, é numa gruta do monte Cilene que vê o dia pela primeira vez, e é por isso que alguns lhe dão o nome de deus de Cilene. Poucas divindades aparecem tão freqüentemente como Mercúrio na mitologia; o seu papel é importantíssimo, e em numerosos casos é, como os nossos criados de comédia, o personagem que tudo faz, embora sempre dependente.

Além das cenas da Lenda, das quais participa diretamente, Mercúrio surge em alguns monumentos ao lado de outras divindades, às quais se liga simbolicamente. Uma moeda de Marco Aurélio apresenta-o ao lado de Minerva, em virtude da relação existente entre o deus do comércio e a deusa da indústria. As relações com Vênus são ainda mais diretas, pois da união de ambos é que nasce Hermafrodita (Hermes-Aphrodite). Plutarco explica tal união dizendo que a eloqüência e o encanto da linguagem devem associar-se ao atrativo da beleza.

Mercúrio, Inventor da Lira

Mercúrio inventou a lira no mesmo dia em que nasceu. "Mal saiu do seio materno, não ficou envolto nos sagrados cueiros; pelo contrário, imediatamente ultrapassou o limiar do antro sombrio. Encontrou uma tartaruga e dela se apoderou. Estava ela na estrada da gruta, arrastando-se devagar e comendo as flores do campo. Ao vê-la o filho de Júpiter alegra-se; pega-a com ambas as mãos, e volta para a sua morada, com o interessante amigo. Esvazia a escama com o cinzel de brilhante aço e arranca a vida à tartaruga. Em seguida, corta alguns caniços, na medida certa, e com eles fura o costado da tartaruga de escama de pedra; em volta estende com habilidade uma pele de boi, adapta um cabo, no qual, nos dois lados, mergulha cavilhas; em seguida, acrescenta sete cordas harmoniosas de tripa de ovelha.

"Terminando o trabalho, ergue o delicioso instrumento, bate-o com cadência empregando o arco, e a sua mão produz retumbante som. Então o deus canta improvisando harmoniosos versos, e assim como os jovens nos festins se entregam à alegria, ele também conta as entrevistas com Júpiter e a formosa Maia, sua mãe, celebra o seu nascimento ilustre, canta as companheiras da ninfa, as suas ricas moradas, os tripés e os suntuosos tanques que se encontram na gruta." (Hino homérico).

Mercúrio, Rei dos Ladrões

Desde a mais tenra infância mostrou Mercúrio as qualidades que dele iriam fazer o deus dos ladrões. No mesmo dia em que nasceu, roubou o tridente de Netuno, as setas de Cupido, a espada de Marte, a cintura de Vênus, etc. Foi para fechar tão belo dia que foi roubar os bois guardados por Apolo, e para que ninguém lhe seguisse as pegadas, resolveu fazê-los caminhar de costas. Levou-os assim até Pilos, onde imolou dois aos deuses do Olimpo, e ocultou os demais numa caverna.

Mercúrio desconfiou que o pastor Bato, o qual guarda em tal lugar os rebanhos do rico Neleu, divulgaria o seu roubo, se fosse interrogado, e sobretudo se disso lhe adviesse alguma vantagem; assim, aproximando-se-lhe, pôs-se a acariciá-lo, e disse-lhe pegando-o pela mão: "Meu amigo, se por acaso alguém vier pedir-te novas deste rebanho, dize que o não viste; como recompensa, dou-te esta bela novilha. - Podes estar certo, retrucou Bato, recebendo-a; esta pedra que vês será mais capaz de trair-te o segredo do que eu." Mercúrio fingiu, então, afastar-se, e voltando um instante depois sob outro aspecto: "Bom homem, disse-lhe, se viste passar por aqui um rebanho, peço-te que me ajudes a procurá-lo; não favoreças com o teu silêncio o roubo que sofri; dar-te-ei uma vaca e um touro." O ancião, vendo que lhe ofereciam o dobro do que recebera: "Penso, respondeu, que o teu rebanho deve estar nas cercanias desta montanha; sim, deve estar, se não me engano!" Mercúrio, rindo-se de tais palavras, disse-lhe: "Ah, tu me trais, não é verdade? Pérfido, enganas-me!" Assim dizendo, metamorfoseou-o na pedra que se chama de toque, a qual serve para reconhecer-se se o ouro é de boa liga ou se é falso. (Ovídio).

Quando sobreveio o dia, Mercúrio voltou às alturas de Cilene. Ali, curva-se e esgueira-se para dentro da morada, entrando pela fechadura. Caminha com passo furtivo no reduto sagrado da gruta, penetra sem ruído como faz habitualmente na Terra, e assim chega até o seu leito, onde se cobre com fraldas, como qualquer criancinha e fica deitado, com uma das mãos brincando com a faixa, e com a outra empunhando a melodioso lira. Mas o deus não pudera ocultar a fuga a sua mãe, que lhe dirigiu a palavra nestes termos: "Pequenino astuto, menino cheio de audácia, de onde vens durante a treva da noite? Temo que o poderoso filho de Latona te cubra os membros de pesados laços, te arranque a esta morada, ou te surpreenda nos vales, ocupado em temerários roubos."

Mercúrio respondeu-lhe com as palavras cheias de astúcia: "Mamãe, por que pretendes assustar-me como se eu fora uma criança débil que mal conhece uma fraude e treme ouvindo a voz de sua mãe? Quero continuar a exercer esta arte que me parece a melhor par a tua glória e a minha." (Hino homérico).

Apolo não conseguia informações sobre os bois; mas notando um pássaro que cruza o céu, com as asas abertas, reconhece imediatamente, na sua qualidade de profeta e áugure, que o ladrão é o filho de Júpiter. Atira-se com rapidez aos picos de Cilene, e penetra na gruta, onde Maia deu à luz Mercúrio. O menino, vendo Apolo irritado pelo roubo das reses, amontoa-se numa bola e envolve-se nas fraldas.

O filho de Latona, após procurar por toda parte, dirige estas palavras a Mercúrio: "Menino, que repousas neste berço, dize-me imediatamente onde estão as minhas reses; se o não fizeres, erguer-se-ão entre nós funestos debates; agarrar-te-ei e precipitar-te-ei no sombrio Tártaro, no seio das sombras funestas e horríveis. Nem teu pai, nem tua mãe venerável poderão devolver-te à luz, e tu viverás eternamente sob a Terra." Mercúrio respondeu-lhe com astúcia: Filho de Latona, por que falas de maneira tão impressionante comigo? Por que vens procurar aqui as tuas reses? Eu nunca as vi, e delas nunca ouvi falar; não me é possível indicar-lhe o ladrão; por conseguinte, não receberia a recompensa prometida a quem fizer com que o descubras. Não tenho a força do homem capaz de roubar rebanhos. Não é esse o meu trabalho, porquanto outros cuidados me reclamam: preciso do suave sono, do leite de minha mãe, destas fraldas que me cobrem, e dos banhos mornos. Trata de evitar, pelo contrário, que se saiba desta divergência: seria um escândalo para todos os imortais saberem que um menino recém-nascido transpôs o limiar de tua morada com reses não domesticadas. O que dizes são palavras de insensato. Nasci ontem, as pedras houveram dilacerado a pele delicada dos meus pés; mas se exiges pronunciarei um juramento terrível: jurarei pela cabeça de meu pai que não conheço o ladrão das tuas reses." (Hino homérico).

Entretanto, Apolo não se deu por vencido, e pegando o garoto ao colo, o levou a Júpiter, a quem pediu os bois que o filho lhe roubara. Mercúrio começou por negar descaradamente o roubo; mas Júpiter, que tudo sabe, ordenou-lhe que devolvesse o que pegara indevidamente, e o menino conduziu Apolo para a gruta em que ocultara os animais. Enquanto Apolo os contava, Mercúrio começou a tocar lira, instrumento que ele acabara de inventar, e Apolo ficou de tal modo encantado que quis comprar-lho. Mercúrio, na sua qualidade de deus do comércio, valeu-se da ocasião para um bom negócio, e pediu em troca os bois. Apolo, imediatamente, tentou tocar lira, mas enquanto lidava para arrancar os acordes, Mercúrio descobriu o meio de inventar o cálamo. Apolo desejou também o novo instrumento, que Mercúrio lhe vendeu em troca do caduceu, vareta mágica, entrelaçada de serpentes e que lhe serviu mais tarde para adormecer Argos. O descaramento com o qual Mercúrio soube mentir no mesmo dia em que nascera, e a inteligência com a qual defendeu uma péssima causa, lhe garantiram o patronato dos advogados.

Um epigrama da Antologia zomba do deus dos ladrões: "Posso tocar numa couve, deus de Cilene? - Não, transeunte. - Que vergonha há nisso? - Não há vergonha, mas existe uma lei que proíbe apoderar-se do bem alheio. - Que coisa estranha! Mercúrio estabeleceu uma lei contra o roubo!"

Mercúrio, deus do Comércio

Desde o nascimento possuíra Mercúrio o gênio da permuta, e é por isso que é o deus do comércio. A arte o caracteriza, então, pela bolsa segura pela mão. O emblema é o mesmo que o que se atribui ao deus dos ladrões; mas em vez de aparecer sob as feições de um menino que acaba de fazer uma peraltice, apresenta a grave fisionomia de homem que refletiu e pesa o valor dos atos.

Considerado como deus do comércio e da permuta, Mercúrio segura habitualmente uma bolsa: traz o mesmo atributo quando é deus dos ladrões, mas neste caso está representado com as feições de menino que sorri maliciosamente, por alusão às aventuras que lhe assinalaram a mais tenra infância.

Mercúrio preside aos exercícios. Mas sob tal aspecto, a arte lhe modifica o caráter; não traz mais o capacete e as asas, e se apresenta inteiramente nu sob o aspecto de vigoroso efebo, que ocupa o lugar médio entre o caráter delgado de um Apolo e o caráter robusto de um Hércules.

Os atributos de Mercúrio como deus dos ginásios são a palmeira e o galo. O galo é, por excelência, a ave de luta, e os combates de galos eram um grande divertimento para os gregos. Não é de surpreender, portanto, que tenha sido escolhido para simbolizar a luta e os exercícios que a ela se ligam.

As imagens de Mercúrio figuravam sempre nos ginásios. "Aqui se colocou, para proteger este belo ginásio, o deus que reina no monte Cilene e nas suas elevadas florestas, Mercúrio, a quem os jovens gostam de oferecer amarantos, jacintos e violetas perfumadas." (Antologia).

Essas imagens do deus eram às vezes uma simples cabeça pousada numa mísula. O deus ri-se, ele também, de tal uso, num epigrama da Antologia: "Chamam-me Hermes, o veloz. Ah, não me coloqueis nos ginásios, privado de pés e de mãos! Sobre uma base, sem mãos e sem pés, como poderei ser veloz na corrida ou hábil na luta?"

Mercúrio Pedagogo

As letras servem para a transmissão das idéias. Como deus da permuta e da tradição, Mercúrio é, pois, inventor das letras: ensinando aos homens a transformação das suas idéias em caracteres que a exprimem, esse deus tornou-se naturalmente protetor dos ginásios. Invocam-no os mestres que ensinam aos meninos os elementos da ciência; invocam-no também os escrivães públicos e todos os que se dedicam a escrever. Os instrumentos de que nos servimos para a escrita, para a geometria, fazem parte das suas atribuições, e os que ganham a vida, deles se valendo, os dedicam ao deus quando são demasiado velhos. É o que se vê num pequenino trecho da Antologia grega, onde um velho mestre de escola se coloca sob a proteção do deus a quem serviu. "Um disco de chumbo negro para traçar linhas, uma régua que assegura a constância de direção, vasos de líquido negro para escrever, penas bem aparadas, a dura pedra que aguça o caniço e lhe devolve a finura, o ferro que o modela com a sua ponta e a sua lâmina, todos esses instrumentos do seu ofício, Menedemo tos consagra, ó Mercúrio, pois que a idade lhe toldou os olhos. E tu, deus prestativo, não deixes morrer de fome o teu obreiro."

Mercúrio Crióforo

A Arcádia, um dos principais centros da velha raça pelásgica, sonharia em Mercúrio, ou antes em Hermes, uma personificação da potência protetora da natureza e especialmente da terra. Era figurado na origem por um pedaço de madeira encimado por uma cabeça, e ali se fixava um símbolo grosseiro, que entre os povos pastores exprime simplesmente a força geratriz. Esse caráter pastoral desaparece, de resto, rapidamente, para passar ao deus , que em várias tradições é filho de Mercúrio. Mas o carneiro, que lhe é consagrado, e que vemos às vezes entre os seus atributos, relembra o antigo caráter de divindade campestre, e é sob tal aspecto que se chama Mercúrio crióforo, ou porta-carneiro.

Mercúrio, Guarda das Estradas

Mercúrio, como deus do comércio, é naturalmente protetor das estradas e da navegação. Nos tempos primitivos, montes de pedras colocados nas encruzilhadas dos caminhos serviam de altares destinados ao deus: mais tarde, foram feitos de outra maneira, mas sempre com o mesmo Destino.

Mercúrio, deus da Eloqüência

Os monumentos de arte dão a Mercúrio, quando é considerado como deus da eloqüência, uma atitude particular: ele levanta levemente o braço direito como se pretendesse demonstrar alguma coisa.

A arte de comunicar as idéias pela linguagem participava naturalmente dos atributos de Mercúrio, porque ele é o deus da permuta sob todas as formas. Era ele também que todos invocavam para adquirir os dons da memória e da palavra, como se pode ver num hino órfico a Mercúrio que contém as litanias do deus: "Filho bem amado de Maia e de Júpiter, deus viajante, mensageiro dos imortais, dotado de grande coração, censor severo dos homens, deus prudente de mil formas, assassino de Argos, deus de pés alados, amigo dos homens, protetor da eloqüência, tu que gostas da astúcia e dos combates, intérprete de todas as línguas, amigo da paz, que trazes um caduceu sangrento, deus venturoso, deus utilíssimo, que presides aos trabalhos e às necessidades dos homens, generoso auxiliar para a língua dos mortais, ouve as minhas preces, concede um feliz fim à minha existência, concede-me felizes obras, um espírito dotado de memória e de palavras escolhidas."(hino órfico).

Mercúrio, Mensageiro dos deuses

Mercúrio transmite aos deuses as preces dos homens e faz subir a eles a fumaça dos sacrifícios. Mas é sobretudo o mensageiro dos deuses e o fiel intérprete das ordens que está incumbindo de levar. É ele que por ordem de Júpiter conduz as três deusas à presença do pastor Páris encarregado de lhes adjudicar o prêmio da beleza. Possui asas no pétaso e tem asas talares para indicar a rapidez do seu vôo. Devotado mais especialmente a Júpiter, torna-se, se preciso, ministro complacente dos seus prazeres.

O caduceu usado por Mercúrio parece ter significados diversos: primitivamente era apenas a vareta usada pelos arautos que iam e vinham por diversos países em prol das relações internacionais. Em outras circunstâncias a vareta reveste-se de uma espécie de caráter mágico: é com ela que Mercúrio adormece Argos e é dela que se serve para evocar as sombras. Em torno dos emblemas que caracterizam Mercúrio, Gabriel de Saint-Aubin colocou mariposas para indicar a leveza e a rapidez do vôo.

"O apelido de mensageiro, de servidor, diz Creuzer, tão freqüentemente dado a Hermes, está quase sempre acompanhado do de assassino de Argos, em que se revelam tão bem nas lendas pelásgicas as suas relações com a lua e o céu estrelado. A vaca Io, efetivamente, e o vigilante Argos, que traz os seus inúmeros olhos fitos nela, não parece ser outra coisa. Quanto a Hermes, enviado pelo senhor dos deuses a libertar a sua amante de tão incômoda vigilância, nada mais faz, ao matar Argos, do que cumprir a missão que lhe é confiada, de presidir à alternativa do dia e da noite, da vida e da morte." (Creuzer).

Mercúrio, Condutor de Almas

Além de seu papel de mensageiro dos deuses, Mercúrio está especialmente incumbido de transportar as almas dos mortos ao reino de Plutão. Vários monumentos no-lo apresentam sob tal aspecto, que, aliás, se conforma às narrações dos poetas.

Vemos também, por vezes, Mercúrio caminhando rapidamente e segurando com a mão uma almazinha caracterizada pelas asas de borboleta: é por isso que Horácio, invocando Mercúrio, lhe dirige estas palavras: "És tu que, amado igualmente pelos deuses do Olimpo e pelos deuses do Inferno, reúnes com a tua varinha de ouro as sombras leves e conduzes as almas piedosas à venturosa morada que lhes está reservada."

Queixas de Mercúrio

Dentre todos os deuses da antigüidade, não há nenhum que tenha exercido tantas ocupações como Mercúrio. Intérprete e ministro fiel dos demais deuses, e em particular de Júpiter, seu pai, serve-os nos seus problemas ou nos seus prazeres com infatigável zelo.

A multiplicidade das funções de Mercúrio é verdadeiramente extraordinária, e o mais ativo dos deuses chega às vezes a lamentar-se. "Há, por acaso, um deus mais infeliz do que eu? Ter, sozinho, que fazer tanta coisa, sempre curvado ao peso de tantos trabalhos! Desde o romper do dia, devo levantar-me para varrer a sala do banquete; depois, quando já estendi tapetes para a assembléia e pus tudo em ordem, preciso ir ao pé de Júpiter, a fim de levar ordens à Terra, como verdadeiro correio. Mal regresso, ainda coberto de pó, devo servir-lhe a ambrósia, e antes da chegada do escanção, era eu quem lhe dava o néctar. O mais desagradável, porém, é que, único entre os deuses, não fecho olho durante a noite, pois tenho de conduzir as almas a Plutão, levar-lhe os mortos e sentar-me ao tribunal. Os trabalhos do dia não têm fim; além de assistir aos jogos, de fazer o papel de arauto nas assembléias, de dar aulas aos oradores, encarrego-me, simultaneamente, de tudo quanto diz respeito às pompas fúnebres." (Luciano).

 

27. Vulcano Nascimento de Vulcano

Vulcano era filho de Júpiter e de Juno, ou segundo alguns mitólogos, de Juno só, com o auxílio do Vento. Envergonhada de ter dado à luz a um filho tão disforme, a deusa o precipitou no mar, a fim de que eternamente ficasse escondido nos abismos. Foi, porém, recolhido pela bela Tetis e Eurínome, filhas do Oceano. Durante nove anos, cercado dos seus cuidados, viveu numa gruta profunda, ocupado em fabricar-lhes brincos, broches, colares, anéis e braceletes. Entretanto o mar escondia-o sob as suas ondas, tão bem que nem os deuses nem os homens conheciam o seu esconderijo, a não ser as duas divindades que o protegiam.

Vulcano, conservando no fundo do coração um ressentimento contra sua mãe, por causa dessa injúria, fez uma cadeira de ouro com mola misteriosa, e a enviou ao céu. Juno admira uma cadeira tão preciosa; não tendo nenhuma desconfiança, quer sentar-se nela; imediatamente fica presa como em uma armadilha; e aí ficaria muito tempo, se não fosse a intervenção de Baco, que embebedou Vulcano para obrigá-lo a soltar Juno. Pretende Homero que essa aventura da mãe dos deuses excitou a hilaridade de todos os habitantes do Olimpo.

Em outra passagem Homero conta que foi o próprio Júpiter quem precipitou Vulcano do alto do céu. No dia em que, para punir Juno por ter excitado uma tempestade que devia fazer perecer a Hércules, Júpiter suspendeu-a no meio dos ares, Vulcano, por um sentimento de compaixão ou de piedade filial, socorreu a sua mãe. Pagou caro esse movimento de bondade: Júpiter segurou-o pelos pés e atirou-o no espaço. Depois de haver rolado todo o dia nos ares, o desgraçado Vulcano caiu na ilha de Lemos, onde foi recolhido e tratado pelos habitantes. Nessa terrível queda quebrou as duas pernas, e ficou coxo para sempre. Entretanto, pela intervenção de Baco, Vulcano foi de novo chamado ao céu e recaiu nas graças de Júpiter, que o fez desposar a mais bela e a mais infiel de todas as deusas, Vênus, mãe do Amor. Esse deus, tão feio, tão disforme, é de todos os habitantes do Olimpo o mais laborioso e ao mesmo tempo o mais industrioso. Era ele que, por divertimento, fabricava mimos para as deusas que, com os seus Ciclopes, na ilha de Lemos ou no monte Etna, forjavam raios de Júpiter.

Teve a idéia engenhosa de fazer cadeiras que se dirigiam sozinhas à assembléia dos deuses. Ele não é somente o deus do fogo, mas também o do ferro, do bronze, da prata, do ouro, de todas as matérias fusíveis. Atribuíram-lhe todas as obras forjadas que passavam por maravilhas: o palácio do Sol, as armas de Aquiles, as de Enéias, o cetro de Agamemnom, o colar de Hermione, a coroa de Ariana, a rede invisível em que prendeu Marte e Vênus, etc.

Esse deus tinha muitos templos em Roma, mas fora dos muros: diz-se que o mais antigo era obra de Rômulo. Nos sacrifícios que se lhe ofereciam, era costume fazer consumir pelo fogo toda vítima, sem nada reservar para o festim sagrado; eram, pois, realmente holocaustos. A guarda dos seus templos era confiada a cães; o leão lhe era consagrado. As suas festas se celebravam no mês de agosto, isto é, durante os calores ardentes do estio.

Em honra ao deus do fogo, ou antes, considerado o fogo como o próprio deus, o povo atirava vítimas em um braseiro, a fim de tornar propícia a divindade. Por ocasião dessas festas, que duravam oito dias consecutivos, havia corridas populares em que os concorrentes corriam com uma tocha na mão: aquele que fosse vencido dava o seu facho ao vencedor.

Eram considerados filhos de Vulcano todos aqueles que se distinguiam na arte de forjar metais. Os sobrenomes mais comuns que se dão a Vulcano, ou Hefœstos, são: Lênio (o Leniano), Mulciber (o que maneja o ferro), Etnæus (do Etna), Tárdipes (o que anda devagar), Junonígena (filho de Juno), Crisor (brilhante), Colapódion (que tem os pés tortos, zambros, coxos), Anfigies (que coxeia dos dois pés), etc.

Nos antigos monumentos representam esse deus barbado, com a cabeleira um pouco descuidada, meio coberto por uma veste que só lhe chega um pouco acima do joelho, trazendo um gorro redondo e pontudo. Com a mão direita segura um martelo e com a esquerda as tenazes. Se bem que, segundo a fábula, ele fosse coxo, os artistas suprimiam esse defeito ou o faziam apenas sensível. Assim Vulcano se apresentava de pé, mas sem nenhuma deformidade aparente. Os poetas colocavam a morada habitual de Vulcano em uma das ilhas Eólias, coberta de rochedos, cujo cimo vomita turbilhões de fumo e chama. Do nome dessa ilha, antigamente chamada Vulcânea, hoje Vulcano, veio o nome de Vulcão.

Tipo e Atributos de Vulcano

Os poetas representam Vulcano com as feições de um hábil ferreiro, mas ao mesmo tempo burlesco no aspecto, assaz ridículo aos olhos dos Olímpicos, corcunda e de conformação viciosa. Nos tempos primitivos, era representado sob a forma de anão, mas nos belos tempos da arte passou a ser homem vigoroso e barbudo, com um capacete cônico tendo como atributos as ferramentas de ferreiro.

"Os que vão a Atenas, diz Valério Máximo, ali admiram a estátua de Vulcano feita por Alcamene. Entre as demais perfeições que imediatamente nos dispõem em favor do artista, notamos em primeiro lugar a arte com a qual ele dá a entrever a atitude torta do deus sob as próprias vestes que servem para lhe ocultar a imperfeição: não parece ser defeito que ele haja pretendido censurar em Vulcano, mas apenas um sinal distintivo, próprio a dá-lo a reconhecer como deus do fogo."

Vulcano fabricara a primeira mulher, Pandora, como Prometeu fizera o primeiro homem. É o divino obreiro do Olimpo, e os deuses lhe deviam quase tudo o de que se utilizavam. A égide e o cetro de Júpiter, o trono do Sono, a coroa de Ariadne, o colar da Harmonia, os touros de bronze que guardavam o velocino de ouro, as armas de Aquiles, eram trabalhos de Vulcano. Era ele, ademais, autor do carro do Sol, e fizera para Apolo uma admirável flecha que, após atingir o alvo, voltava por si à mão que a havia lançado.

Vingança de Vulcano

Para vingar-se dos pais que tão duramente o tinham tratado, Vulcano imaginou o fabrico de uma cadeira de ouro, da qual, quem nela se sentasse, só se levantaria com a sua permissão. Juno, que não conhecia o segredo, sentou-se e Vulcano não quis livrá-la. Uma curiosa pintura de vaso nos apresenta Juno sentada e Marte atacando Vulcano para libertar sua mãe. Vulcano não tinha forças para lutar contra o deus da guerra, e foi obrigado a ceder, mas a sua irritação foi tal que não mais quis voltar ao Olimpo. Os deuses afligiram-se com aquela resolução que os privava de todas as belas obras que lhes fazia Vulcano. Baco resolveu levá-lo de novo ao céu e embriagou-o.

Os Fios de Vulcano

Na Odisséia, Vulcano é marido de Vênus. Outras tradições fazem, pelo contrário, de Vênus, mulher de Marte. Como os deuses tinham nas diversas localidades lendas diferentes e por vezes contraditórias, a poesia, vendo Vênus unida a Marte, ou unida a Vulcano, pretendeu conciliar as várias tradições por meio de um adultério, e daí saiu a história dos fios de Vulcano. Hesíodo dá por esposa a Vulcano Aglé, a mais jovem das Graças. Mas a história dos fios de Vulcano prevaleceu e faz que as outras sejam esquecidas. O que é notável nessa história é que Vulcano parece unicamente preocupado com os presentes que trouxe como dote à mulher e que ele pretende reaver.

O Sol que vê tudo advertiu Vulcano das ligações existentes entre sua mulher e o deus da guerra. Vulcano, então, coloca sobre um cepo uma enorme bigorna e forma grilhões indestrutíveis. Essas cadeias eram finas como teias de aranha, e ninguém conseguia percebê-las, tal a habilidade com que haviam sido feitas. Mal Vulcano viu os dois culpados enredados nos fios, pôs-se a chamar todos os deuses.

"Poderoso Júpiter, e vós, imortais afortunados, acorrei para testemunhardes uma interessante cena que ninguém poderia, no entanto, tolerar! Visto que eu sou disforme, a filha de Júpiter me ultraja sem cessar; agora, une-se ao pernicioso deus da guerra, por ser ele belo e esbelto, ao passo que eu sou feio e corcunda! Meus pais são os únicos culpados desta desgraça; jamais deveriam ter-me posto no mundo!... Os laços que forjei para eles hão de retê-los até o dia em que o pai de Vênus me devolver todos os presentes que lhe dei para conquistar-lhe a impudente filha. Vênus é bela, sem dúvida, mas não consegue dominar as suas paixões." (Homero).

Embora tal narração seja apresentada sob forma cômica, convém notar que é a confusão dos amantes que leva os deuses a rir, e não a desventura do esposo, como facilmente se supõe hoje.

Os Ciclopes

Os ciclopes, obreiros de Vulcano, são habitualmente caracterizados pela enormidade do vulto e pelo único olho, posto no meio da testa. Entretanto, Albane afastou-se muito desse tipo. Incumbido de pintar os quatro elementos para o cardeal de Sabóia, escolheu Vulcano e a sua forja para representar o fogo. Mas o seu quadro nada possui de terrível.

Eis um fragmento da carta que ele escreveu ao cardeal para lhe anunciar o envio do quadro pedido. "Pintei, como Vossa Alteza verá, não somente o fogo celeste e propriamente elementar, representado pelo poderoso Júpiter, senão também o fogo material e o do Amor, de que Vulcano e a deusa de Chipre são os emblemas: não quis colocar as forjas de Vulcano nem Brontes, nem os demais ciclopes; preferi fixar três jovens Amores, visto que a carne de meninos dessa idade constituem interessante oposição às amorenadas de Vulcano. Tive, também, de me conformar nessa escolha ao desejo de Vossa Alteza sereníssima, pois o embaixador me dissera que conviria representasse eu grande número de Amores ferindo com as suas setas irresistíveis o mármore mais duro, o aço, o diamante e o próprio coração dos deuses."

Noutro quadro Albane coloca Vulcano al lado de Vênus. A sua oficina já não é uma forja, mas um prado coberto de flores. Os seus obreiros não são mais os robustos ciclopes, e o ruído dos seus martelos é temperado pelo das cascatas. Enquanto na entrada de uma gruta recoberta de usgo, um deles aciona o fole, outros apresentam a Vênus as armas que acabam de fabricar para ele e para o filho: essas armas são naturalmente setas. A deusa, deitada descuidadamente à sombra dos bosquetes, sorri para tudo quanto a rodeia e seu esposo, o rude Vulcano, que repousa ao seu lado, busca tornar-se amável para não prejudicar o quadro.

Os ciclopes sempre foram considerados como personagens formidáveis. Quando Diana quis ter uma aljava e setas dignas da sua habilidade, foi visitar Vulcano que ela encontrou na forja rodeado pelos ciclopes seus obreiros.

"As ninfas empalideceram à vista de tais gigantes semelhantes a montanhas e cujo olho único, sob espessa sobrancelha, brilhava ameaçadoramente. Uns faziam gemer imensos foles; outros, levantando os pesados martelos, batiam furiosamente o bronze que tiravam da fornalha. A bigorna estremece, o Etna e a Sicília tremem, a Itália ecoa o estrondo e a própria Córsega se sacode. Àquele terrível espetáculo, àquele medonho fragor, as filhas do Oceano ficam estarrecidas... e trata-se, aliás, de um estarrecimento perdoável; as próprias filhas dos deuses, na sua infância, só encaram tais gigantes com temor, e quando se recusam a obedecer, suas mães fingem chamar Arges ou Steropes: Mercúrio acorre com as feições de um desses ciclopes, de rosto coberto de cinza e fumaça; imediatamente, a criança, terrorizada, cobre os olhos com as mãos e se atira tremendo ao seio materno." (Calímaco).

 

  3.            ORFEU E O ORFISMO

 

Ao que tudo indica, Orfeu foi um poeta trácio de grande habilidade musical e um místico de grande carisma, mas cujos traços históricos estão para nós completamente perdidos, a não ser pelas lendas e mitos que nos chegaram a seu respeito, transformando-o num semideus. Já no século VI a. C. o poeta Ibico falava de "Orfeu de nome famoso", testemunhando a grande notoriedade que Orfeu usufruia em toda a cultura helênica, e que só se explica pela existência de um fundador carismático e pela difusão do seu movimento religioso. Eurípedes, Platão, Heródoto, Aristófanes e Aristóteles nos deixaram escritos sobre o orfismo, e sabemos o quanto Platão deve aos mistérios órficos em sua filosofia, especialmente no que concerne à doutrina da reencarnação. É bem provável que o homem Orfeu tenha tido uma forte influência mística na cultura grega no início do século VI a.C.

 

A religião pública na Grécia e os Mistérios Órficos

A religião exerceu uma profunda influência na gênese da filosofia grega, e, por conseqüência, na filosofia ocidental. Mas quando se fala da religião helênica, se faz necessário distinguir entre a religião pública, que teve seu modelo na representação dos deuses e do culto que foi legado por Homero, e adotada pela maioria da população pela sua simplicidade explicativa dos fenômenos naturais e humanos,antropomorfizando-os, e a chamada religião dos mistérios. Apesar de serem religiões com pontos em comum, há importantes diferenças entre estas duas formas de religiosidade (como, por exemplo, a concepção de homem, do sentido da vida e o destino último da alma humana). Ambas as formas de religiosidade são fundamentais para a gênese da filosofia grega, mas a segunda forma se destaca muito mais nesta gênese que a primeira. em todos os gregos consideravam críveis ou aceitáveis os pressupostos da religião pública, recheada de deuses bastante humanos. Por isso, em círculos restritos, desenvolveram-se os chamados "mistérios", com elementos da religiosidade oriental, tendo suas crenças mais logicamente enlaçadas e seus próprios rituais reconhecidamente simbólicos e com forte conteúdo arquetípico-psicológico. O orfismo é particularmente importante porque introduz na civilização grega uma nova interpretação da existência humana (Reale & Antiseri, 1990). Enquanto a concepção tradicional, desde Homero, considerava o homem com uma alma desconhecida, que se perdia na região do Hades após a morte, quase como um fim total da existência humana, o orfismo proclama a imortalidade da alma, sendo esta o que dá a persnonalidade do homem, herdeira de uma história e de um trajeto evolutivo, sempre se aperfeiçoando nesta e em inúmeras outras vidas, até que consiga se assemelhar ao máximo a Deus.

Os principais elementos da doutrina órfica são:

a) No homem há um princípio divino, uma alma que caiu em um corpo para corrigir uma imperfeição.

b)Essa alma não só preexiste ao corpo como também sobrevive a ele, estando destinada a reencarnar em corpos sucessivos até que consiga depurar-se das imperfeições e dos erros que a fazem voltar ao mundo.

c)Com suas práticas e ritos simbólicos, o orfismo buscava despertar no homem a compreensão destas verdades, ajudando-o a tomar consciência do que e quem ele é, e motivando-o a tomar ânimo para ter o total controle de sua vida, aperfeiçoando-se e pondo fim ao ciclo das reencarnações - temos aqui, de alguma forma, um eco dos ensinos budistas.

Conhecemos algumas máximas órficas, que nos chegaram através de fragmentos encontrados em tabuinhas e em tumbas pertencentes a seguidores da doutrina. Algumas dessas máximas resumem muito bem o núcleo central de sua doutrina:

Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes, desconhecias o que era o sofrimento. De homem, nasceste Deus!".

"Feliz e bem-aventurado, serás Deus ao invés de um mero mortal! De homem, nascerás Deus, pois és filho do Divino!"

De um modo geral, a mensagem órfica é a de que todos somos deuses, por herança divina, e deveremos voltar a estar junto de Deus.

Sem o orfismo não se explicaria a filosofia e a doutrina de Pitágoras, nem a de Empédocles e, sobretudo, não se explicaria Sócrates e boa parte do pensamento de Platão, bem como de toda a tradição que deriva de ambos.

 

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